Na entrevista da semana, Eduardo Mahon conversa com o ator, diretor, professor André D’Lucca, reconhecido por peças teatrais como Os Segredos de Almerinda, Geni, Beco do Candeeiro, Politicagem, Proibido para Menores, Escola de Bonecas, Aluga-se, entre outras.

 

Mahon: Santo de casa faz milagre?

André: Faz milagre, mas quem está em casa não vê e não reconhece. Pelas mídias sociais, consigo acompanhar os feitos dos colegas. Estela Ceregatti, Ebinho, Bruno Bini etc. A gente tem muito santo que faz milagre aqui em Cuiabá.

Mahon: Até que ponto fazer sucesso em Cuiabá é ter sucesso realmente?

André: Eu acredito que o tempo separa o joio do trigo. Ao longo dos 27 anos trabalhando, já vi várias vezes verba pública ser doada sem qualquer resultado. Quantos cineastas ganharam projetos e desapareceram? Não me sinto fazendo sucesso. Estou sempre buscando, na estrada, em construção, evoluindo. Quando fui convidado para a série da HBO, as pessoas achavam que eu havia chegado a algum lugar. Essa é apenas mais uma etapa do meu trabalho.

Mahon: E por que o pessoal daqui não chegou “lá”?

André: Vivemos numa bolha. Para chegar no Rio/São Paulo, é preciso investimento. Para apresentar um trabalho meu no teatro do Leblon é preciso pelo menos de 30 mil para uma temporada de 1 mês para pagar a técnica, o local, a cenografia etc. As pessoas daqui pagam 100 reais para ver um artista de fora e não pagam 20 para ver um artista local que monta um espetáculo excelente.

Mahon: Por que você não bate as asas?

André: As pessoas que moram em Cuiabá não querem pagar ingresso. Na minha escola de teatro, mesmo tendo um lucro mínimo, muita gente me pede bolsa integral. Reconheço que a maioria das oportunidades estão fora. Mas já passei metade da minha vida fora. Me formei em Direito, entreguei o diploma para minha mãe, trabalhei 1 ano como advogado com o Flávio Ferreira e fui embora. Ocorre que para chegar ao Projac/Globo demorava 5 horas e o dia todo gravando. Prefiro ficar porque acho que aqui um ator como eu faz falta. Além do mais, me sinto velho. Eu me canso de não ter apoio, muito embora o meu trabalho seja tirar o leite de pedra. Por menor que seja, meu trabalho aqui faz diferença. Fiz 10 peças! Nesse sentido, minha produção é parecida com o Liu Arruda: ininterrupta. Preciso me reinventar o tempo todo. A escola me permite também mostrar que sou versátil, que não sou ator de um personagem só.

Mahon: A Novela das 8 da Globo é ambientada em Salvador com artistas brancos. Não sou politicamente correto, um sujeito que fica preocupado com o que vai falar pra não desagradar esse ou aquele, mas me pareceu algo tão artificial que é insuportável. O morador do Pelourinho não é loirinho de olho azul. Como é que você se sente no contexto artístico?

André: Desde que eu tive certeza de que seria ator – assistindo ao Anima na Escola Técnica – minha mãe me disse que “se você for ator, só vai fazer papel de escravo, de empregado doméstico”. Eu respondi – então serei o melhor escravo, o melhor empregado doméstico! (risos) O processo de inserção é muito lento. Para o Lázaro Ramos chegar onde chegou, demorou muito.

Mahon: Ainda assim, acho que Globo bolou esse programa dele como uma espécie de quota, para atingir a um nicho e se dizer politicamente correta.

André: Quando eu questionei a Rede Globo sobre a questão das favelas e os atores brancos que faziam os papeis principais naquela realidade, eles me responderam que “negro não vende”. O mercado internacional consome muito as novelas da Globo. Negros e índios não vendem. Conversando com o Arilson, ele me disse que, na hora do autógrafo, ninguém quer uma assinatura de índio.

Mahon: O brasileiro tem mais preconceito social ou racial? Quem sofre mais: o branco pobre ou o negro rico?

André: Acredito que predominantemente o preconceito racial é pior. É claro que um negro rico num carrão sofrerá menos. Vou citar um fato que ocorreu ontem. Um pai branco não quis deixar o filho dele comigo. Ele não acreditava que eu fosse o professor de teatro do filho dele!

Mahon: E aí? Como é que você sai dessa?

André: Continuei molhando as plantas. Ele ficou me olhando. A mãe de outro aluno deixou a filha dela tranquilamente na escola. Foi então que o sujeito foi embora. Hoje moro no Jardim Cuiabá e o que passo no caminho da minha casa à academia é absurdo. Os vizinhos se recolhem, trancam a porta. Quando Thaís Araújo disse que as pessoas mudam de calçada é a mais pura realidade. Eu vejo a reação das pessoas: mudam de calçada, seguram a bolsa, trancam a porta. A gente vê isso todos os dias! Já tive problemas no supermercado aqui em Cuiabá. Eu fui obrigado a deixar a mochila no guarda-volumes enquanto os outros andavam tranquilamente com mochila no mesmo mercado. A coisa é clara no shopping center, por exemplo. Os seguranças começam a se comunicar. Por ser negro, já sou suspeito. Um deles já me confessou que a minha presença mobilizou o shopping inteiro.

Mahon: E no meio rico? Como é que você é interpretado?

André: Aí depende do lugar e do horário. Na madrugada, o negro é objeto de desejo. Mas ninguém deles quer andar de mão dada com um negro. Ninguém deles quer apresentar para a mãe. Há muito fetiche sobre os negros, sabia?

Mahon: E qual a sua reação?

André: Depende da situação. Quando percebo que se trata de confusão pessoal, tento levar numa boa. Mas já ouvi até “propostas de compra”. Um cabelereiro da cidade me disse que o que falta para minha carreira são grandes contatos, mas se eu transasse com ele, seria apresentado aos figurões. Aí aprontei um barraco. Na noite, quando passam a mão em mim, vou puxando a pessoa pelo braço.

Mahon: O que você acha de ações afirmativas? E no meio artístico? Como é possível montar um elenco sendo obrigado a se submeter à quotas?

André: Acho que é importante ter ações afirmativas. Quando criança, eu era a única criança negra da sala. Minha mãe era professora e nós recebíamos bolsa. Mas era importante eu estar lá e importante para as outras pessoas que convivessem comigo. Mas a realidade é uma só: se não for a política afirmativa, os negros não vão entrar.

Mahon: Basta ver os gráficos brasileiros, as estatísticas. Qualquer estatística vai demonstrar que a população negra tem muito menos oportunidades. A única forma de resolver essa distorção é com políticas afirmativas de médio prazo. O negro não é menos capaz, nem menos inteligente. Não venham me dizer que o nível da educação brasileira vai despencar pela presença de negros na turma porque as médias não variam tanto assim.

André: Mahon, na Unic, quando me formei, havia 4 negros na turma em 80 pessoas.

Mahon: E na arte? É uma outra fronteira?

André: É muito difícil. Eu não vejo representado na maioria dos produtos culturais. Quero me ver representado. Eu adoraria que os elencos fossem equilibrados. Há um exercício que rola na internet com crianças onde elas apontam o negro como “feio”. A partir do momento que os negros começam a se ver, há uma identificação positiva. Cansei de ver famílias negras que se projetam brancos nas brincadeiras, no modo de ser. Lá em casa, damos bonecas negras. É claro que usamos bonecas de todas as cores, mas há bonecas negras Assumimos o cabelo crespo, usamos produtos para negros. Falta muito para nos sentirmos representados.

Mahon: Eu sempre digo à Luciene Carvalho para levar amigos negros aos meus lançamentos. Não é possível haver só gente branca. Não é possível que só haja leitores brancos, só haja escritores brancos.

André: A propósito, quero agradecer muito ter a Luciene na Academia de Letras. Ela nos representa.

Mahon: A Luciene me chamou atenção para uma questão relevante nos preparativos dos 300 anos de Cuiabá. Ninguém homenageia a população pobre, negra. Só as famílias tradicionais são lembradas. Ninguém cita que, no Clube Feminino, só entravam brancos até o Batista Jaudy romper com os medalhões da diretoria na base do tiro de revólver. E olha que estamos numa cidade eminentemente negra! Até que ponto esse preconceito vai se sedimentando ou você consegue sublimar?

André: Não consigo não. Chorei muito. Acontecem situações inacreditáveis. Nessa idade minha ainda sofrer?! As lembranças que tenho são as piores. No primeiro dia de aula no São Gonçalo, um colega me perguntou em que bebedouro eu tomei água para que ele não tomasse. Era nojo. Isso não dá pra sublimar.

Mahon: Eu sinto alguma aproximação entre o seu trabalho e o do Liu Arruda. Ocorre que o Liu colocou um espelho para o cuiabano se olhar, com todos os defeitos e qualidades. Nas colocações dele, porém, um via um quê diferente do seu: era uma caricatura do provincianismo. Mas você adiciona uma certa acidez, um acento sublinhado de enfrentamento social.

André: Você tem toda a razão. O humor é a única forma de fazer isso. Eu adoraria que as pessoas reagissem como você reage. Você leva na esportiva, como naquela música que fiz. Mas não é assim que funciona, eu levo muita porrada.

Mahon: Por exemplo... cite alguns casos para eu entender como funciona.

André: Vou te contar uma coisa mínima. Eu estava conseguindo um personal para cuidar de mim. Mas fiz uma piada com outra personal e simplesmente essa porta se fechou. Mas não vou deixar de fazer a piada.

Mahon: Eu também não deixo de fazer a crítica. Perco muito dinheiro com isso, mas não deixo de fazer a crítica e ponto final.

André: O Taques, por exemplo. Eu sabia que, a partir do momento que eu fizesse a crítica, as coisas mudariam. Ele era meu amigo, foi meu professor. Sempre apoiou o meu trabalho. Na época do Silval, ele me parabenizava efusivamente. Ele vibrava com as críticas que eu fazia. Quando fiz a primeira piada dele, a primeira reação foi me bloquear no Facebook. Na exposição da Dalva, ele se recusou a tirar uma foto comigo. Depois que eu cobrei, acabou tirando, mas extremamente incomodado.

Mahon: Ocorre o mesmo comigo. Ainda no começo deste governo, escrevi um artigo dizendo que a maior transformação que Taques poderia fazer seria nele mesmo, tornando-se uma pessoa mais agradável, mais sociável, mais emocionalmente inteligente. Daí então, ele começou a massificar o papo que eu gostaria de ser secretário e as minhas críticas eram motivadas pela mágoa. Então, a crítica serviria para ganhar um cargo.

André: Dizem isso muito na Secretaria, que você denuncia o governo no Ministério Público. Mas se você faz, quero te agradecer: muito obrigado! Alguém tem que fazer. (risos)

Mahon: Mas, por favor, volte na diferença entre a atuação entre Liu e você. Quando você encarnou o Liu, qual a diferença que você mesmo percebeu?

André: Quando comecei a minha carreira, as pessoas diziam que eu imitava o Liu. Mas nunca tinha visto ele representar. A proposta é completamente diferente. Anos depois, ao estudar o Liu para o espetáculo, consegui do Flávio Ferreira três DVD’s da FPL. Foi aí que comecei a entender o Liu. Percebi que a primeira coisa que eu precisava mudar era o tempo de comédia. Antigamente, a piada contava-se inteira. Hoje em dia, coloco micropiadas no meio até chegar ao desfecho da principal. Nas questões políticas, ele era muito mais ácido que eu.

Mahon: Eu vi! Cheguei a ver Liu desancar o governador na cara dele. Fiquei chocado. Perguntei aos meus pais: “como é que esse cara vai viver na cidade tendo desmontado o governador?”

André: Mas, naquela época, o Jayme e o Júlio respeitavam muito o Liu. Até mesmo, quando o Liu estava morrendo, o Júlio sofria. Havia uma ligação. Hoje em dia, quando faço uma piada da mesma forma, passamos a ser inimigos pessoais dos governantes. Você é um dos poucos que lida numa boa. Até a família Riva sabe lidar com críticas. O Taques não.

Mahon: Acho que o humor é como a imprensa. Orwell dizia que Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade... O humor que não debocha, que não questiona o próprio ser humano, os governos, o poder enfim, é de qualidade inferior. Me diga qual a diferença entre a recepção do Maggi, do Silval e do Taques?

André: Do Maggi, não tive tempo para saber. Eu estava fora, morando na Europa e depois no Rio. Quando cheguei já era transição. Recordo apenas do Maggi pedindo voto para o Silval. Eu gostava mais de gostar com o Silval. Ele era mais escrachado. Me perseguia de forma mais aberta. As campanhas publicitárias caíam por ordem do Governador. Então, ele era muito descarado, garimpeiro mesmo. Não fazia questão de esconder. Depois de me ignorar um tempo, levei um calote do governo e minhas declarações começaram a repercutir. O Pedro tentou impedir um espetáculo meu na Assembleia. Fiz uma permuta para a ALMT e consegui um dia de apresentação. Fiz o “Vou de Taxi” para a Almerinda. Um assessor do Guilherme Maluf me abriu o jogo: o Governador pediu para cair a pauta. O Guilherme reuniu a assessoria para saber o que faria. Eu apresentei de qualquer jeito, lotou o teatro, foi um sucesso. Na época, Janaína queria que eu circulasse Mato Grosso com Almerinda vai de Taxi. Eu esperava a presença do Governador.

Mahon: Se eu fosse Governador, faria questão de ir. E você ia ficar descadeirado.

André: Pois é! Ia mesmo! Certa vez, fiz uma piada na frente do Riva. Ele estaria ensinando a Janaína conjugação verbal: eu desvio, tu desvias, ele desvia. O Riva manteve-se firme. O que eu não entendo o Pedro é a intolerância. Eu quero muito entrevistar o Pedro, mas ele não aceita. O Antero brincava com isso – Pedro ganhou porque não falou com a Almerinda. Ele não me recebe. Para o Senado, votei nele.

Mahon: Eu também. Para o Senado e para Governador.

André: Para Governador, não votei. Já estava pressentindo algo errado. Meu próximo espetáculo será a Guerra dos Tronos. Vai sair em breve. Como não vai passar na HBO, vamos ter em Cuiabá a última temporada do Guerra dos Tronos. Vou falar do governo Taques.

Mahon: Quem será o anão?

André: Queria muito o Muvuca como o anão! (risos) Depois do Relatório Figueiredo, vou produzir a Guerra dos Tronos.

Mahon: Qual seria a vantagem do Mauro Mendes quanto ao Pedro Taques?

André: A esposa! (risos) De todos os gestores, a Virgínia foi a mais inteligente. Ela mandava mensagem me autorizando a fazer a piada. Mandava bilhetes, tinha uma postura diferente. Até se solidarizava. Eu fazia críticas diretas no Facebook onde eu a marcava. O Pronto-Socorro, por exemplo. Dizia: “Virgínia, você internaria sua filha aqui?” Ela tinha uma postura diferente do que me ameaçar de processo.

Mahon: Como ficamos com Emanuel Pinheiro?

André: Ele é uma tragédia anunciada, mas o Wilson era uma tragédia conhecida. (risos) Eu não esperava outra coisa que não fosse o que está aí. Não mudou nada. Falar que não evolui seria mentira. Mas tudo evolui muito lentamente.

Mahon: Quero tocar num último assunto polêmico: verba pública. O Marchetti me deu uma entrevista onde citei uma colocação dele que me pareceu muito inteligente. Quem ganha projeto nesse governo é o sujeito que sabe preencher formulários. Me incomoda a falta de apoio ao artista, mas me incomoda também a recorrente necessidade de dinheiro público...

André: É preciso sim de verba pública. Se eu tivesse verba, teria um alcance muito maior. O mercado precisa ser construído. Desde que a lei Hermes de Abreu foi criada, fui contemplado uma única vez. Já li essa colocação do Marchetti sobre como preencher formulários. Mas é preciso também ser amigo do rei. Sei de casos de onde alguns projetos foram aprovados e, quando chegaram à Secretaria, caíram. E os projetos que caíram eram oriundos de pessoas que fizeram críticas.

Mahon: Tenho uma amiga, Icleia Lima Gomes, que diz haver muito homem de saia no teatro em Mato Grosso. Em que medida ela está certa?

André: O que acontece é que os homens de saia fazem mais sucesso. Há de tudo aqui. Teatro performático, por exemplo, para 15 a 20 pessoas. Eu faço teatro para massa. Não tenho patrocinador público ou privado. Então, o público é o meu patrocinador, é ele que me banca. Eu popularizei meu ingresso há anos. A chance de lotar uma comédia é muito maior do que um drama que não chega a 15%. Meu espetáculo “Geni” não tem público. Uma frase recorrente que ouço é – a vida já é muito difícil, a gente quer rir, quer comédia. É um fenômeno brasileiro. A grande maioria do povo não tem a bagagem suficiente para gostar de uma peça como o Púcaro Búlgaro. Quando peguei o seu livro Alegria, a primeira coisa que me veio à mente foi Saramago. Mas quem do povo entende? As pessoas têm dificuldade de pensar. Incomoda, é difícil.

Mahon: Onde está a elite de Cuiabá? Esse povo que paga caro restaurantes, viaja para a Europa, onde é que está essa gente?

André: A Terezinha Maggi já deixou bem claro numa frase dela há alguns anos. Quando ela queria ver um espetáculo, pegava o jatinho e ia ver teatro fora daqui.

Mahon: A minha última pergunta, diante de tudo o que você falou, continua sendo a mesma: santo de casa faz milagre?

André: Claro que não! Não tenho o mínimo de conforto aqui. Estou sem carro. Não é possível trabalhar tanto e tantos anos e não ter um carro. Mas, de vez em quando, alguém olha, alguém vê, alguém repara no meu trabalho. Você não sabe a alegria que foi quando o Luiz Marchetti me distinguiu como o artista do ano em 2017. Chorei muito ao ler o Circuito. Quando a Roseli me processou também foi uma vitória.