Na entrevista da semana, Eduardo Mahon conversa com os jovens e talentosos escritores: Caio Augusto Ribeiro, Matheus Barreto e Stéfanie Medeiros. Auxiliando nas provocações, foram convidadas as escritoras Marília Beatriz de Figueiredo Leite e Cristina Campos.

 

Mahon: Como nenhum de vocês têm 30 anos, quero lembrar uma música do Belchior – Como os nossos pais – em dois trechos que me chamam muita atenção: “o novo sempre vem” e “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Pergunto: a juventude de vocês representa inovação na literatura?

Caio: Eu faria a distinção entre o novo e o jovem. Nem sempre essas duas coisas andam juntas. Nem todo o jovem vai trazer o novo. Às vezes, é uma repetição. Às vezes, quem é mais velho pode trazer o novo. A própria Marília sempre traz novidades. Outro caso é Wlademir Dias-Pino. Muito embora eu não esteja filiado a nenhuma escola, eu sempre estou olhando em volta de mim. Admiro minha mãe. Ela me produziu, né? Minha mãe me inspira muito.

Cristina: Tá parecendo o Caetano Veloso. Mas é muito Narciso!

Matheus: O novo com N maiúsculo não existe. Isso não quer dizer que tudo é repetição. Em poesia, tematicamente, nada é novo. O essencial é o tratamento com as palavras.

Mahon: E o rompimento com o alfabeto de Dias-Pino, por exemplo?

Matheus: Já foi novo, hoje não é mais. Se procurarmos nos poemas gregos, há formas de olho. E mesmo no barroco alemão, há formatos diferentes. Não acho que haja o novo propriamente dito. Não busco o novo. Busco o forte. O Ezra Pound diz que literatura é a novidade que permanece novidade. É a leitura que puxa o tapete, que derruba. Conscientemente, não me filio a nenhuma escola, mas minhas leituras acabam me influenciando, é claro.

Marília: Você sabe que minha opinião sobre você. A sua poesia está muito próxima de João Cabral de Mello Neto. A sua própria admiração pela poesia dele acaba influenciando a sua produção.

Matheus: Exatamente. Não quero imitar o Cabral, porque ele já fez o que fez. Mas existe sim uma influência inconsciente. Os poemas sobre Cabral eu os escrevi depois de ter lido toda a obra dele. Mas conscientemente, não me filio a escola nenhuma.

Stéfanie: No meu caso, não tento fazer nada de novo. Me afastei da poesia e estou próxima do romance. Quero fazer algo consistente elegendo Cuiabá como o palco principal das minhas histórias. É aí que quero inovar: colocar Cuiabá no centro, na luz. Busco aprender o consistente primeiro, o básico da boa literatura.

Mahon: E a questão estética? Você não tem interesse em inovar esteticamente?

Stéfanie: Não quero inovar em nada. A minha preocupação central são os personagens. O que eu tento fazer é que as personagens ganhem vida própria e guiem o narrador. Tudo vai surgir das ambições das personagens. Tenho dois projetos em andamento – um em primeira pessoa e outro, em terceira pessoa. O que me interessa é criar pessoas que tenham visões divergentes, tento incluir o pensamento dos outros na narração.

Cristina: De uma forma, essa é uma opção estética contemporânea. E com relação à escola literária?

Stéfanie: Há um artigo do George Orwell no qual brinca que a pretensão inicial do escritor iniciante é fazer um romance naturalista. Então, estou tentando fazer um romance naturalista!

Marília: Que ótimo isso! Achei ótimo!

Mahon: A minha segunda pergunta tem a ver com vocês três. Vejo algo em comum. O Colecionador de Tempestades, A Máquina de Carregar Nadas, Borboletas Infinitas de Coração Imperfeito. Há também a Divanize Carbonieri com o recente Grande Depósito de Bugigangas. O foco de vocês está em coisas aparentemente desimportantes. Parece-me que vocês dão voz às coisas desimportantes. Até que ponto isso é influência de Manoel de Barros ou do niilismo filosófico?

Caio: Falando do meu livro, é provável ser mais fácil de explicar com o segundo que vou lançar esse ano. Fui demitido e gastei todo o valor da indenização com o livro. Terminei o relacionamento e fui colecionando essas tempestades. É claro que Manoel de Barros está sempre por aqui, paira no ar. Mas o Colecionador está ligado às minhas tempestades, à minha biografia entre 2016 e 2017.

Mahon: Até 70, havia grupos, movimentos, manifestos artísticos e literários. Havia esses choques entre estilos, escolas, tradições. Hoje em dia, há um desprezo por teorias, por caminhos, por grupos, um ceticismo arrasador.

Cristina: É verdade, muito Nietsche hoje em dia. Lembro do Sodrezinho que escreveu: “eu não quero réguas para traçar meus caminhos, eu prefiro as éguas num galopar torto e veloz”. (risos)

Caio: Ainda que não me filie a escolas literárias, eu estou em vários movimentos. No movimento de teatro, no movimento estudantil, enfim, isso vai surgir muito forte no próximo livro. Tenho meus próprios manifestos, influenciados pelos grupos de discussão dos quais participo.

Marília: Eu acho você muito intrometido! Nós estamos na perspectiva de um livro conjunto. Isso tem a ver com o nosso afeto, com o “afeto afetado” que nós temos.

Cristina: No campo da memória, o desimportante é o que fica escondido.

Matheus: Nesse sentido, é possível continuar a resposta anterior. Devemos permanecer na infância da linguagem, pensar no frescor do improvável, do insuspeito. Eu não miro nas coisas do quotidiano, necessariamente. Eu quero a novidade da linguagem e que essa linguagem seja sempre de infância.

Marília: Me parece que “A Máquina” já diz tudo. É uma filigrana da busca da linguagem. É como você estivesse bordando um signo que nem você sabe.

Mahon: Eu já acho que a Máquina é fábrica, produção dessensibilizada.

Cristina: O Matheus é muito João Cabral mesmo – essa procura da forma! É uma experimentação da linguagem.

Matheus: Eu tenho um problema com o sentimentalismo. Não gosto. A Máquina deixa em evidência a escrita como algo artificial. A literatura é humana, é uma delimitação. Eu quis que essa imagem da máquina ficasse unida a muitas coisas. Quando eu estava montando o livro, a primeira coisa que imaginei foi o ser humano e seus detalhes. Essas coisas pequenas que, para mim, não são pequenas.

Cristina: Você não acredita em liberdade?

Marília: Eu preciso falar! Me incomoda quando um jovem, poeta bom como você, diz que não tem nada a ver com liberdade.

Matheus: Não me desce a ideia da liberdade. Liberdade são coisas naturais, não artificiais. Escrever é um artifício, não faz parte da cadeia orgânica. Quem pega um pincel tem um milhão de possibilidades. A escolha do artista limita o traço e, portanto, o desenho e, assim, sucessivamente.

Marília: Mas isso é ter estilo. E estilo é estilete. Estilete corta! É preciso decidir o que se quer escrever, como se quer escrever.

Mahon: Eu entendo perfeitamente. Primeiro porque o ato de escrever é uma artificialidade, um ato eminentemente humano, antinatural digamos assim. Segundo que qualquer escrita vai com uma carga do próprio autor que é impossível ser desprendida. Terceiro que a estética, qualquer que seja, delimita o que vem adiante. Escrever é, em algum momento, um ato de determinismo.

Cristina: Manoel de Barros dizia que se escreve com o corpo, simplesmente.

Mahon: Para mim, esse negócio do Manoel de Barros ser “simples”, é uma bruta falsidade. O cara é absolutamente intelectualizado que está fingindo que é simples. Mentira. A poesia dele é o que há de sofisticado! Nem venham me dizer o contrário.

Stéfanie: Eu concordo integralmente. Manoel de Barros foi a minha influência direta. Li a obra toda antes de ter publicado o meu primeiro livro. Tanto que ele é o tema do romance “O Último Verso”.

Mahon: A Cristina está discordando de vocês! O que você pensa sobre a polêmica: Barros tem uma opção estética de ser simples, mas é uma opção. Não se trata de um instinto. Ele não é intuitivo, como quer parecer, é totalmente cerebral.

Stéfanie: O método dele não pode ser mais distante da espontaneidade. Fiz muitas entrevistas com os parentes dele e amigos. Manoel de Barros tomava notas do dicionário e construía frases prontas e, depois, montava. Era muito mecânico. Não há nada de espontâneo, de simples. A poesia dele é intencional, pensada, racional.

Cristina: Para mim, é ludicidade, é brincadeira.

Mahon: É aí que discordo. Miró pintava como os impressionistas, no início. Mas optava pintar de forma simples. Picasso foi outro que bebeu do retratismo e do impressionismo, somente depois é que encontrou o cubismo. Ele dizia que pintar como uma criança é a coisa mais sofisticada que um adulto pode fazer. É ai que eu acho que Manoel de Barros é um enganador: ele finge que é simples, mas é uma aparência intelectualmente construída.

Cristina: Mas já escrevi sobre isso: quanto mais simples, mais complexo.

Marília: Mas, afinal, a entrevista é com vocês ou com eles?! (risos)

Caio: A liberdade plena é a da criança que não tem noção de convenções. É somente a criança que tem essa liberdade ilimitada. Depois de educada, perde-se essa espontaneidade originária.

Matheus: Eu concordo. A liberdade é a que está antes da escrita. É a liberdade de Rimbaud depois de parar de escrever. A liberdade está na ausência de qualquer palavra.

Mahon: Vou começar agora pela Stéfanie. Tudo o que é escrito é para ser entendido? Toda a literatura deve ser cognoscível ou traz consigo um sentimento?

Stéfanie: No livro O Náufrago, o personagem toca uma música na caverna, sem que ninguém veja. Me vem a pergunta – num campo isolado, quando uma árvore cai, pode-se considerar que ela realmente caiu? Como saber? Eu quero ver essa árvore cair! Quero ser compreendida, recebida. Como cada leitor vai receber, depende da bagagem de cada um. Mas eu escrevo para ser entendida, para me comunicar.

Cristina: Você está escavando os assuntos com furadeira!

Mahon: Mas não vou perder essa oportunidade, ora?!

Stéfanie: Eu busco a compreensão, entende? Não é minha vontade fazer experimentos estéticos. Quero criar universos consistentes. Quero que o leitor entenda. Se há um muro, penso que o leitor deva compreender que há um muro e ler o que está nele escrito. Com clareza.

Marília: Em 76 anos de vida, ouvi de uma “garota” algo que me assusta. O Matheus faz uma poesia dura, racional, pensada. Você está dizendo que não interessa a sensação. Os romances do Mahon são completamente ligados à sensação.

Mahon: Mas eu entendo o que ela está dizendo. A tônica da poesia é a sensação e a tônica da prosa é a condução racional da narrativa. Ela não quer inventar a roda. Quer se usar da forma pronta para escrever os próprios projetos.

Marília: Estamos no contemporâneo, ora! Não há mais esses limites entre razão e sensação. Isso é coisa de teoria, coisa pra crítico chato!

Stéfanie: Mas a sensação não está ligada à forma e sim ao conteúdo do romance. O leitor sente com a leitura, não sendo surpreendido pela forma. Num romance, é difícil inventar uma forma. A forma está lá, já pronta. A sensação vem da história, de como ela é escrita.

Matheus: Dia desses li Gadamer. Ele vê compreensão como um diálogo. O sentido é feito através do diálogo, na expressão filosófica de Gadamer – fusão de horizontes. Não há sentido completamente solto. Alguns horizontes são comuns, mas o mesmo texto presta-se a interpretações diversas.

Marília: Essas crianças não tem nada a ver com Cuiabá!

Mahon: Por quê?

Marília: Essas crianças não tem mesmo nada com Cuiabá. São cosmopolitas, abertas, modernas. Uma pergunta: qual a influência da sua biografia no texto?

Matheus: A minha vida limitou a minha escrita, ainda que não aparentemente. Depois, tomei consciência de Mato Grosso. Idealizei um Mato Grosso que seria meu. Após, quis inserir a questão do homossexual. Não aumenta e nem diminui a qualidade do texto, mas acho que é importante essa marcação política.

Mahon: Vou puxar essa polêmica de “marcação política”. Literatura tem algum compromisso político? Tenho visto muito isso, uma doutrinação teleológica, ou seja, uma função política da arte. Do contrário, se não margear questões sociais, não presta. De vez em quando, o que leio é mais panfleto do que literatura.

Marília: Mas isso é uma burrice!

Mahon: É uma burrice, mas esse pensamento está ganhando muita força. O que eu quero perguntar é: esse engajamento político faz alguma diferença?

Stéfanie: No quesito qualidade, é indiferente. A qualidade vem da dedicação do autor. Porém, em muitas vezes, o viés político do texto é que o faz circular ou sumir. Um exemplo é o Lima Barreto. A qualidade dele sempre esteve lá. Mas a questão política é o que o fez sumir.

Cristina: Às vezes, a tal literatura engajada acaba com o texto. Não tem que ser assim – não é literatura, se não for engajado. As universidades estão doutrinando as pessoas para pensar assim.

Marília: Mas não é só a universidade. É uma sociedade de intelectualóides imbecis.

Matheus: É possível escrever bem sobre qualquer coisa. O tema não aumenta e não diminui a qualidade do texto. Mas acho que, para o mundo, algumas marcações políticas são importantes. A cantora lírica afro-americana Leontyne Price que gosto muito é um exemplo. Não muda nada na voz dela estar ou não na tevê. Mas o fato dela ser negra é um símbolo.

Mahon: Mas não perguntei isso. Vejam os casos de Ferreira Gullar, profundamente politizado e Manoel de Barros que, deliberadamente, não fala em política. São dois grandes poetas com um viés político completamente diferente um do outro.

Stéfanie: Pegamos o caso de Machado de Assis, o nosso maior ficcionista. Ele usa a figura do escravo e do branco de forma irônica para negar ou reafirmar determinado ponto de vista.

Caio: Todo o texto tem um pretexto e um contexto. Essas coisas estão muito ligadas ao contexto do autor. Há processos inconscientes onde o autor está inserido. A tendência é reagir com aquilo que se está vivendo. Isso reflete na literatura. Tanto é assim que aconteceu na literatura russa ao falar da fome em massa.

Matheus: O fato de se falar do Nordeste não aumenta e não diminui a qualidade. Mas falar sobre o Nordeste foi importante para o próprio Nordeste.

Stéfanie: Quero fazer uma colocação antes de encerrar. Independentemente de escolas estéticas, o que temos em comum é que, na nossa geração, há um compromisso com questões sociais, com pautas que precisam ser colocadas e debatidas politicamente. Tanto no Caio, quanto no Matheus e no meu próprio processo, fazemos questão de colocar temas socialmente relevantes.

Cristina: São causas que vocês abraçam.

Mahon: Enfim! Não é possível que vocês não tivessem nada em comum!

Marília: O incomum entre vocês é que é interessante, mas é ótimo ver uma questão em comum na literatura dos jovens.

Mahon: Participei de um debate sério na Unemat de Tangará da Serra onde um dos debatedores sustentava que era necessário o engajamento social na literatura. Na minha vez de falar, fui bem claro – a arte não segue cartilha política, não deve ter pauta prévia.

Caio: Acho que não podemos fugir do contexto. Não há como escapar de um certo grau de engajamento.

Mahon: O que estou falando é o compromisso prévio, a função programada. Como se fosse uma encomenda política. Isso não engulo de forma nenhuma!

Cristina: Literatura não precisa de nada disso.

Stéfanie: Não tem que ter, concordo. Isso não é mérito, nem demérito. Literatura não pode ter essa limitação.

Marília: Por isso que disse que estilo é estilete. O que e como se corta é a escolha do autor. Essa é uma escolha política.

Mahon: Da mesma forma, não acho menos legítimo que escritores não possam escrever sobre realidades diferentes. O escritor classe média não pode escrever sobre o pobre, o branco não pode produzir sobre o rico, enfim...

Marília: Mas isso é um absurdo, cara! Quer dizer que quem só pode falar de negro é negro? Só quem pode falar da Academia é acadêmico? É uma burrice!

Stéfanie: Há um livro que li dia desses Djamila Ribeiro. Local de fala todo mundo tem, representatividade não.

Mahon: Eu entendo perfeitamente a questão da representatividade, mas não posso concordar com um reducionismo desse.

Caio: Mas o que você ganha em não concordar?

Mahon: Mas o que eu ganho em concordar?! Guimarães Rosa era diplomata, falava vários idiomas e deu voz ao sertanejo pobre.

Caio: Por muito tempo, as minorias foram ridicularizadas. Talvez por isso queiram retomar a representatividade e o local de fala na literatura.

Mahon: Entendo perfeitamente, mas não posso concordar. O mais curioso é que quem faz esse tipo de discurso, quem o espalha em palestras e seminários, são intelectuais que moram no Leblon.