No mundo inteiro, há chifres famosos. Tudo começou com Zeus metendo a ganha em Hera, a vingativa mulher enfurecida. Na modernidade, o de Anna Karenina é um, o de Madame Bovary é outro exemplo. O adultério de Luísa ficou para sempre imortalizado no Primo Basílio. No Brasil, o corno não é diferente. Talvez tenha sido Machado de Assis o responsável pela fascinação nacional. Ninguém sabe ao certo se a Capitu com seus olhos de ressaca traiu ou não Bentinho. De qualquer forma, virou moda. Evidentemente que, na época, a culpa estava concentrada apenas na mulher com suas fraquezas. A traição foi cantada em prosa e verso, chegando ao ponto de surgir o corno espiritual de Jorge Amado em Dona Flor e Seus Dois Maridos. Essa moda contaminou de traição a música nacional, desde os mais sofisticados como Herivelto Martins que duelava em público com a sua Dalva de Oliveira.

O chifre musical dividia-se, então, em dois gêneros. O refinado e o popular. A primeira modalidade era o corno bem trabalhado, com imagens ricas e bem acabadas. Herivelto compôs “atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem”. Era uma acusação metaforizada. O compositor exigia discrição, no entanto. Não queria que o corno se tornasse público. Daí lamentava que “seu mal é comentar o passado, ninguém precisa saber do que houve entre nós dois: o peixe é pro fundos das redes, segredo pra quatro paredes, não deixe que males pequeninos venham transtornar os nossos destinos”. Mas um chifre não é um mero detalhe, data vênia do Herivelto.

Dalva de Oliveira, por sua vez, acompanhada de compositores solidários, revidou. Reconheceu: “errei, mas se me ouvires me darás razão, foi o ciúme que se debruçou sobre o meu coração”. A mulher era um poço de desconfiança, pior do que a loucura que consumiu Bentinho. Ficava como um pica-pau na cabeça do marido. Triste mesmo é como as coisas se desenrolaram, até chegar na conclusão de que a culpa foi mútua: “errei sim, manchei o teu nome, mas foste tu mesmo o culpado; deixavas-me em casa, me trocando pela orgia, faltando sempre com a tua companhia”. Eis aí a pior acusação: falta de assistência do marido. Grave, gravíssimo.

Mas foi Lupicínio Rodrigues o rei da dor de cotovelo. Gaúcho refinado, deu um conselho para um amigo: “esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que eu sei, não amavam, não passavam, aquilo que já passei”. Não adiantou. A turma gosta mesmo é de corno. O grande sucesso da carreira dele perguntava ao povão: “você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher? E depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um outro qualquer?”. De fato, só com nervos de aço para suportar o chifre. Do contrário, o sujeito reclamava vingança: “eu gostei tanto, tanto quando me contaram que te viram bebendo e chorando na mesa de um bar”. Por quê? Ora, porquê! A música dá conta do chifre: “o remorso talvez seja a causa do seu desespero, ela deve estar bem consciente do que praticou; me fazer passar esta vergonha com um companheiro, e a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou”.

O samba-canção era o requinte do corno. Mas o Brasil é essencialmente popular. E, portanto, um dos maiores sucessos em matéria de chifre foi Odair José. Ele prometia à mulher: “eu vou tirar você desse lugar, eu vou levar você pra ficar comigo e não interessa o que os outros vão pensar”. Prometeu, mas não cumpriu. Nunca tirou a fulana da zona e nem da música. No fim, Odair sublimou o corno, cantando: “eu agora sou bem diferente, não se assustem e nem se preocupem, sou o mesmo de antigamente, só que agora nada mais me encuca”. Pudera! O homem era terrivelmente ciumento. Quem não se lembra do “não se vá, eu já não posso suportar essa minha vida de amargura, não se vá, estou partindo porque sei que você já não mais me ama, Não se vá, o seu ciúme é o culpado desse amor de desventura”?

Não estranhei nada o fenômeno Reginaldo Rossi, outro inveterado possessivo. Com medo do corno, o sujeito conversava muito com garçons. Numa das músicas, pedia: “garçom, amigo apague a luz da minha mesa, eu não quero que ela note em mim tanta tristeza, traga mais uma garrafa, hoje vou me embriagar, quero dormir para não ver, outro homem lhe abraçar”. Trata-se aqui do corno por antecipação. Rossi, contudo, foi o primeiro corno consciente: “hoje é o dia do corno, foi bom de te encontrar. Vamos tomar um porre pra comemorar. A mulher que você ama eu amo também; pelo que sei, ela já enganou mais de cem”. O que ele não sabia era que a mulher iria acabar sossegando, como acabou confessando ao mesmo garçom: “saiba que o meu grande amor hoje vai se casar, mandou uma carta para me avisar, deixou em pedaços meu coração”. Quem mandou maltratar a coitada?

Hoje em dia, o sertanejo é a toada dos cornos. Praticamente todas as músicas são diálogos sobre o chifre. José Neto e Cristiano se lamentam: “meu orgulho caiu quando subiu o álcool, aí deu ruim pra mim e, pra piorar, tá tocando o modão de arrastar o chifre no asfalto”. A maioria curte a sofrência. O Calcinha Preta escancarou: “você não vale nada, mas eu gosto de você”. Essa forma de assumir é mais honesta, pelo menos. Melhor saber que o parceiro não vale um pequi ruído do que ser surpreendida como Gaby Amaranto: “Ex-my love, ex-my love, se botar teu amor na vitrine, ele nem vai valer R$ 1,99”. Na psicologia, isso se chama masoquismo. Sigmund Freud poderia ser consultado sobre os complexos de Gustavo Lima: “eu sei que você poderia ter escolhido alguém menos complicado, que não tivesse no presente uma pessoa do passado, aceitar essa situação é uma forma de amor, mas eu preciso que você me faça só mais um favor: ainda não me chame de meu nego, ainda não me chame de bebê, porque era assim que ela me chamava e  um apelido carinhoso é o mais difícil de esquecer”.

Com as mulheres, a dor de corno é a mesma, só que o caso está invertido. Idêntico argumento do “errei sim” cantado por Dalva de Oliveira, onde culpa o parceiro pela traição, é repetido por Maiara e Maraíza em “Traí sim”. A mulher tentou agradar o parceiro, mas o sujeito não deu bola e facilitou para o amigo: “eu assinei o Netflix sem poder e fiz até um jantarzinho pra impressionar você, e você não veio, você só quer rolê, ficar só na bebedeira pra se aparecer! Fiquei até altas horas e nada de você, você queria o que?” Ou seja, a falta de assistência do camarada levou a mulher a se resolver com o outro. Marília Mendonça tem a mesma consciência do corno que Reginaldo Rossi: “bem pior que eu, você que não deixa ela, e nem deixa de me ver; bem pior que eu, você desconta sua raiva em duas horas de prazer”.

Eu acho que o Brasil é corno. Corno e machista. Antigamente, a culpa era toda das mulheres, sempre consideradas lascivas, traiçoeiras e fracas. É assim desde Mora na Filosofia: “se seu corpo ficasse marcado por lábios ou mãos carinhosas, eu saberia, (ora vai mulher!), a quantos você pertencia; não vou me preocupar em ver, seu caso não é de ver pra crer: tá na cara”. Na história, quase nunca a mulher retruca. Exceção feita à Medéia grega e à nossa Maysa, por exemplo: “meu mundo caiu e me fez ficar assim, você conseguiu e agora diz que tem pena de mim”. Mesmo ela, cantava o perdão em Molambo: “lamento, mas fiquem sabendo que ele voltou e comigo ficou; ficou pra matar a saudade, a tremenda saudade que não me deixou, que não me deu sossego um momento sequer desde que ele me abandonou”.

A postura da mulher arrependida é o que prevalece. Dolores Duran dá conta disso: “se eu soubesse naquele dia o que sei agora, eu não seria essa mulher que chora, eu não teria perdido você”. As súplicas de Dolores são famosas: “entre, meu bem, por favor, não deixe o mundo mal te afastar outra vez, me abrace e simplesmente não fale, não lembre, não chore meu bem”. Chico Buarque, o homem que melhor soube traduzir as mulheres, compartilhou a dor do abandono feminino: “quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei, eu te estranhei, me debrucei sobre o teu corpo e duvidei, e me arrastei, e te arranhei e me agarrei nos teus cabelos, nos teus pelos, teu pijama, nos teus pés, ao pé da cama, sem carinho, sem coberta, no tapete atrás da porta, reclamei baixinho”.

Culpa delas ou deles, isso depende de quem está sofrendo: em vez do “local de fala”, há no corno o “local do choro”, digamos assim. Há tantos tipos de chifres quanto estilos musicais. Na adolescência, também eu já chifrei a namorada, desprezando a lição de Vinícius de Moraes: “tantas você fez que ela cansou, porque você, rapaz, abusou da regra três, onde menos vale mais; da primeira vez ela chorou, mas resolveu ficar: é que os momentos felizes, tinham deixado raízes no seu penar, depois perdeu a esperança, porque o perdão também cansa de perdoar”. Contudo, fui chifrado, e aí... aí, meus amigos, eu chorei muito ao som do Djavan: “o amor é um grande laço, um passo pruma armadilha, um lobo correndo em círculo pra alimentar a matilha”. Estamos todos no mesmo barco.