Nessa conversa, Eduardo Mahon e Cristina Campos falam com Daniel Munduruku, autor de mais de 50 livros e vencedor do prêmio Jabuti. Por intermédio de Banavita, Daniel veio para Cuiabá especialmente para prestigiar a posse de Lorenzo Falcão na Academia Mato-grossense de Letras, noite em que foi destacado como convidado de honra.

 

Mahon: Quem pode falar de índio é índio?

Daniel: Não! Todo mundo pode falar do que quiser, sempre. Acho uma besteira um segmento não falar de outro.

Mahon: Qual é a diferença entre um índio falando de um índio?

Daniel: Depende muito do tema. Quando a gente fala do nosso próprio povo, falamos com a autoridade de quem pertence a ele. Mas, às vezes, é preciso falar de fora, ter uma perspectiva externa, o que é muito bom. Há pessoas que podem falar melhor que outras, por causa da visão, do estudo. Então, não acho que as pessoas que não fazem parte de um determinado povo indígena são menos legítimos para estudar e falar sobre. Não pode falar “em nome de”. Aliás, ninguém pode. Cada um fala por si, quando muito fala sobre o tema sobre o próprio povo.

Mahon: Essa figura “índio”, no singular, é uma abstração ou simplificação proposital. Existe “o índio”?

Daniel: Isso virou uma coisificação. Colocou a palavra, o adjetivo, a serviço da ficção do índio, a visão romantizada do índio. A palavra índio tem essa pegada ideológica que é uma forma de tratar essas populações de modo a não descrevê-las, de fato.

Cristina: A generalização nega a diferença.

Daniel: E digo mais. Essa palavra nega a humanidade dos povos indígenas. A visão mistificada acaba desqualificando a experiência de humanidade que trazemos com a gente.

Mahon: Tentei polemizar com Anna Maria Ribeiro sobre a imagem romântica do indígena. Com o rompimento político com Portugal, a elite voltou-se para a figura idealizada do índio. Ocorre que vejo isso ainda hoje, uma visão que torna o indígena um ser encantado, sublimando defeitos humanos. Onde é que a gente encontra a tal sabedoria indígena?

Daniel: Entendo isso e concordo. Há sim essa romantização de sabedoria. O “índio” é um apelido, é sempre uma ausência. Tenho trabalhado esse tema na minha literatura. Eu não sou um genérico, um índio. Sou um Munduruku. Nessas discussões há muito preconceito – o índio indolente, o sujo, o selvagem, o violento. Tudo isso reforça a ideia de que os índios são todos iguais. Essa generalização é perigosa porque reforça a reserva contra o indígena e, ainda, a visão superior que insiste em nos julgar.

Mahon: Mas a questão não é essa. Talvez eu não tenha sido claro. Estou perguntando sobre o preconceito às avessas: o índio como ideal de perfeição, entende?

Daniel: Sim, entendo. Mas preciso popularizar o que ocorre comumente, antes de chegar no seu nível de diálogo. O comum é ver o índio como inferior e não superior. Há os que usam esse discurso para justificar a eliminação, a abertura das florestas para o agronegócio. Quando encontram uma pessoa como eu, um fenótipo como o meu, que tem universidade, com mestrado e doutorado, a sociedade ainda me acusa de não ser índio de verdade. Com relação à pergunta que você fez, sobre sabedoria, ela existe e está na resistência. Apesar de toda a opressão, de tantos séculos de destruição, nós sobrevivemos. Resistimos bravamente com a sabedoria e com a memória. O que me torna Munduruku é a memória. Aí sim é a tal sabedoria, não abrimos mão da nossa ancestralidade. A sabedoria indígena é a “arte do bom viver”. Isso tem a ver com a ideia de que somos parte da natureza, com a concepção de educação e tempo. Não temos um passado e podemos não ter um futuro. O que temos é o presente. Sobre o presente é que há o nosso interesse.

Mahon: Vamos falar de contato, de ausência de contato, de expropriação de identidade. Como você se posiciona sobre a interação?

Daniel: Fui educado para ser livre. Essa é uma das dimensões da sabedoria indígena – a liberdade. Alguém de fora não pode decidir isso pelos povos indígenas. A experimentação de culturas (de fato, não há culturas puras) é normal e essencial. Tem a ver com o desejo de domínio, de controle do ser humano. Uma coisa é certa: se um grupo com pouco contato com a sociedade branca se apresenta, é porque ele está no desespero. Alguma coisa está ocorrendo internamente para que eles peçam ajuda. Do contrário, não haveria o contato explícito. Nos Munduruku, por exemplo, há vários grupos, alguns querem se manter distantes e outros já estão se integrando nas cidades como Jacareacanga, por exemplo. As aldeias menos propícias ao plantio, as terras menos prósperas para a caça. Os alagamentos também têm um impacto enorme porque acabam com regiões sagradas.

Mahon: Pouca gente entende que determinados locais são indissociáveis à cultura de povos indígenas. Quando se arrasa a floresta (desmatando, invadindo ou alagando), acaba a referência, até mesmo a raiz da cosmogonia de um povo.

Daniel: Nesse processo de destruição do povo Munduruku, surgem novas lideranças. São jovens que falam bem o português, que podem fazer uma intermediação. Uma vez por ano, o povo realiza a reunião geral, unindo as lideranças. As pautas são demarcações, hidroelétricas etc. A comunicação é feita via rádio, em geral. Os Munduruku organizam-se em três ou quatro Organizações Não-Governamentais, o que facilita muito a comunicação e a organização geral.

Mahon: Você é favorável à autodemarcação? Não é arbitrário demais?

Daniel: A autodemarcação é um direito. No caso dos Munduruku, houve uma área que está fora da demarcação que acabou sendo alvo de uma campanha de conscientização e conseguiram. A autodemarcação é legítima, mas como um último suspiro, uma atitude de desespero, pelo menos do ponto de vista de comunicação, a fim de chamar atenção, por exemplo. Chamar atenção é importante, só resta atitudes que serão discutidas em todo o Brasil. Antigamente, era o sequestro ou o cárcere privado de funcionários da Funai. Os próprios servidores da Funai se faziam reféns para chamar atenção do Brasil para a pauta indígena. Hoje em dia, a autodemarcação é o nosso sinal de socorro.

Mahon: O que é proibido para um Munduruku?

Daniel: É proibido ser preguiçoso. Nunca comunidade pequena, todo mundo tem que estar na mesma energia, senão alguém passa fome.

Cristina: O Macunaíma é uma ficção!

Mahon: E a sanção, Daniel?

Daniel: Os Munduruku têm uma série de regras de convivência, mas não têm poder de polícia. As leis são os costumes: são conhecidas, mas não são escritas.

Mahon: O grau de controle social com uma comunidade de 80 pessoas é muito maior do que uma cidade de 50 mil pessoas. Como é que funciona isso, na prática?

Daniel: Dá-se com punições, inclusive com o exílio. Não há penas perpétuas, porque acreditamos na recuperação. O que existe comumente é o costume da vingança, da retribuição. Como os Munduruku são organizados em famílias – branco e vermelho – há retaliações, caso haja o descumprimento das regras de convívio. Há casamentos proibidos, por exemplo. E, por isso, há o aborto na tribo. Às vezes, ninguém sabe que uma mulher está grávida e ela aborta. O cruzamento interfamiliar é proibido, assim como o feitiço é vedado. As famílias podem se acusar de feitiçaria, o que dá início a um processo de mútua vingança.

Cristina: E a espiritualidade? Como vocês se organizam?

Daniel: Nós temos o sentido de pertencimento a um lugar e é necessário cuidar do lugar. É preciso ficar equilibrado àquele local, em geral. A construção de hidroelétricas afetou muito esses lugares-chaves. Nós acreditamos que os Munduruku vieram do centro da terra. Uma das coisas interessantes do povo é a desnecessidade de religião. A nossa tradição é bem resolvida porque não precisa de “religação”, mas somos um povo ligado aos espíritos da floresta e tudo isso tem a ver com o equilíbrio ou desequilíbrio. É o pajé quem domina as forças opostas, o pajé é um eterno aprendiz.

Mahon: Como é que se forma um pajé?

Daniel: Entre os Munduruku, todo mundo nasce pajé. As crianças são levadas ao pajé para que ele tire o dom de ver. O pajé mantém o dom em poucas crianças, nas demais, a sensibilidade transcendental é interrompida. Serão elas, futuramente, que podem se tornar os líderes. Com relação às cerimônias, nosso povo não usa nenhum elemento estupefaciente, nada além do tabaco e do rapé, as plantas de poder.

Mahon: E você? Qual a sua história?

Daniel: Eu tenho 54 anos, vivi dentro da comunidade até os 15 anos. A partir dos 8 anos, como toda a criança indígena no regime militar, passei a ir à escola. Fomos proibidos de falar a nossa própria língua. Como não havia escola na aldeia – porque fazia parte do processo de aculturação – fui para a cidade. Até que chegou o momento que cheguei a negar a minha identidade. Foi sofrido demais. Para a minha geração, nascida em 64, a educação foi muito violenta, na base da palmatória, da surra, dos castigos físicos. Ser índio era terrível. Foi aí que entrou em cena meu avô. Ele percebeu a minha mágoa, me chamou para ouvir o rio, mergulhar na natureza. Isso demorou 3 anos, tempo restante da vida do meu avô. Aos 15, eu já estava mais equilibrado, já tinha ultrapassado a fase de negação e estava na fase da aceitação, do orgulho de ser Munduruku. Eu disse a meus pais que gostaria de continuar estudando. Fui para Manaus terminar o ensino médio nos salesianos e, depois, fiz Filosofia, um curso para ser padre. Quando fui diplomado, comecei a dar aula. Ocorre que o meu diploma não era reconhecido pelo MEC porque era para seminaristas, foi então que descobri que havia dois lugares onde se fazia a revalidação – Lorena era um deles, local onde moro atualmente. Lá eu construí toda a minha trajetória de adulto.

Mahon: E o retorno às origens?

Daniel: Aconteceu nos anos 90, quando terminei História. Fui para São Paulo me qualificar. Fiz mestrado em Antropologia. Naquela época, momento da nova Constituição, fiquei próximo das lideranças indígenas do Brasil. Entrei na USP, mas nunca concluí, ainda que tenha estudado 5 anos. Quis então fazer o caminho de volta. Voltei à tribo e reencontrei a família. A própria história da minha família é épica. Uma parte da família negou a condição de indígena e outra, persistiu.

Mahon: Quando você tem a ocasião de visitar tribos diferentes, mas do mesmo povo Munduruku, a comunidade já sabe da sua identidade imediatamente?

Daniel: Não. O povo Munduruku é bem baixinho, na maioria mais baixo do que eu. Eles sabem que sou um “parente”. Mas eu perdi a fala, não o entendimento. Aliás, a questão da fala na ditadura causou um trauma na gente.

Mahon: Como é que seu povo te vê? Com orgulho?

Daniel: Sim, mas depende. Muitos dos que me conhecem dessa época, da minha geração, eles reconhecem e gostam do meu trabalho, têm um orgulho enorme de me ver chegando onde cheguei. Depende muito do lugar. Há alguns que acreditam que a minha fama é uma espécie de oportunismo. A juventude fala muita bobeira, às vezes. “Esse cara aí não é nem Munduruku direito, só vem se aproveitar da gente”, é o que algumas pessoas dizem.

Mahon: O índio estigmatiza o índio?

Daniel: Sim, acontece sim. São relações entre povos diferentes. O Xavante olha pro Munduruku é diz que não somos mais índios. Vários se autodenominam “povos verdadeiros”.

Mahon: Vamos explorar o seu olhar “de fora”. Quando você olha esse conjunto brigando, você acha que a causa indígena tem futuro? Você acha que, mais hora, menos hora, a cultura será extinta?

Daniel: Tenho duas percepções. A primeira é que a cultura indígena está cumprindo o seu papel de se atualizar. Não vejo nenhum problema entre o debate de tradição e modernidade. Até por conta daquela questão do que já falei – nós vivemos o presente e o presente é cheio de adaptações. Quando vejo os jovens indo para a faculdade, questiono: e agora? o que vão fazer? O mercado de trabalho é cruel, pensa de forma linear e destrói a noção de circularidade que é própria do indígena. Estudar Filosofia ocidental é engraçado para mim. Por isso, o nome do meu blog é “Mundurukando”. A ideia é mostrar que o indígena tem todas as condições de refletir sobre o mundo.

Mahon: Existe algum tipo de paralelo entre os questionamentos filosóficos ocidentais e o mundo Munduruku?

Daniel: Não existe. A gente não especula e não tem ideia do futuro. As línguas indígenas são construções em cima de experiência. Não a toa, muitas palavras têm a ver com lugares, é uma forma toponímica. Quem viveu o futuro? Ninguém. Por que essa preocupação?

Mahon: Por que literatura?

Daniel: Porque, para mim, é uma sequência da própria oralidade. Me formei professor usando a palavra, então era natural que a literatura se encontrasse comigo. Eu nasci índio por uma dádiva do Universo, não foi uma opção. Mas, quando quis escolher uma profissão, preferi ser professor. Posso usar a palavra como uma continuidade da tradição. Comecei a dar aula e o meu maior impacto foi quando percebi que eu falava dos mitos gregos (e isso era chato) e eles não entendiam nada. Descobri que os mitos gregos se repetem em todas as outras culturas. Daí comecei a contar as histórias dos Munduruku. Os meus alunos detestavam filosofia, mas adoravam ouvir histórias. Daí que surfei nessa onda. Gostei tanto de contar histórias que comecei a contar histórias para crianças. Aí nasceu o escritor. Meu primeiro livro é “Histórias de Índio” para responder à curiosidade da criançada. Depois, “O menino que não sabia sonhar”, que falava sobre a arte do sonho dos pajés Munduruku. É da nossa tradição contar o sonho que tivemos à noite para a interpretação coletiva. Fiz esse livro com crônicas e fez algum sucesso, estilo no qual me aprofundei.

Cristina: Você observa essa experiência do seu povo de viver o presente?

Daniel: Banavita me perguntou hoje: quais seus planos para o ano que vem? Ora, se não sei se vou viver amanhã, como posso ter planos para o ano que vem?

Mahon: Com que frequência você volta a uma aldeia Munduruku?

Daniel: No Pará, tenho relações fortes com uma aldeia. Leva 10 horas de barco. Nos últimos anos, porém, preferi os Munduruku em Juara. Fico mergulhado uma semana, quando muito. Mas, mesmo em São Paulo, visito os Guarani. Até mesmo na minha casa, tenho um canto que me lembra de onde vim.

Mahon: A sua forma de pensar – internamente – tem relação com os Munduruku? Ou não há qualquer relação?

Daniel: Não faço questão de me afastar. Mesmo na minha tese que tinha, por princípio, ser mais acadêmico convenci a banca que a estrutura seria em cartas. Quero continuar usando a circularidade. É um Munduruku que aprendeu a técnica da escrita. Pensar ficção ocidental, já pensei. Mas não consigo. O pensamento ocidental é difícil, linear. Uma das coisas que aprendi com a escrita é que não podemos travar na hora de escrever. Não se pode ser moralista. Os pais das crianças ocidentais são muito moralistas, querem proibir, classificar, rotular.

Mahon: Você já ganhou o Jabuti. É seu plano divulgar a identidade Munduruku?

Daniel: Acho que, mais do que o pensamento Munduruku, quero me manter num pensamento ancestral. Aí Kaiapó, Bororo, Munduruku, Xavante, é uma matéria prima muito rica. Não quero abrir mão disso.

Mahon: Vou te fazer uma pergunta que já fiz para a Anna Maria Ribeiro: quanto de indígena tem o brasileiro?

Daniel: Eu diria que tem muito, muito, muito, mas o brasileiro tem vergonha disso. O brasileiro gosta muito do Brasil, mas não gosta do brasileiro. Esse tipo de embate está aí na imposição de um curriculum universal, a imposição de aprender todos as mesmas coisas. Identifico muitos hábitos indígenas no brasileiro. Hábitos alimentares, milho, mandioca, sucos, banhos etc. Nada disso é “natural” dos povos de fora. Essas coisas são muito nossas. Não consigo entender esse papo de gaúchos que dizem ser alemães, italianos etc... O hábito do churrasco, dos legumes na brasa, é essencialmente indígena.

Cristina: Quando você fala da busca da ancestralidade, é também uma busca de sabedoria da sua parte?

Daniel: Estamos vivendo num tempo merda. Sempre olhando os outros, num complexo de vira-lata. O brasileiro não gosta da sua alma ancestral.

Mahon: O nosso caminho é o mergulho na ancestralidade?

Daniel: Existe um espelho que o Brasil olha. O brasileiro joga um pano escuro sobre o espelho e não sente orgulho da própria história. É balela total esse papo “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. O Darci Ribeiro já dizia isso – o brasileiro nasceu para ser um povo novo.

Mahon: Os movimentos que tentaram partiram da elite. Por isso que te perguntei, no começo, sobre o “local de fala”. Vários intelectuais (que não têm qualquer relação direta com povos indígenas) tentaram esse “reencontro ancestral”, o mínimo denominador comum brasileiro que é o índio. Ocorre que esses movimentos não fizeram escola e, sobretudo, não se popularizaram.

Daniel: Nós somos colônia e colonizados. Nosso pensamento é assim. Por isso que pobre não pensa como pobre. Pobre pensa como rico. A elite não deixa sair desse circuito. É a forma de garantir o controle.