Aqui em casa, há uma luta surda entre a barbárie e a civilização. No microcosmo da minha própria residência, percebo que três crianças oscilam em instintos primitivos. Tudo começa nas primeiras horas do dia. A mesa posta, prato, talher, xícara, guardanapo etc, é invadida pelo conjunto de bárbaros descabelados. Na lista de prioridades, a última coisa que se lembram é de escovar os dentes ou lavar as mãos. Esses pequenos vikings arrastam as cadeiras e sentam-se reclamando comida. Nacos de queijo são consumidos sem cerimônia, como litros de iogurte e montanhas de pão. Pessoalmente, abomino quem mergulha o pão no café com leite. É uma prática repugnante conduzir o pedaço de pão mole à boca que espera igualmente mole, coisa para velhos que já perderam todos os dentes e deixam respingar o resto do líquido pelos sulcos que se encontram no queixo. Para meus filhos, porém, que estão na primeira dentição, dura como um diamante, resistente como em castores, nenhuma catequese ou etiqueta servem. Tudo piora quando me pedem que passe manteiga no pão. Então, afogam-no melecado no fundo da xícara de porcelana até lambuzarem os dedos miúdos, trazendo um conjunto inchado, completamente descaracterizado como um corpo que boia no rio. O resultado são poças de café com leite no canto do prato, um dos pecados capitais para a velha Socila. Falta apenas comerem com garfos de três pontas, usar o punhal para descascar mangas, comer coxas de javali assadas entre dentadas. No almoço, por vezes, pedem para misturar. Não é digno. Misturar arroz, feijão, carne e farinha e formar um bolo indistinto de comida no garfo é coisa de hunos famintos em suas campanhas a cavalo ou dos mongóis que lutavam nos prados gelados para invadir a China. Foram eles que palitavam os dentes com facas até obterem a completa digestão. De minha parte, também travo as minhas pelejas. Luto pela vitória da civilização, pelo uso do guardanapo, pelo pão amanteigado comido à parte do café com leite, pelo garfo de quatro pontas, tudo o que os franceses nos legaram à custa das cabeças decepadas pela máquina do doutor Guilhotin. Não é fácil, a contenda é desigual. No íntimo da molecada, está a força atávica que empurra o ser humano ao retorno primevo, para o alto da mata a caçar frutas nas árvores e piolhos na cabeça. Eis aí onde se encontra, na escala civilizatória, quem molha o pão no café com leite, mistura macarrão com feijão, come carnes com frutas em calda e usa as costas das mãos para limpar a boca que vaza. Da lista de atrocidades, o pior é a mistura do macarrão com feijão. A ONU deveria se posicionar a respeito, incluindo a prática malévola nos crimes contra a humanidade. Na minha família materna, composta por matronas italianas, quem cortasse o macarrão à mesa era proscrito em definitivo do convívio dominical, um criminoso irrecuperável e esquecido pelas tias-avós. A última sobrevivente da linhagem dos carcamanos ainda servia o café numa pequena xícara apoiada em paninho bordado à mão que repousava por cima do pires; o pão vinha numa cesta de vime, coberta em linho da Ilha da Madeira. Não é só na minha casa que se dá o conflito civilizatório. Trata-se de uma luta diária entre a vontade de australopitecos e a grandeza do homo sapiens toda a vez que nos deparamos com uma coxa de frango na frente. Não serei vencido. Me recuso dar um passo atrás. Comigo, é açúcar refinado e pão seco. Macarrão com manteiga e queijo. Em feijoada que se dê ao respeito aparta-se o feijão das carnes, assim como os cozidos em geral. São milênios de civilização que me empenho em conservar, a despeito da teimosia dos meus filhos que, sentados no chão, usam o polegar opositor para meter uma manga bourbon na boca como se não houvesse amanhã.