Nessa entrevista, a historiadora, professora e especialista em cultura indígena Anna Maria Ribeiro F. Moreira da Costa dá uma aula sobre a própria experiência com os Nhambiquara. Anna Maria é sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e autora de vários livros, dentre os quais destacamos Encantados da Terra Brasilis, Ensino (d)e História Indígena e O Homem Algodão.

 

Mahon: Índio quer apito?

Anna Maria: Quer!

Mahon: Que apito que o índio quer tocar?

Anna Maria: Vamos definir esse apito como direitos de qualquer outro cidadão.

Mahon: Mas ele não é qualquer cidadão.

Anna Maria: Mas ele não diz que não é um cidadão. Ele quer ser reconhecido como gente, como ser humano. O choque inicial foi muito grande. Os invasores acreditavam que os índios não tinham alma. Essa aproximação é uma das alternativas que eles adotaram e que nós também adotamos, mas o fato de se despir de roupas e adornos, não furta o direito básico de vivência.

Mahon: O que conta mais para o indígena: o povo de onde vem ou o Brasil?

Anna Maria: Sem dúvida, importa muito mais o povo de onde ele vem. É a ordem social que define a posição desse sujeito.

Mahon: Em que medida a integração é saudável e oportuna? Em que medida deve ser evitado qualquer contato com os povos indígenas?

Anna Maria: Redoma de vidro, nunca mais. Acho que não há mais espaço para promover esse tipo de política com 200 povos, com 200 redomas. Eles mesmos não querem essa redoma, esse afastamento absoluto. Há casos que a Funai ainda continua com essa perspectiva da década de 60 e 70 com pequenas comunidades.

Mahon: Como é que o índio se compreende vestido com uma camisa do Flamengo e dizendo-se indígena?

Anna Maria: Aí vamos entrar no conceito de identidade que não está necessariamente na forma de se vestir. Se eu chegasse aqui vestida de baiana, você jamais me identificaria como baiana. Passaria tudo na sua cabeça, menos que eu sou uma baiano. Vestir uma camisa do Flamengo não significa nada para eles. Morei seis anos com o povo Nhambiquara, próximo de Comodoro. Certa vez, fez frio. Um índio pegou um vestido meu para cobrir seu corpo. Na cabeça dele, jamais passou a hipótese de identidade feminina. Ele tomou a roupa como proteção contra o frio. Portanto, isso não vai interferir no ser dele. Outro exemplo que posso dar: eu liguei sem sucesso para uma amiga minha de lá que queimou o celular. Ocorre que o celular era do pajé que morreu. Como eles não ficam com os bens de quem morre, o celular foi no conjunto.

Mahon: Quando é se ultrapassa a curva identitária?

Anna Maria: Essa pergunta é muito difícil. Não depende de uma pessoa “deixei de ser índio”, mas da comunidade. É a comunidade quem dá esse parecer, não um ser isoladamente. Mas quero ser muito clara quanto ao meu conceito de cultura. Cultura é algo que muda, que se transforma. Nós mesmos permitimos uma mudança de hábitos. Curiosamente, os indígenas devem continuar os mesmos. Por quê?! Uma vez cheguei numa tribo Nhambiquara atrás de uma panela de cerâmica. Mas só havia alumínio na comunidade. Passou um tempo e eu insisti – cadê a panela de cerâmica? Ninguém acreditou. Fomos fazer a panela. O barro ficou de fora da demarcação. Pegamos o barro, carregamos nas costas. Isso demorou muitíssimo. Dias depois, uma criança quebrou a panela. Uma mulher me explicou as vantagens da panela de alumínio. Ora, esse povo deixou de ser indígena porque passou a cozinhar numa panela de alumínio? Deixou de fazer a bebida de baixa fermentação? Deixou de fazer as comidas típicas?

Mahon: Concordo contigo. As pessoas pensam que “tecnologia” é coisa de branco, quando todos os povos têm suas próprias tecnologias.

Anna Maria: Olhar para o estranho, incomoda. Freud tem um texto muito interessante sobre isso. Olhar para o estranho me despe porque sou um estranho ao olhar do outro.

Mahon: Mas há uma bruta incompreensão com o índio andando de Hillux, usando Rolex e assistindo a novela das oito. Esta comunidade merece um trato diferenciado ou a magia se desfez por completo?

Anna Maria: Dentro desse universo, há diversos povos indígenas que estão comercializando seus valores. Nem toda a comunidade se beneficia com essa comercialização ilegal. Algumas comunidades são a favor dessa práticas, outras são contra. Precisamos pensar que, desses 200 povos diferentes, há muitas maneiras diversas de interagir. São caminhos que os índios estão tomando por conta própria. Achei bárbaro o começo da entrevista “índio quer apito”. Sim, quer apito para isso! Comércio, escola, hospital, entre outras atribuições autônomas.

Mahon: Ocorre que o pressuposto que a Constituição parte é a conservação da terra, do espaço, para haver condições físicas de manutenção da tradição.

Anna Maria: Mas não se engane! Uma floresta posta à baixo é uma tragédia para o indígena. Ele vai perder dezenas, centenas de espíritos. Antes mesmo de pensarem que vai faltar fruta e caça, o indígena vai se ressentir pela afetação dos espíritos. Essa negociação ilegal de madeira causa um caos nas comunidades. Se o bem é comum, se o bem pertence a quem precisa, o que acontece quando essa riqueza é comercializada e esse ganho não é partilhado, dá um problema seríssimo na tribo. Não é lícito ter uma casa melhor, mais instrumentos do que se necessita, haverá uma diferenciação brutal dentro da aldeia. Haverá conflitos. Inevitavelmente, haverá conflitos. Nós estamos falando de uma sociedade sem Estado! Nem o líder pode determinar o que os outros devem fazer. O líder dá o exemplo. Os demais são jungidos pela vergonha a fazer o que é preciso para a aldeia. O adjetivo de “preguiçoso” é o que de pior pode haver numa comunidade indígena. Então, é impossível viver numa comunidade sem se comunicar, sem estar casado, sem participar da vida comunitária. Não casar é fatal. Como perpetuar a sua identidade e a identidade do grupo?

Mahon: Eu fico curioso nesse ponto. Quando algum antropólogo dá uma explicação dessas, parece que o índio é aquele do Caetano: “Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante/ De uma estrela que virá numa velocidade estonteante/ E pousará no coração do hemisfério sul/ Na América, num claro instante”. Não há muito romance na figura indígena como sábia? Não há índio sacana? Índio orgulhoso? Índio malandro?

Anna Maria: Tem! Tem sim. Mas ele é sabedor que está fora dos padrões. Estou mergulhada no universo indígena há mais de 40 anos. Eles são muito ciumentos. Há muita briga por causa de relações extraconjugais. São humanos! Cometem tantas falhas como nós. Voltando para a “sociedade sem Estado”, no entanto, as ações individuais precisam estar vinculadas à comunidade. Se o índio não for eficiente, não serve para viver em grupo. Todos acreditam no pajé, na sabedoria coletiva. Se pensarmos bem, aprendemos que “Jesus voltará”. Há lógica para o indígena quando um pajé diz “um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante”. Entende? Quando há uma quebra nessa tradição, o pajé fica com a intermediação com o divino, com os espíritos ancestrais, enquanto outros ficam com pautas profanas: escolas, exploração mineral, manejo de árvores, remédios etc. Mas não podemos esquecer que o indígena tem uma sabedoria, uma tecnologia, que permitiu a vida por milênios.

Mahon: E como se tratam os velhos, por exemplo?

Anna Maria: O velho é denominado como “pescoço fraco” ou “pescoço quebrado”, nas comunidades Nhambiquara. Ele não pode mais carregar nada, não pode caçar, enfim, exercer função. Ele vai ficar na oca. A função social do velho é ficar ali, contando histórias, olhando os mais moços. Ninguém vai rir ou desmerecer o velho. No universo Nhambiquara, não há a reverência. Nem mesmo quando o velho faz a ligação com o mundo espiritual. Mas ele é importante como exemplo, como acúmulo de conhecimento. É ele quem indica as folhas, as raízes, os lugares de caça.

Mahon: O índio é machista? O homem vale mais na comunidade? Como ele vê o nascimento de uma mulher?

Anna Maria: A menina vale muito mais. Ela é a responsável por perpetuar a identidade. Quando se casam, o homem vai morar na casa do sogro. Quanto mais mulheres esse índio tenha, mais braços haverá na própria casa. A mulher é o reforço da casa. Embora exista a divisão sexual do trabalho e aparentemente uma colocação inferior, quando se convive diariamente se vê que a mulher não é diferente. A mulher decide o futuro da casa, mesmo em detrimento da vontade do homem. Se a mulher não quiser sair de um determinado local, a comunidade ficará. Nenhum plano será colocado em prática, se as mulheres não forem consultadas.

Mahon: Um homem pode ter mais de uma mulher?

Anna Maria: Pode.

Mahon: E uma mulher pode ter mais de um homem?

Anna Maria: Não.

Mahon: Então, é machismo.

Anna Maria: Não é machismo! Como as mulheres são tratadas de forma igual, o homem casado com duas mulheres deve trabalhar o dobro. As mulheres se tratam como irmãs e, por isso, recebem uma mesma quota. É dureza para o índio ter duas mulheres! O conceito de machismo na sociedade ocidental não pode ser transplantado com exatidão, isso seria errado.

Mahon: E o suicídio? Quando é que um Nhambiquara conclui que a vida não tem mais qualquer valor?

Anna Maria: Nunca vi um caso. Já ouvi sobre os Kaiowá. Ali sim há um número assustador. O suicídio recai sobre crianças e adolescentes, a maioria por enforcamento. Os estudiosos que foram estudar o fenômeno não conseguiram chegar a uma conclusão. Há assassinatos que são simulados como suicídios.

Mahon: E homicídios?

Anna Maria: Há sim. Principalmente por ciúmes em relações extraconjugais. Não há como negar a autoria. Nas comunidades Nhambiquara, os crimes geralmente gravitam em torno de ciúmes. O criminoso precisa sumir. Caso contrário, é possível que ele seja morto. Pode ser que a comunidade imponha uma “exclusão” de 10, 15 anos. Há sim uma marca contra os que descumprem os preceitos da aldeia. Cada sociedade convive com essa infração de uma maneira. No geral, entretanto, a morte é exceção. A morte é a perda de mão de obra e, portanto, é um ato absurdo.

Mahon: Vamos falar do quotidiano. Que horas é o despertar da aldeia?

Anna Maria: Muito cedo. Antes do sol raiar. Dormir na aldeia é a pior coisa que existe nesse mundo. Eles mantem vigília o tempo todo. Estão atentos contra animais, contra a chuva, contra inimigos, enfim, dorme-se mal. Outra questão é o fogo. A função da mulher é conservar o fogo, ainda que mínimo. Há vários fogos dentro de uma casa que identifica o número de casais. Quando alguém tem um pesadelo, o índio não sai de casa. É uma premonição, uma impressão ruim. Se tiver tudo bem, o índio vai se integrar nos trabalhos coletivos: ou caça, ou plantação, pegar palha, fazer pequenos reparos em casa. O índio tem trabalho que não acaba.

Mahon: Imagino que o trabalho seja profundamente organizado. No meio da selva, é preciso maximizar o tempo e o trabalho. Como é que fica o interesse individual em detrimento do interesse comum?

Anna Maria: Eles precisam seguir os sinais da natureza. Do contrário, podem ficar 1 ano sem comer. Devem saber a época de roçar, de queimar, de plantar. Mas não se trabalha apenas num único dia. A ausência eventual de um índio será compensada, porque um vai cobrir o outro na próxima falta. É o coletivo, Eduardo!

Mahon: Mas isso não é totalitário?

Anna Maria: Não, porque esse peso será dividido. É uma vida muito difícil. O índio que está nos meus sonhos, é o índio que mais brigava comigo. Ele me enchia a paciência! (risos) Exigia de mim uma postura alheia ao meu universo. Me chamava de preguiçosa porque eu não pegava água, não pegava lenha, enfim.

Mahon: E você fazia o quê? Não pegava lenha, não pegava água? Você era preguiçosa sim, ora bolas!

Anna Maria: (risos) Eu fui para ser professora. Eles conseguiam enxergar a necessidade de eu estar ali. Eu consegui me integrar na medida do possível. Precisei fazê-los entender que não fui criada para a realidade deles. Aos poucos, eles foram percebendo que deveriam conviver comigo, sem que eu tivesse que dividir o trabalho coletivo. Eu lavava roupa, lavava louça, colhia frutas e insetos (os Nhambiquara consomem muito), conversava com as mulheres, enfim, um conjunto de atividades que eram possíveis.

Mahon: Como se faz um pajé? Para quem o Nhambiquara reza?

Anna Maria: O pajé olha cada criança que nasce. É muito atencioso. Ele observa ao longo do tempo. Mas não se apropria da criança ou do jovem. No caso Nhambiquara, a criança se mantem no seio familiar. Ele aprende ao longo dos anos com o convívio do pajé. Ao longo dos anos, o pajé viaja como um gavião e chega a Deus (uma figueira suspensa com raízes que acariciam a Terra) para transmitir essa sabedoria. Pelas raízes da figueira e pela pena que se usa no nariz, o pajé será orientado sobre quem ensinar.

Mahon: A homossexualidade é tabu?

Anna Maria: Sim, é um tabu sério. A convivência entre homens é muito próxima. Eles andam juntos, algumas vezes de mãos dadas, trabalham juntos, se banham juntos e, durante a caça ou qualquer outro deslocamento maior, dormem juntos, agarrados. Na nossa leitura, é que possa haver um ou outro caso.

Mahon: Quer dizer que você acha que, num universo de um porrilhão de índios homens, não tem nenhum gay pra contar a história? Nem entre os leões, os tigres, há uma população tão hétero!

Anna Maria: (risos) Sim, pode haver. Mas não há essa denominação. Acho que é um tabu. Não se fala nisso na aldeia, pode gerar uma celeuma.

Mahon: Nós, brancos, chocamos os índios?

Anna Maria: Sim, sobretudo na criação das crianças. É aí que há, na mentalidade indígena, a diferença mais marcante. Um Nhambiquara jamais reprime o filho. Jamais castiga o filho. Ele se serve de outra pessoa da comunidade para conversar com a criança, tentando demonstrar que é perigoso o que se está fazendo. Não é o pai, nem a mãe quem corrige. Pode ser a cunhada, a tia, outra pessoa necessariamente. Insistem tantas vezes quantas forem necessárias, sem usar a violência. Não levantam a voz, não interferem pela força. Isso seria uma violência brutal. Outra diferença é a quantidade de bens suficientes para viver. Eles têm um cesto grande para guardar tudo. As posses do índio é tudo o que cabe no cesto. O invisível é mais importante para as comunidades indígenas.

Mahon: Quanto de índio tem o brasileiro?

Anna Maria: Muito. Temos muito de índio, mas nem sabemos disso. Essa nossa forma de ver a vida, essa alegria, essa tranquilidade (não vá me confundir com indolência), essa capacidade de mistura, esse jeito Macunaíma que a gente tanto reprime, faz o brasileiro levar consigo uma grande porção indígena. Nossa parte indígena é o Macunaíma que cada um leva em si.

Mahon: Até que ponto isso nos faz mal? E nos faz bem?

Anna Maria: Nos faz mal ao nos separar da cultura indígena.

Mahon: Se é um Macunaíma o índio dentro de cada brasileiro, o que será o nosso Muiraquitã?

Anna Maria: O bom viver. Esse é o sonho indígena.