O casal Aline Figueiredo e Humberto Espíndola ofereceu ao escritor Eduardo Mahon a jacuba pantaneira, enquanto concedia a presente entrevista. Aline Figueiredo é a mais reconhecida crítica, incentivadora e colecionadora da arte brasileira em Mato Grosso, enquanto Humberto Espíndola é o mais premiado artista plástico do Estado.

 

Mahon: Rafael ou Picasso?

Aline: Os dois. Não há correlação de qualidade.

Mahon: Você não tem a inclinação para o moderno?

Aline: O moderno sempre existiu. Rafael foi, a seu tempo, contemporâneo. Toda a pintura, desde as cavernas, é moderna.

Beto: A Aline vê a arte de forma geral, ela enxerga em cada escola, o melhor. É difícil que ela faça uma opção. Palmilhando cada pintor, cada um tem um proposta.

Mahon: Na contemporaneidade de cada um, eu imagino que houve o bom, o regular e o medíocre. Como avaliar a qualidade intrínseca?

Aline: Todos os artistas são influenciados por alguma coisa. Experimente visitar um museu de arte africana e você terá uma grande surpresa com a proximidade com as obras de Picasso. Tudo aquilo já estava lá. O próprio Pablo Picasso dizia que poderia imitar todos, menos a si mesmo. Um artista que copia a si mesmo, se estiliza, fica medíocre.

Beto: Quando os artistas aparecem, há uma variação grande. Os críticos fazem comentários absurdos. Mas, com o tempo, a arte se estabiliza e é possível selecionar o que fica de bom. Com respeito aos critérios que você perguntou, varia muito em cada época: a encomenda do mecenas, da Igreja, do mercado. A pintura está inserida no contexto social.

Mahon: Nada é ruim?

Beto: A princípio não. A obra de arte se completa no olho que vê. Se temos um observador preparado para entender todos as nuances da obra, melhor para ele.

Mahon: É claro que você está se utilizando da teoria de recepção ao compartilhar com o observador a tarefa de produzir uma obra de arte, eu entendo isso perfeitamente. Contudo, se fizermos uma secção em cada fase (classicismo, romantismo, modernismo e suas variantes, abstrata etc), haveremos de perceber uma diferença qualitativa, não? Esse é um problema do público, da crítica ou do artista?

Aline: Dá licença! Essa entrevista tá muito complicada pra mim.

Aline sai da sala.

Mahon: O que vocês preferem: o público ou a crítica?

Aline: Eu prefiro muito mais uma boa crítica! (gritando, de longe)

Beto: É uma questão de estratégia para quem quer crescer profissionalmente. Se a exposição tiver milhares de pessoas, é provável que elas passem e não levem quase nada do que viram. A crítica vai para o meu curriculum, para o meu futuro livro.

Aline: A crítica fica, sem dúvida. O público não gosta de ler, não gosta de estudar.

Beto: Com a tecnologia, as coisas ficaram muito diferentes. Hoje, todo mundo pode fazer crítica, embora não seja qualquer um que escreva bem. Nós brasileiros estamos cada dia mais mal educados. Tivemos uma explosão demográfica dos anos 60 pra cá, mas a educação não acompanhou a demanda. É preciso ensinar como aprender. O tablet vai ocupar o lugar do lápis, do papel e, infelizmente, do professor.

Aline: A televisão matou a crítica de jornal.

Mahon: As maiores galerias tinham alcance nacional. Digo, do Rio e São Paulo. Ocorre que, paulatinamente, temos menos nomes “nacionais”, quero colocar entre aspas, menos artistas que são consumidos nacionalmente.

Aline: Talvez em função da globalização da arte contemporânea. Antes havia a procura pela formalização de uma arte brasileira. O modernismo surgiu com essa intenção. Os escritores Oswald e Mário de Andrade assentaram essa intenção.

Beto: Mas esse foi um sonho do passado. Hoje há outros sonhos. Tenho 75 anos e percebo essa mudança.

Mahon: Antes mesmo do Modernismo, os românticos se propuseram a criar uma “identidade brasileira”. Deviam responder à pergunta – o que é o Brasil?

Aline: Foi então que surgiu o academicismo, de fato. Era preciso idealizar um cenário, incentivar a história nacional.

Mahon: Pois então, Beto. Quando eu vejo nas suas obras uma mistura de couros, chifres, boiadas, eu percebo uma intencionalidade regional. Estou enganado?

Beto: Em parte, você tem muita razão. Comecei a pintar os motivos regionais com base no pop art norte-americano. Abri uma exposição de 67 com muitos pintores americanos. Aquilo me impressionou muito. Eles estavam retratando o american way of life. Tinha que surgir um artista mato-grossense! Era preciso encontrar uma linguagem que falasse da província em nível nacional.

Aline: Quando Beto surgiu, surgiu Brasília! E Brasília trouxe essa ideia de fusão, de interiorização. Mas eu penso que a proposta não era falar apenas de Mato Grosso. Não! A intenção era fazer uma arte brasileira dentro do Brasil, entende? Não tinha essa especificidade regional. O boi é universal.

Beto: Exatamente. Estou dando a minha contribuição à maior icnografia da arte mundial. O boi é a primeira icnografia humana. Ele sempre foi pintado, em qualquer época, de qualquer forma. A arte é uma espécie de dicionário onde se colocam alguns sentidos. Estou enriquecendo a imagem do boi.

Aline: Nosso movimento sempre procurou “o fazer brasileiro”, construir uma linguagem essencialmente brasileira.

Beto: O regional já foi discutido. Mas hoje não se discute isso em lugar nenhum, com a globalização. O contemporâneo sublimou esse problema.

Aline: Durante muito tempo esse papo de regionalismo encheu muito o saco. Se você pintasse o Central Park, era considerado internacional, mas se fosse pintar a pracinha 8 de abril, era regional. Já encheu o saco! É a forma, o jeito de fazer quem determinam o artista. Na plástica, é a forma que manda.

Mahon: Hoje parece que é xingamento chamar um artista de regional?

Aline: Vou dar o exemplo naquele movimento armorial de Suassuna. Ele faz questão de ser regional, de se intitular assim. O nosso João Sebastião se encaixa perfeitamente dentro do movimento armorial, mas um artista pernambucano não deixa. Mas o João lida com o caju, as bandeiras, as onças, com todos os assuntos da região.

Beto: Eu nasci num local onde não havia uma cultura marcante, além dos indígenas. Não houve uma cultura iconográfica. Foi preciso inventar.

Mahon: É possível se desterritorializar?

Beto: Acho que existe algo além do local. É uma concepção espiritual minha.

Aline: Sim, claro. A pintura abstrata eliminou o tema. Não há conteúdo. Se não há o tema, não há nem sequer o local. Portanto, é claro que um artista pode superar o local onde vive e criar um universo próprio.

Beto: O boi, por exemplo, é um ícone. Para mim, somente um ícone. Ele não representa, necessariamente, o meu território. Não é assim que o vejo. Estou enriquecendo esse ícone. Outros que virão depois de mim podem ou não dar uma contribuição. Ocorre que, pessoalmente, gosto dessa nossa geografia. Eu me vejo plantado aqui. A minha pintura tem muita dessa visão espacial daqui de Mato Grosso.

Aline: Há muitos artistas que só foram conhecer o Morro de Santo Antônio com a pintura de Humberto.

Beto: Eu vim de uma época de museus. Expor num museu valia alguma coisa. Aqui em Cuiabá, por exemplo, tínhamos o suporte da Universidade Federal. Não chegava um ministro aqui que não entrasse na oca da UFMT. Hoje ninguém mais vai. Se eu quiser ver o Braque hoje, basta procurar na internet. O noção do museu mudou muito.

Mahon: Até o sentido de “escola” mudou. Pressupunha-se que, na alvorada de um movimento novo, o antigo cairia em decadência. Uma tendência nasce do conflito com o movimento anterior?

Aline: No século XX, os movimentos ocorrem em paralelo. Não há aquele conflito clássico entre uma e outra escola, porque até o século XX, os movimentos eram muito lentos, se consolidavam muito lentamente. Com o século passado, bastavam dois ou três artistas sentarem numa mesa de boteco e escrever um manifesto, havia um movimento próprio. Há mesclagem na contemporaneidade, não uma sucessão de tendências.

Mahon: O niilismo está em alta. Questiona-se até o ponto de vista do interlocutor, esvaziando o conteúdo da fala. Deslegitima-se tudo, relativiza-se tudo, não há nenhuma certeza. O Duchamp foi um precursor em questionar “o que é arte?”. E agora? Para onde vai a arte?

Beto: O sucesso da arte sempre foi a surpresa, a provocação. Para onde vai a arte, é impossível saber. Não dá pra antever. O cubismo foi uma grande surpresa. Na atualidade, é uma coisa bem simples.

Mahon: E a tela? Tem os dias contados?

Beto: Acho que sim! Haverá um barateamento da arte. O formato atual será superado. Sempre haverá o pintor, mas a tela tradicional pode desaparecer.

Mahon: Se voltarmos no tempo, Grécia e Roma apreciavam o muralismo, tanto na esfera pública como na intimidade doméstica. Na Idade Média, a arte europeia serviu à religião. No nascimento da modernidade, a arte foi transformada num produto. E por isso, era necessário a portabilidade: para facilitar o colecionismo.

Aline: Eis aí a pintura à óleo, possibilita uma durabilidade muito maior. O Impressionismo diminuiu as telas porque precisavam captar a luz.

Mahon: Esse colecionismo gerou uma quantidade incalculável de telas. Teremos espaço para tantas obras? Continuaremos com esse conceito?

Aline: Os museus vão incendiar e sobrará mais espaço! (risos)

Beto: Sim, a arte vai se virtualizar. A pintura é uma das terapias modernas, vai aparecer muita coisa boa, pode apostar. Mas a forma vai mudar radicalmente. Haverá plotagem, a volta do muralismo. Aqui em Cuiabá, por exemplo, temos o graffiti. Até mesmo a Regina Pena está trabalhando no virtual. Eu mesmo já fiz algumas coisas, com bons resultados. Ocorre que eu tenho um conceito de pintura do meu tempo. Sou um homem do século XX.

Mahon: O muralismo era muito praticado. Não seria esse o futuro da arte? Colocar a arte para fora, para a rua, para todos?

Aline: Ah, claro. Essa tendência já é perceptível.

Beto: Ocorre que a arquitetura contemporânea está se esforçando para superar a pintura como valor agregado. A arquitetura quer se exibir como arte. O graffiti também é datado. É um jeito de se relacionar com uma determinada cidade com paredes mortas, muito espaço à disposição. Com a modernização de cidades como Xangai, Dubai, entre outras, não haverá as tradicionais paredes brancas para a atuação do graffiti. Veja que o que é contemporâneo passa a ser superado rapidamente.

Mahon: Uma provocação. Se um artista intervir no muro da sua casa, de quem é o muro? Continua seu ou passa a ser da comunidade?

Aline: Não admito desapropriar o meu muro! Vou apagar a pintura, porra!

Beto: Qualquer desapropriação corresponde a uma troca. Qual é a troca? Se eu gostar do graffiti, mantenho. Do contrário, pinta-se por cima.

Aline: Eu não passo Suvinil nem no meu muro sujo, quanto mais um Basquiat! (risos). Se algum filho da puta pintar aqui, eu mando limpar!

Aline sai da sala novamente.

Mahon: Lembra de um artista que faleceu, mas a Prefeitura não pintou por cima porque um grupo de artistas não deixou. É válido destruir essa memória?

Aline: Maurílio Barcellos, lembro bem.

Beto: Isso acontece, Eduardo. Não adianta reclamar. As coisas mudam. Até mesmo o pintor tem esse entendimento de transitoriedade. Talvez haja mesmo o valor histórico sobre uma obra consistente. Ainda assim, a arte não se presta para ficar para sempre.

Mahon: Em que contexto surgiu Wlademir Dias-Pino no contexto da UFMT?

Aline: Bem, ele veio com 9 anos de idade, do Rio de Janeiro.

Beto: Ele é carioca, é um artista carioca da gema. Mexeu muito bem com a gráfica da Universidade. Mas ele já era o Wlademir. Fundou revistas, fez muita coisa. Mas ele não era uma pessoa daqui. Ele tinha toda uma influência de fora, um diálogo externo. Wlademir é o gráfico. É considerado vanguarda e muito valorizada na Alemanha, Bélgica, Noruega, nesses países que gostam de arte gráfica, de cartazes. Era um homem que representava o futuro.

Aline: E também tinha alguma coisa de Bauhaus no Wlademir.

Beto: Infelizmente, o Brasil não é o público do Wlademir. Ele é muito importante para o Brasil. É um gênio. Desde o poema-processo já se via. Ocorre que ele era um homem turrão, difícil. Se eu tirasse o tarô para ele, provavelmente sairia O Eremita.

Mahon: Nesse contexto, como é morar entre Cuiabá e Campo Grande?

Beto: Não estou preocupado com as pessoas. Me fecho na minha casa e vivo muito bem, obrigado. Leio os jornais do dia, tomo o meu tereré, fumo o meu cigarro e vou pintar. Não sou de sair. Não tenho vontade de morar em outro lugar, porque não me atingem pensamentos provincianos.

Aline: O que vamos fazer com o Bolsonaro?

Mahon: Diga você – que faremos com o Bolsonaro?

Beto: O Wall Street só fala do Bolsonaro, o povo louco para que ele ganhe.

Aline: Voltando à sua pergunta, não existe mais província. Manhattan é um tipo de província, se pensarmos em termos tradicionais. Como eu não converso quase nada com as pessoas, não passo raiva. Não dou confiança! (risos)

Mahon: Qual a sua visão sobre instituições culturais em Mato Grosso?

Aline: Eu acho que ruim com elas, pior sem elas. Eu já fui convidada para entrar na Academia de Letras e não topei. Tinha que usar salto alto, vestido, saia. Tinha que pentear o cabelo, ora!

Mahon: Você não faz parte de uma instituição que te aceite? (risos)

Aline se retira pela terceira vez.

Beto: No meu caso, havia poucos lugares para expor. Tenho 200 exposições no curriculum, 8 bienais também. Eu, João Câmara, Ivo Meirelles, Siron Franco, esse grupo foi muito especial da retomada da figuração brasileira. Eu era visto como parte dessa nova figuração nacional.

Aline volta à sala: Houve um cansaço na abstração. A saudade da figura motivou o sucesso desse grupo, inclusive do Humberto. A figura é ancestral. Vai ser difícil descolar completamente dela.

Mahon: E a meta-arte?

Aline: Sim, arte contemporânea discutindo ela mesma.

Beto: Também acho. A arte se discute muito nas instalações, na ambientações. Hoje, nas mídias eletrônicas, os truques fotográficos. É um começo. Mas não sei para onde a arte caminha.

Mahon: Arte é o que o artista diz que é arte?

Aline: Não sei, porra!

Mahon: Sabe sim. Responde!

Aline: É o tempo quem vai dizer. Quem faz a arte é o tempo.

Beto: Toda a vontade de ser gera uma convicção. É preciso convencer a si mesmo de que o que se faz é arte.

Aline: O mercado atrapalha muito essa discussão. Olha o caso do Romero Brito.

Beto: É outra característica contemporânea.

Mahon: Digo o mesmo de Paulo Coelho. Pode ser uma bosta, mas serve para quem está começando a ler. Milhões de livros para milhões de leitores. No caso do Romero Brito, ele mesmo vulgarizou a própria obra para atender ao mercado ou à política. Mas aí precisamos nos perguntar: quando a obra não é política?

Beto: Eu mesmo reagi a uma circunstância. Pintei o Boi-General. Houve militares que puxaram a espada para rasgar meus quadros.

Mahon: O que vocês estão vendo agora?

Aline: O Bolsonaro é um cafajeste. Mama nas tetas do governo e não teve proposta alguma de nada. Ao contrário – foi contra boas propostas. Pedro Taques foi outro. Prometeu muito. Colocou gente da família no governo, o Paulo Taques. Mas não realizou as promessas que fez.

Beto: Eu teria um fato a sublinhar – restaurou meu mural no Palácio Paiaguás. Lamento que os museus estejam fechados. O Brasil retirou dinheiro da cultura. Taí esse museu incendiado. É um símbolo.

Mahon: No tarô, Mato Grosso está no tempo da Torre.

Beto: Todos precisam passar por essa carta para poder sair da crise.