Na entrevista da semana, Eduardo Mahon conversa com Gabriel Novis Neves, médico, professor e primeiro reitor da UFMT. A professora Cristina Campos auxiliou com os questionamentos nessa entrevista que foi produzida em duas etapas, devido à impecável memória do entrevistado.

 

Mahon: Quem frequentava o Bar do Bugre?

Gabriel: Na verdade, o bar era um centro de animação da Cuiabá da primeira metade do século XX, ali havia fregueses na parte da manhã, a tarde e à noite, um caso típico era o Rubens de Mendonça. O hábito dele era muito interessante. Ele contava uma história pela manhã e, à noite, contava uma história diferente. (risos) Na parte da manhã, os advogados, juízes, desembargadores e o secretário de D. Aquino ia de batina preta, sentavam-se numa mesa preta e cumprida e comiam o salgadinho da minha mãe, principalmente pastel frito. Me tornei um grande fritador de pastel. O dia que mais vendeu pastel no Bar do Bugre foi no final da Segunda Guerra, 08 de maio de 1945. Faltou pastel pra tanta gente.

Mahon: Por que bugre?

Gabriel: Meu pai era bugre, pele queimada. Eu mesmo era chamado de bugrinho quando eu era muito pequeno.

Cristina: O bugrinho era o Freire.

Gabriel: Pois é, eu morava na Mandioca e perguntei pra mamãe sobre o apelido do Freire que também era bugrinho. Então, meu apelido ficou “Bié”. Sou descendente de gaúcho, carioca e uruguaio e, do lado materno, o Novis é judeu.

Mahon: E o Bar Colorido? (risos)

Gabriel: Na época do meu pai, não havia o Internacional. Isso é muito novo! Naquela época, meu pai fez um salão grande para a “nobreza”, para a sociedade, as boas famílias. Onde ficava a sorveteria, de vez em quando, ficavam as mulheres da vida. Era a turma que vinha do beco do candeeiro, tudo isso mesmo antes da Carminha. No bar, tinha de tudo: os intelectuais, os escritores, artistas, compositores como o Tote Garcia que ia de terno na hora do almoço tomar conhaque. O João Ponce, quando chegava o fim do dia, atravessava o Palácio para comprar cigarro, incomodado com o cheiro de urina da repartição. A gente cedia o banheiro para ele. Quem diria?

Cristina Campos: Há um relato de que, enquanto a antiga Matriz era dinamitada, os cuiabanos acompanharam bebendo no Bar do Bugre...

Gabriel: Bebendo e escondendo-se dos estilhaços. O bar ficava de esquina. Se há um ponto polêmico de Cuiabá é esse. A demolição não era o que se comentava. Eu frequentava a igreja, fui coroinha, segurei o turíbulo de D. Aquino, meu padrinho de crisma. A verdade é que a igreja não estava em boas condições. Os fieis não estavam mais indo à igreja. A frequência estava baixa. Os santos não estavam mais nos altares por causa do peso, havia muitas escoras dentro e fora. Havia uma preocupação por causa da segurança. Os cuiabanos ilustres formados em engenharia como o Luiz Lotufo, Ezio Calábria e outros, eles deram um parecer pela demolição. Eu mesmo vi partes da parede caindo, ninguém me contou. No dia da implosão, papai andou fechando aquelas portas que davam para a catedral por causa das pedras.

Mahon: Quando você voltou do Rio de Janeiro para cá, qual era o hábito mais provinciano com o qual você se deparou? E a vanguarda? O que era a vanguarda em Cuiabá?

Gabriel: Voltei no final de 64, com minha mulher grávida de 9 meses. Eu morava na Floriano Peixoto, sem rua pavimentada. À noite, havia uma lagoa no que é hoje a Escola Técnica. Era lotada de sapos, uma coisa bonita de ouvir. Morávamos numa pequena casa de 80 metros quadrados, sem ar condicionado. Meu pai havia falido, não tinha carro, não tinha telefone. Eu só tinha crédito, mesmo tendo acabado de chegar. Lembro das retretas na Praça Alencastro. Enfim, a cidade era bem provinciana. A alternativa era rádio. Assim mesmo, havia muita oscilação de energia. As senhoras usavam leque se abanando, a moçada ficava perto do gasômetro porque, logo subindo, tinha o Santa Rosinha. As meninas adoravam os pilotos, os meninos arrumavam brigas tremendas. Quando acabava a retreta, a meninada que vinha do Rio, de São Paulo, daqui mesmo, ia para o Beco do Candeeiro. Dona Nini Constantino, muito zelosa da juventude, criou o Clube Feminino para preservar o bom nome das famílias.

Mahon: E vanguarda? O que era vanguarda?

Gabriel: A vanguarda era fumar, era o sujeito que contava as aventuras amorosas de cabaré. A vanguarda dos maiorais era a política. Isso aparecia nos jornais. No combate, estava o Eurícles Motta, o Villas Boas. Mas nada realmente moderno.

Cristina: Mas a ideia da UFMT – Universidade da Selva – era vanguarda. Como foi a articulação para a fundação da UFMT?

Gabriel: A ideia do ensino superior começou em 1808. Portanto, é antiga. O imperador fez uma circular para que todas as províncias pudessem criar uma forma de marcar a mudança da Família Real para o Brasil. O nosso governador morava em Vila Bela e consultou os recursos do tesouro e decidiu criar um curso de medicina com o único médico da cidade. O curso começou, mas depois não teve perna. Logo depois, a capital foi transferida. A questão do ensino foi uma longa história. O Palmyro Pimenta tinha uma preocupação com a quantidade de rábulas e fundou uma escola de Direito na casa dele e dava aula à noite. Não vingou. Reabriu em 1952. Na primeira visita do MEC, fechou novamente. Quando reabriram o processo de autorização para o funcionamento do curso de Direito, foi importantíssimo o Wilson Fadul e o Alcedino Pedroso da Silva – o Didi. Os bacharéis começaram a lecionar como o Antonio de Arruda, famosíssimo, João Antonio Neto, Gervásio Leite, Clovis de Mello, todos competentes.

Cristina: Você ainda tem, da época da fundação, as coisas que o Wlademir fez?

Gabriel: Tenho tudo. Absolutamente tudo. Mas tenho uma preguiça de escrever minhas memórias. Se você, Mahon, quiser tentar, te dou acesso a tudo. Eu não dou conta. Diga ao povo aí de fora que estou perfeitamente bem!

Mahon: Uma curiosidade que sempre tive: como foi o processo de produção do símbolo da Universidade? A administração passou algum briefing ao Wlademir Dias-Pino ou ele apresentou a marca sem nenhuma pauta prévia?

Gabriel: Até 1971, não existia o Conselho das Universidades Públicas Brasileiras. Aconteceu que, em 72, em agosto, houve a primeira reunião. Foi ali a origem da Universidade da Selva. Eu tinha muita consciência do que era. Não era um intelectual, sou um homem comum, nada de extraordinário. Mas minha preocupação era ter uma universidade que não fosse apenas mais uma estatística do MEC. Os críticos vinham com sede para acabar com o projeto. Não tínhamos mestres, nem doutores. Para nos defender, convoquei os meus “pistoleiros intelectuais”, João Vieira, Pedro Paulo Lomba, Célio da Cunha, Aline de Figueiredo e, entre eles, o Wladimir Dias-Pino. Agreguei à equipe o arquiteto João Carlos Bross. Fomos à Brasília, enfim, levar o documento básico da Uniselva, escrito pelo Pedro Paulo. Distribuí para todos os presentes que não acusaram nenhuma sensibilidade, mas a mídia do sudeste deu destaque de primeira página (Folha de São Paulo, Estadão, até o Callado fez um artigo em favor da Uniselva). Mostrei o texto pro Wladimir que ficou entusiasmado e disse que tinha condições de criar a logomarca. Ele me disse que pensou numa superfície líquida sendo atingida por um objeto sólido. É como um aluno que chega à universidade e lida com o conhecimento, ele é a pedra na superfície da água. Depois, vai se aprofundando no conhecimento. Como o símbolo era próximo da Globo, o Hans Donner nos chamou para um acordo. E não aceitamos pela originalidade do Wlademir. A ideia era de círculos na água contracenando com a profundidade do saber. O Wlademir era um gênio. Ele pensou em estacas de madeira para fazer a barreira da UFMT, fazendo um efeito visual que deixava o motorista tonto, caso se aproximasse. Eu não aprovei. Era muito perigoso.

Mahon: Seu sucessor Benedito Pedro Dorileo cunhou um termo inesquecível sobre a UFMT que é “fazejamento”, isto é, um comprometimento pragmático com as coisas mais simples, um envolvimento até braçal nos primeiros tempos. Qual o principal dificuldade inicial?

Gabriel: Primeiro, fiquei muito decepcionado quando fui “intimado” à reitoria. Me preparei para ser médico do interior, afinal de contas, Cuiabá era uma cidade do interior. Me mirei no Dr. Epaminondas. Foquei no projeto de partos, cesarianas, cirurgias gerais de pequeno porte, passei quatro anos e meio percorrendo hospitais por conta própria. Éramos 26 médicos em atividade, nessa época. Em 66, quando Pedrossian assumiu, ele tomou conhecimento pelos jornais dos problemas de saúde em Mato Grosso, sobretudo da mortalidade dos doentes mentais e dos doentes crônicos. De início, ele solicitou ao secretário de saúde que arrumasse os hospitais visitados, independentemente dos custos envolvidos. Então, assumi a direção da colônia de alienados, futuro Adauto Botelho. E, por causa desse posto (ainda que houvesse muito preconceito da sociedade), fui chamado para reitor. Isso, de Corumbá para cá! Se fosse um governador cuiabano, provavelmente eu não seria nomeado. (risos). A imprensa de Cuiabá não me queria, na verdade. Fui nomeado reitor pro-tempore em 16 de março de 71, com o orçamento federal já fechado. Portanto, em 1971, não houve nenhum orçamento. Procurei o Fragelli e mostrei a situação financeira. Ele me pediu que calculasse o mínimo do custeio para que o Estado de Mato Grosso pagasse. Então, nem o Reitor, nem os pró-reitores tínhamos salário. Nem eu, nem Dorileo (responsável pela área acadêmica), nem Atílio (chefe do administrativo) ganhamos nada. Ficamos sem receber esse período inicial, a equipe toda.

Mahon: Quero agora pensar sobre o impacto externo à UFMT. Os tradicionais redutor culturais cuiabanos foram enfraquecidos?

Gabriel: A vida cultural em Cuiabá era intensa. A Academia brilhava. Os saraus eram lá, os convidados que recebíamos geralmente o levávamos para lá. O Rabelo Leite fazia transmissões direto da Casa Barão de Melgaço. A UFMT não achatou a vida cultural da cidade. Pelo contrário. Por exemplo, na inauguração da sala dos tachos, a população ribeirinha foi revalorizada. Fizemos uma composição de tachos que é um show de exposição, de cultura. Nós já tínhamos alguma experiência no Museu Rondon com Wlademir e Pedro Lomba. O formato da Casa da Flauta era muito significativa, por exemplo. Era possível ver os índios passeando pela universidade, uma raridade em qualquer instituição de ensino.

Cristina: Outra coisa que ficou genial foi a flutuação das peças indígenas.

Gabriel: O pessoal que era tradicional me impunha a catalogação, uma série de regras etc. Para nós, entretanto, importava mais a questão estética da linguagem indígena ou a reprodução do quotidiano indígena para que os visitantes se emocionassem. Foi ali que recebi, inclusive, Presidentes da República. Quando o Geisel nos visitou, a segurança não queria ir ao Museu. Eu o convenci alertando que aqui é a terra do Rondon. Foi uma bagunça com a segurança e tal. O João Vieira queria dar o tacape ao Geisel, o símbolo de autoridade dos índios cinta-larga. O Geisel pegou o tacape e ficou rindo daquilo tudo. Nesse dia, acredito que ele dividiu o Estado. Quando entrou no carro, o Presidente disse ao Fragelli que iria dividir Mato Grosso. Disse que o Estado era inadministrável do tamanho que era. A UFMT daria sustentação a Mato Grosso.

Mahon: Mas e a cultura? Esvaziou-se ou foi reforçada?

Gabriel: A UFMT valorizou a cultura indígena, mudou o nome para a Universidade da Selva. Não era a cultura tradicional do centro da cidade. Nós acrescentamos, digamos assim. Imagine o choque de uma mulher de Barão de Melgaço ao saber que o que ela produzia era arte... A Universidade respeitava a cultura indígena. Até o gravador do Juruna foi a UFMT que deu.

Cristina: Esse ponto é muito importante. As instituições tradicionais nunca abordaram a realidade indígena como um valor central. A valorização de objetos não tradicionais, de ribeirinhos, de índios, foi extremamente importante.

Mahon: Esse movimento de valorização indígena foi espontâneo ou um plano?

Gabriel: Tínhamos a consciência do que estávamos fazendo. Eu sempre dizia que a UFMT era facilitadora dessas manifestações. Eram projetos excelentes e nós não poderíamos deixar passar. Montenegro, Lomba, Wlademir eram conceituais. Contratamos o China, o Penha, esse pessoal idolatrado na cidade, absorvendo da cuiabania grandes valores. Quantos casos desses, de contratação de ótimos músicos, tivemos na Orquestra? Mas o começo de toda essa animação cultural com a escola de samba. Acho, inclusive, que somos a única universidade que tinha uma escola de samba com o Batista Jaudy.

Cristina: Eu sei que, de 76 a 79, o Freire e o Wlademir fizeram o carnaval a pedido do Rodrigues Palma. Havia um estigma de que, quem desfilava na rua, era prostituta. E a UFMT foi quem rompeu com esse preconceito, colocando as alunas para desfilar. O papel da universidade, nesse sentido, foi de quebrar o paradigma da sociedade tradicional.

Gabriel: Eu sofri preconceito por causa dessa compreensão! Fui criticado por chamar a universidade de Uniselva, de colocar as meninas pra desfilar, por investir na cultura indígena. A turma queria que eu comprasse mais quadros-negros, mais carteiras, mais giz. O pessoal dizia, inclusive, que tudo o que fazíamos para a cultura era dinheiro jogado fora. Quando o Portela veio e viu o que estávamos fazendo, fez um elogio público à valorização da cultura popular. Daí as críticas acabaram.

Mahon: Considere uma colocação: antes de 1970, uma parcela da juventude mato-grossense era obrigada a se graduar no Rio ou em São Paulo, geralmente. Mas, compensando a inconveniência da distância e dos custos, traziam de lá uma forte influência intelectual. Após 1970, a UFMT virou um forte centro de gravidade. Na sua opinião, como ficaram essas relações de troca cultural?

Gabriel: Cuiabá era muito isolada, sobretudo na comunicação. Em 70, a gente já tinha condições de assistir ao jogo de futebol no mesmo dia. Vinha o rolo de filme por avião de São Paulo e, depois, de Campo Grande. Num primeiro momento, houve realmente essa dificuldade, mas depois com a tecnologia, a comunicação ficou globalizada. As notícias do Rio-São Paulo chegariam de qualquer forma. A pós-graduação foi outra alternativa para abrirmos essa rede de comunicação. Conseguimos um bom diálogo com os professores que iam para fora, ainda que pudesse haver um temporário esvaziamento no campus. A chegada de outros professores de outras cidades também contribuiu com essa abertura, com essa comunicação. O que aconteceu foi uma reação da sociedade tradicional com essa mescla. Mas contamos com apoio de homens-chave como Silva Freire que chamava muita gente para a universidade depois das 18h com o objetivo de fazer dela um point. Trabalhamos com Nelson Pereira dos Santos e Antonio Callado, por exemplo. Os alunos acotovelavam-se e subiam até as janelas para assistir às aulas. Os irmãos Villas Boas tropeçavam lá dentro. Em resumo: esse conjunto reforçou a renovação cultural.

Mahon: Alguma reação das faculdades?

Gabriel: Sim, principalmente do Direito. O Direito era outro mundo. Os professores vestiam-se de terno e gravata, completamente diferentes dos demais que eram mais simples. Foi difícil. Mas, no geral, eu tive quatro pessoas que me ajudaram muitíssimo a fazer a ponte com vários setores, sobretudo com a sociedade tradicional: Gervásio Leite, um gênio, João Antônio Neto, Cesário Neto e o Ditão (Benedito Figueiredo). Cercado por esses quatro, eu me sentia mais seguro. Foi o Gervásio quem me apresentou a Maria Cavalli e a encaminhou para dar aula.

Mahon: Gabriel, recentemente escrevi um artigo sobre o “ensimesmamento” da Universidade. Nas primeiras administrações Gabriel-Dorileo-Atílio, percebíamos um intenso relacionamento com a comunidade externa. Lentamente, com o crescimento da Universidade, ela deixou de ser consultada, deixou de ser uma referência para os temas centrais de Mato Grosso. Esse processo de encapsulamento realmente aconteceu?

Cristina: Quando falamos do nosso segmento, por exemplo, a Federal não leva os escritores para percorrer os vários campi.

Mahon: Nesse quesito, a Unemat tem dado um banho. Nos sentimos em casa ao sermos recebidos pelas várias unidades no interior.

Gabriel: Na minha época, a universidade priorizava o conhecimento, independentemente do diploma, das certificações convencionais. A universidade deve captar os anseios populares da rua. Vou dar alguns exemplos. Convidei o Lúdio Martins Coelho para ser professor, um homem com altíssima capacidade, mas sem diploma. Eu queria que ele transmitisse o vasto conhecimento que tinha em economia. Eu mesmo o apresentei em sala de aula. Ele deu um curso de curta duração e foi ótimo. Quando nós fomos montar o curso de agronomia, perguntei quem conhecia de cinturão verde. Fiquei sabendo do “japonês”, não me lembro o nome. Um sujeito humilde. Eu pedi ajuda a ele para montar o curso, sobretudo na questão do cinturão verde. Quem nos assessorou foi ele. O conhecimento empírico tem validade. A universidade o transforma conhecimento em curriculum, mas o empírico vale muito. Humanizamos o aparelho universitário, mas você Mahon está correto. Naqueles meus primeiros anos, havia muito mais diálogo, ninguém tinha esse complexo de diplomas de pós-graduação.

Mahon: Quero tocar num assunto polêmico nos dias atuais: o compromisso ideológico das instituições de ensino. Não vou nem sequer comentar sobre partidarismos. Quero me manter num outro patamar. A Universidade Federal foi colmatada para desenvolver Mato Grosso. Mas não vejo que esse compromisso inicial prosseguiu. Você acredita que as pesquisas devam estar inclinadas aos problemas regionais ou é muito bairrismo da minha parte?

Gabriel: É uma pergunta muito difícil essa, porque não há nada no estatuto, no regimento, na legislação. Isso depende da sensibilidade do gestor da instituição. É preciso dar oportunidade a todos. O Coutinho certa vez me mostrou a poesia do Silva Freire para ser publicada. Era a coisa mais louca do mundo. Mesmo que eu não entendesse nada, eu me comprometi a publicar. Era importante investir no regional, era uma decisão estratégica.

Cristina: Eu acho que também é uma questão de verba. Falta verba para exercer essas escolhas.

Mahon: Mas você acha que um único gestor pode promover essa inclinação?

Gabriel: Nenhum reitor do mundo consegue administrar uma universidade de verdade, porque não tem autonomia real. O dinheiro já vem completamente direcionado, sem possibilidade de fazermos projetos que interessassem a Mato Grosso. A universidade se perdeu diante da centralização. Hoje, no Brasil, não há ensino superior. O reitor passou a ser uma figura decorativa. A universidade sem autonomia não é universidade. Quanto eu digo autonomia financeira, significa autonomia real de decidir o que quer. Naquela época, tínhamos uma verba até para fazer reserva a fim de apoiarmos projetos interessantes. A partir de 86, essa perda foi se acentuando. Essa Universidade de Rondonópolis nasceu como autarquia, dirigida por robôs autocratas de Brasília... será um negocinho como uma Cohab.

Cristina: Eu acho que, havendo um reitor, com essa capacidade de aglutinação e sensibilizar os programas, é possível. Mas pessoalmente não acredito nisso, porque um combate o outro, uma guerra interna.

Gabriel: Repito. Nenhum reitor consegue realizar nada. Se eu mesmo voltasse a ser reitor, não iria fazer nada a mais do que algumas obras. E, ainda assim, as obras são obtidas por causa de esquemas políticos com deputados. O reitor não defende mais o professor! Recentemente, os professores perderam 28%! E a reitora não disse nada. Outro problema é o aparelhamento partidário nas universidades.

Mahon: Vamos sair da UFMT agora. Você é, de alguma forma, um símbolo. Ter sido o primeiro reitor e, ao mesmo tempo, exercer a medicina, enfeixou em você um valor cuiabano, uma espécie de padrão de qualidade. É raro encontrar alguém mais querido, uma unanimidade. Então, mesmo com o apoio do então Governador, o que aconteceu nas eleições de 84?

Gabriel: O Dante era invencível naquela época por causa das Diretas-Já. O Dante era um candidato nacional e eu era um candidato municipal, ele tinha muito apoio financeiro de dentro e de fora. Eu sei que a população gostava de mim, mas depois havia “aqueles pedidos” que não havia condição de atender. Fiquei muito pouco tempo na política. O negócio é destruir o adversário e não me adaptei.

Mahon: Voltemos ainda mais no tempo. Você é de 1935. Quando você tinha 10 anos, Getúlio deixava o poder, com uma Cuiabá completamente diferente da do início do século XX. Para citar o poeta Wally Salomão, com que olhos você enxerga a cidade: com olhos de fóssil ou olhos de míssil?

Gabriel: Vejo Cuiabá com muita saudade. Cuiabá era para ficar daquele jeito de quando eu nasci. Cuiabá tinha o estilo português. E, de noite, era fresco. Eu, por exemplo, dormia de coberta. Mesmo fininha, era uma coberta! As ruas tortas, para se proteger do sol, eram lindas. A capital era para ser na Chapada como era o sonho do Dr. Mário – Mariolândia. Tenho saudade e tristeza. Eu queria reencontrar o Beco do Candeeiro, Beco Alto, tudo como era. Rubens de Mendonça me explicou a lógica de Cuiabá, uma lógica própria. Era ótimo aprender com ele. Tenho saudade daquela cidadezinha ingênua. Eu sei que isso é passado. Mas nós perdemos a oportunidade de melhorar a cidade ao levar o desenvolvimento para outro lugar, preservando a cidade histórica como Ouro Preto, por exemplo. O nosso centro virou um mercado terrível, feio.

Mahon: Na sua opinião, Cuiabá é a capital do agronegócio?

Gabriel: Você sabe que o agronegócio tem várias cidades que reivindicam esse título, né? Eu acho muito simbólico o Maggi morar aqui na cidade, ele tem até aeroporto. Pensando bem, acho que é sim, Cuiabá é a capital do agronegócio. As outras cidades são muito ligadas com a capital. Sorriso, Lucas e Sinop não vão gostar, mas acho que Cuiabá é mesmo a capital financeira, o dinheiro corre muito por aqui.

Mahon: Em1819, não se comemorou o centenário de Cuiabá. Já em 1919, Cuiabá estava nas mãos de D. Aquino. Surgiu o Instituto Histórico reunindo os maiores intelectuais da terra, ajudando na questão das fronteiras e no fomento cultural. Em 1969, Rabelo Leite concebe os 250 anos da capital com o amplo envolvimento da sociedade. Qual a sua perspectiva para Cuiabá em 2019?

Gabriel: Quando eu tinha dez anos, lembro de um foguetório. Todo mundo saiu na janela, uma agitação. No dia seguinte, fui para Escola Modelo, havia polícia na porta – era a queda do Getúlio! Uma comemoração pela queda do Getúlio. Papai retirou o quadro do bar (ele era getulista), prevendo algum problema. Com relação aos 300 anos, não vai depender do espírito do povo cuiabano, a questão está englobada na situação do país. Como é que o Brasil estará nos próximos seis meses? Ninguém sabe. Nós estamos imersos nos problemas do país. O Brasil está tão envolvido em acontecimentos trágicos, não sabemos quem vai assumir, como vai ser o futuro. Não sei como seria comemorar o aniversário de Cuiabá, sem saber o que será do Brasil. Há um radicalismo de direita e de direita e uma tentativa de aglutinação no centro. A direita está tropeçando num falastrão, a esquerda está equivocada mantendo o fulano como estrela maior. A gente fica desanimado em ver o Brasil. Nem sei se haverá alguma festa.