Nesta semana, Eduardo Mahon conversa com o professor de literatura António Manuel Ferreira, titular da Universidade de Aveiro, em Portugal. Com várias publicações no curriculum, inclusive da tese de doutoramento publicada pela Imprensa Nacional, o professor António Manuel é especialista em Branquinho da Fonseca, tendo organizado a publicações das obra completas do autor lusitano.

 

Mahon: Quanto de português tem o brasileiro?

António Manuel: (risos) Bem, além da língua e da história, não muito. Cada vez que venho ao Brasil, acho que o brasileiro não tem uma relação maior com Portugal. É um país completamente diferente, uma entidade muito própria.

Mahon: Não sei se você chegou a ler Os Donos do Poder, uma obra clássica do Raymundo Faoro, onde ele resgata as características portuguesas na formação brasileira, com todos os ônus e bônus.

António Manuel: Não li. Andando nas ruas e nos restaurantes do Brasil, o afastamento contemporâneo tem se sobreposto aos estereótipos tradicionais.

Mahon: E o que temos de diferente?

António Manuel: É mais fácil falar dos portugueses. Nós não temos a exuberância brasileira.

Mahon: Exuberância ou exotismo? É uma provocação...

António Manuel: Exuberância mesmo. O exotismo é pejorativo. Não se comparam a simpatia brasileira com o jeito fechado do português. Nunca me senti mal no Brasil, já vim cá tantas vezes e sempre me senti muito bem acolhido, da parte de toda a gente. No hotel onde retornei em São Paulo, até o recepcionista me reconheceu! Se pensarmos nas relações entre os dois países, o Brasil transforma muito mais Portugal do que o contrário. A novela, por exemplo, impactou muito os portugueses, transformou o interior das casas, até as próprias mulheres e a forma de se colocar na sociedade. Os grandes cantores brasileiros são todas figuras gradas em Portugal – Caetano, Bethânia, Gal, Chico Buarque, Gil, Ney Matogrosso, até mesmo outros cantores que nem são muito conhecidos aqui e fazem sucesso lá. Além do mais, há muitos brasileiros em Portugal que, aos poucos, vão se misturando. Essa facilidade de contato do brasileiro adoça a relação com o europeu de maneira geral.

Mahon: O brasileiro adoça a vida europeia?

António Manuel: Sim, isso é positivo e negativo. Quando eu estava a ensinar na USP, vi um telejornal português e me emocionei com a apresentadora. O rigor, a correção, a exatidão daquela mulher portuguesa. Tudo o que ela dizia, eu acreditava! Essa doçura brasileira às vezes não é digna de crédito.

Mahon: Parece-me que essa característica é transferida para a língua. Essa exatidão do infinitivo contrasta com a inexatidão do nosso gerúndio. Vocês estranham muito o nosso uso abusivo do gerúndio?

António Manuel: Não, não mais. O infinitivo é ainda mais forte em Angola. Porque o falar corretamente o português é uma distinção social. A pessoa que fala bem pertence a uma classe social alta em Angola. Isso vê-se mesmo nos programas de televisão. Lá, o povo tenta falar muito bem, como forma de status.

Mahon: A língua serve o homem ou o homem serve à língua?

António Manuel: A língua serve ao homem, sem dúvida alguma. São entidades vivas, não podem viver petrificadas. Dentro em breve, o que se falará no Brasil será tão característico que não se entenderá em Portugal e vice-versa. Isso é natural. Não devemos viver presos em regras imutáveis, sob pena de falecer a língua. Os romanos tentaram travar o latim. Quanto mais travavam o latim, mas se desintegrava. Não fosse esse engessamento, estaríamos nós a falar latim até hoje.

Mahon: Que história é essa de “descolonização” da literatura? Teoricamente, é um discurso que se mantem de pé?

António Manuel: É uma pergunta que deveria ser feita aos escritores. Não me interessa a literatura de um determinado país e sim a literatura em português. Descolonizar o quê? Ora, se quisessem descolonizar a literatura em Moçambique, não deveriam escrever em português. Em Cabo Verde, o Germano de Almeida não deveria usar o português, quando na verdade ele é até correto demais, quase castiço como em Coimbra.

Mahon: “Nós precisamos descolonizar a literatura, em termos temáticos, porque os temas clássicos não nos dizem respeito, não olham para as nossas especificidades. Devemos colocar a nossa própria realidade na literatura”, é o que dizem.

António Manuel: Bem, mas isso parece ser uma evidência. Qualquer autor acaba por colocar na obra a própria realidade, de um modo ou de outro. A questão não é essa. A questão é como vou escrever e, sobretudo, como vou pensar. Vou fazer um romance moçambicano que será lido apenas por moçambicanos, que será lido apenas em Moçambique? O Miguel Torga dizia que o universal é o local sem fronteiras. Os verdadeiros artistas conseguem ser universais.

Mahon: Existe literatura panfletária?

António Manuel: Eu acho que hoje, em Portugal, não existe. O que existe é uma espécie de escritores áulicos, de palácio. São eles ligados ao poder. São exaltados, festejados, procurados, sobretudo pelo governo. São aqueles que resistiram a Salazar e tiveram um papel importante na revolução. Mas literatura é a pior coisa que existe. Aliás, isso não é literatura, é apenas um informativo político. É o tempo quem vai coar a qualidade de cada um.

Mahon: O avanço dos estudos culturais sobre a teoria da literatura alarga o método ou mistifica questões teóricas?

António Manuel: Isso vai muito mal, há interferências impossíveis. Por outro lado, há coisas positivas. Os estudos culturais trouxeram para o campo do estudo da literatura temas e autores que estavam completamente afastados da universidade. Ocorre que isso almeja uma “função social da literatura”.

Mahon: Isso não arrepia você?

António Manuel: Arrepia sim! Mas o tempo é o melhor crítico. O tempo vai peneirar e ficar apenas com pouquíssimos autores. O século XVI é Camões. O século XX é Pessoa, mesmo que tenha havido um Antonio Lobo Antunes. Não adianta ter ilusões. Não se vê ninguém mais na perspectiva de longo prazo.

Mahon: O que faz a grandeza dos grandes? É a pergunta do Bloom...

António Manuel: É a pergunta de 1 milhão de dólares! É a capacidade de tocar o ser humano, não a pessoa de uma determinada época. é falar das coisas que realmente interessam às pessoas. Por isso, continuamos a ler Shakespeare ainda hoje. São os clássicos, são os escritores que falam para todos os tempos.

Mahon: Qual o problema do escritor se tornar um cânone em vida?

António Manuel: Morreu. O escritor haverá morrido, no aspecto teórico. Mesmo que continue produzindo. Porque não interessa o futuro, já há suficiente para torná-lo cânone. São poucos os escritores que conseguem isso. Shakespeare teve algum sucesso, mas não imaginava o que ele mesmo seria. Esse indivíduo já está recompensado!

Mahon: Existe alguma resistência crítica ao Saramago ou é impressão minha?

António Manuel: O Saramago é muito mais famoso no Brasil e na América Latina do que em Portugal. Já ouvi brasileiro dizer – também é nosso. Bem, podem ficar com ele. Em Portugal, há grandes detratores do Saramago. Ele era comunista e nunca foi capaz de fazer um gesto de consciência, de autocrítica diante das barbaridades do socialismo real. E, depois, é visto como um indivíduo a apanhar a “onda” do que estava acontecendo naquele momento. Romance histórico? Então, farei isso, um romance histórico. Para ser muito sincero, prefiro o Lobo Antunes. É o que se passa entre o Eça e o Camilo. São visões do mundo diferentes. Isso se manifesta na escrita. Essa luta entre os dois se repete com Saramago e Lobo Antunes.

Mahon: Em 50 anos, quem vai ganhar? Acho que o Saramago, em função do Nobel.

António Manuel: O Nobel será uma nota de rodapé. Sobre o Ensaio da Cegueira, Saramago declarou que “serei feliz se for lembrado por ter escrito a cena do cão lambendo lágrimas”. Só que a cena não é dele e sim do Camilo Castelo Branco. Uma figura quase idêntica.

Mahon: Há uma noção de literatura nacional, literatura regional, literatura de transição, em períodos de independência ou de “descolonização”. Parece-me fraca essa questão. O que você acha?

António Manuel: A melhor resposta seria retirar todos os adjetivos. Você não faz literatura mato-grossense. Pelo menos, acho que você está muito distante disso. Faz apenas literatura, isso sim. Essa questão do nacional foi importante no século XIX, onde havia, por exemplo o Volksgeist, “espírito do povo”, uma expressão tipicamente alemã. A reinvindicação da nacionalidade gerava essa pauta. Trata-se da mesma questão da tal descolonização literária. O que há é literatura.

Mahon: Até que ponto é possível ler o que o autor não escreveu?

António Manuel: É preciso primeiro ler o que o autor escreveu! O verdadeiro escritor não sabe exatamente o que escreve. Ele não sabe o significado integral da própria arte. Só compreende tudo o que se escreve quando se trata de um panfleto. Aí sim, justifica-se ponto a ponto. O escritor não tem pautas prévias. Isso é característica dos menores. Aliás, esse é uma crítica ao Saramago.

Mahon: Falando nisso, como o crítico percebe a opção política do autor?

António Manuel: Eu acho que depende da coerência do discurso do autor e o mundo que ele representa. Outro óbice do Saramago – tinha uma vida burguesa e vivia abraçado ao Fidel Castro. Eu valorizo tudo do autor. Não existe literatura sem autor. Estamos num paradigma holístico, é preciso considerar tudo. O verdadeiro texto literário é complexo, é compósito, não é informativo. Para isso, temos os jornais.

Mahon: Você aproxima literatura à arte. Depois do neo-abstracionismo, o artista ficou com o encargo de dizer o que a arte é. Furtou-se da crítica essa função?

António Manuel: Há, na poesia portuguesa do século XX, muitos publicitários. Alexandre O'Neill era um grande publicitário e fazia poesia. Um dos slogans dele era “há mar e mar, há ir e voltar”. Isso é uma frase publicitária ou é um poema? (risos). Ainda no meu exame da faculdade, esteve presente essa questão. O problema é a intencionalidade que já não é mais a do século XIX ou do começo do século XX, onde a crítica fazia a arqueologia da obra. Para a avaliação do teor literário, contam os múltiplos contextos.

Mahon: Mas o texto não deve ser lido pelo que é?

António Manuel: Exatamente. Se o texto aparecesse sem a referência autoral, sem a nota taxativa de intenção, teríamos que dizer que aquela frase é um poema. Mas não foi o caso. É por isso que literatura é tão complexa. Todas as teorias que tentam simplificar o que é complexo vão morrer.

Mahon: Então, como fica a literatura comparada? Se o ato de escrever é complexo e singular, em que medida é possível comparar circunstâncias diversas?

António Manuel: Nesse aspecto, não pode. Fica-se em busca de questões menores – os temas, o estilo e, sobretudo, o estudo da personagem e o espaço que está muito na moda hoje em dia. Você realmente tem razão. A rigor, não é possível comparar um autor com o outro e, com mais razão, autores em tempos diferentes. A gênese do texto é tão complexa e a leitura profissional é algo tão profunda que a mera comparação não é o melhor método, digamos. Aliás, uma das questões difíceis da literatura é definir o que é um conto. Nos meus estudos, concluí que se deve mergulhar em cada texto enquanto singularidade.

Mahon: Você tem algum preconceito contra best-seller?

António Manuel: Não, não tenho. O best-seller é um livro que vende muito, ponto! (risos) Os Lusíadas é um best-seller, assim como Cervantes e Machado. O que mais vendeu na música até hoje foi Mozart, porque vem vendendo há séculos. A questão não é vender muito. Há autores portugueses que produzem livros para o Natal, eu francamente não gosto do viés comercial. Fico pensando: os Maias demorou 10 anos, a Eneida demorou 10 anos. Evidentemente há exceções. Mas não tenho preconceito contra um livro que faz sucesso apenas porque obteve uma vendagem expressiva. A questão é distinguir entre o best-seller sincrônico e diacrônico. O que geralmente acontece no best-seller é que a escritura é de consumo, o autor não fala para o futuro.

Mahon: Até que ponto o leitor completa o escritor?

António Manuel: Não completa, atualiza. O leitor pode ativar potencialidades do texto. Não é possível chegar ao extremo de dizer que o autor e o leitor são coautores ou co-construtor do texto. O leitor pode concluir até mesmo o que o escritor não se apercebeu.

Mahon: O Oswaldo Montenegro escreveu uma música cuja letra é famosa – “fiz um drops de hortelã da bala que te dei/ para tirar o porém, da frase que eu nunca fiz”... essa música foi cobrada num exame vestibular em que o próprio autor se inscreveu. Ocorre que ele mesmo errou a questão de interpretação de texto.

António Manuel: A atitude dele é lamentável (risos). Não tem sentido nenhum. Se ele escreveu um poema, interessa o que resultou. Se quisesse dizer a intenção, deveria ter escrito um livro a explicar o ponto de vista dele! Interessa o que disse aos outros e não o que quis dizer. Os pássaros saem do ninho e ganham independência. Em Portugal, há uma polêmica com um poeta vivo, Joaquim Manuel de Magalhães, que está a encurtar a poesia publicada. Ele está transformando os textos. O que acho é que ele está empobrecendo os textos, mas o texto é dele! O que não se pode é controlar a crítica.

Mahon: E a leitura ideológica dos textos do passado?

António Manuel: Acho isso um absurdo. Não se pode descontextualizar as coisas. Pode-se ler com a atualização do presente, mas não descontextualizar. Por exemplo, Homero. Usamos as ferramentas de hoje para ler o passado. Uma leitura séria precisa levar em consideração os contextos.

Mahon: Mas você deixou de responder à questão. Hoje existem dezenas . É válido ler um autor pelo que ele não escreveu?

António Manuel: Não. Não é válida uma leitura ideológica, utilizando um texto como pretexto de um ponto de vista. É voltar ao século XIX. O texto não é apenas um caminho para a psicologia do autor. Acho isso muito mal. É manipulador, falsificador, empobrecedor. Se vou à leitura do texto já com o preconceito, vou encontrar aquilo que eu quero o que ele diga. É possível a leitura feminista do texto, a leitura psicologista, a leitura de todos o viés. Mas são modelos muito limitados.

Mahon: Porque lemos, no Brasil, mais Eça do que Camilo?

António Manuel: Porque o Camilo representa um Portugal mais rural, mais interior, ao passo que Eça de Queiróz representa a cidade. Por acaso, estou relendo Os Maias. É impressionante como o autor fala do tempo de Portugal. É possível explorar a relação sentimental das personagens com o tempo: se chove, se faz frio, se está calor. Aí podemos explorar projeções. Mas não é isso que fará o texto bom ou mau.

Mahon: O Eça é mais universal?

António Manuel: É mais acessível. Do ponto de vista da estrutura do romance, o Camilo é até mais moderno.

Mahon: O Machado chegou ao leitor português?

António Manuel: O romance machadiano é do século XIX que chega à atualidade. Mas não é muito lido em Portugal. Não sei exatamente o porquê. Mas falar de Machado é comparar o que ocorre com Camilo Castelo Branco. As questões chegam à atualidade. O Eça ficou no tempo dele, muito embora seja mais acessível.

Mahon: É preciso o cânone para iluminar o resto?

António Manuel: É preciso o resto para iluminar o cânone. São os autores menores que dão o tom da sociedade e permitem ver que poucos foram além disso. Os menores ficam na dimensão do imediato.

Mahon: Machado ou Eça?

António Manuel: Os dois.

Mahon: Mas você é muito diplomata!

António Manuel: Então, não vou ser diplomata. Eça no romance e Machado, no conto. Machado é o maior contista da língua portuguesa. Eça, o maior romancista. Não te parece o mesmo?

Mahon: Discordo. Penso que Machado também é maior romancista.

António Manuel: (risos) Mas aí você quer tudo para si!

Mahon: Deixar milhares de leitores sem uma resposta sobre Capitu por quase 120 anos é algo incrível! O Machado maduro é incomparável. O Machado de Memórias Póstumas, de Dom Casmurro. Há um riso introvertido, um deboche velado, a ironia sofisticada que chega a desequilibrar o leitor que se acha metido no romance por uma espécie de sussurro confessional, uma conivência que só Machado cria.

António Manuel: Eu concordo consigo, mas não posso te dar todos os louros (risos)

Mahon: Muito obrigado! Como é bom conversar com gente inteligente!