Essa semana, Eduardo Mahon conversa com Larissa Silva Freire Spinelli que acabou o doutorado no grupo de Estudos Contemporâneos da Universidade Federal de Mato Grosso e pesquisou a obra de Benedito Sant’Anna da Silva Freire.

 

Mahon: Na sua tese sobre Silva Freire, há duas palavras “telúrico” e “decolonizador”. Traduza para nós, simples mortais, por favor.

Larissa: (risos) O telúrico remete à terra, às questões ligadas à terra. A própria palavra já faz uma diferenciação entre territorial e regional. E o “decolonial” é um conceito que se une a outros dois: modernidade e colonialidade. Essa tríade concebida por alguns pesquisadores sociais vem unida: um dos resultados da modernidade é a colonialidade oculta que incide na forma de pensar de vários povos. A decolonização seria a reação a essa imposição.

Mahon: Ou não tão oculta assim... para mim, o que há é uma vergonha eterna de ser quem nós somos.

Larissa: Verdade, para muitos, não é nenhum pouco oculta. Pelo contrário, está até escancarado. Quando digo decolonial é uma forma de reação.

Mahon: E o que tem Cuiabá nesse contexto? Em que medida você pode dizer que a obra de Silva Freire é uma reação ou uma ação decolonizadora?

Larissa: Os tipos que ele tratava. Eram gente comum do povo. Os temas, as histórias, o cenário, tudo isso não estava e não está na estética da cultura de massa.

Mahon: Duas perguntas numa só: o que você pensa de incentivos estaduais para projetos exclusivamente mato-grossenses? você acredita que o poder público deva dar apoio ao artista para que fure a bolha mato-grossense e chegue ao eixo Rio-São Paulo?

Larissa: É preciso equilibrar as coisas. Os incentivos devem mesmo ser desenvolvidos para fomentar a produção local. O produto deve parar em pé, ter substância, ser bom. Havendo qualidade, a política pública deve apoiar e tentar divulgar nacional e internacionalmente. Era essa a questão do Intensivismo.

Mahon: Acho que se o Gervane de Paula fizer uma exposição num espaço “chancelado” de São Paulo ou do Rio, vai ser uma explosão, um grande sucesso. Mas é preciso chegar, expor lá, e sem apoio é quase impossível. Mas voltemos à entrevista: o regional ainda sobrevive?

Larissa: Sim, ainda sobrevive. O turismo é um bom exemplo. Quem viaja para dentro do próprio país, geralmente procura o regional nos lugares visitados. O mundo está cada vez mais olhando para a própria região de cada um. Não no sentido fechado. Ano passado, houve um grande congresso em Salamanca sobre universalismo e particularismo. Não há como dizer que o regional deixou de existir.

Mahon: O Candido faz uma longa exposição sobre o regionalismo. A primeira fase veio da necessidade de conferir identidade ao Brasil que é enorme. A segunda, inseriu o enredo num determinado espaço geográfico, absorvendo elementos do meio. Mas há um regionalismo de pior qualidade, onde o protagonista é a própria terra, ou seja, autorreferente e passadista. Cuiabá está sopitada da autobiografias regionais. Você tem interesse na estante de literatura regional?

Larissa: Necessariamente, não. Penso que deva haver, numa livraria, as produções dos escritores daqui. Por que é que será preciso organizar um grupo separado? Não seria isso um sectarismo? De qualquer forma, vivemos num mundo sectário e hierarquizado. O nascimento do conceito de cultura tem muita relação com isso, com classificações, hierarquias e escolhas.

Mahon: Fico me perguntando até que ponto a defesa do regional não é uma armadilha para ele mesmo. Será que essa nossa defesa não é uma forma de promover a endogamia, a falta de diálogo com o que está acontecendo noutros lugares? Não canso de me perguntar isso: compensa essa proteção a que tanto almejamos?

Larissa: De algum lugar se fala, há sempre um lugar de fala, seja do seu próprio lugar ou de um inventado, existe sempre um lugar de enunciação. Isso é incontornável. Você se pergunta – até que ponto é um tiro no pé. Isso depende da intenção do próprio autor. Até onde ele queria chegar? Com que intenções? De repente, o autor não queria que o livro chegasse no mercado nacional.

Mahon: Depois que o livro está pronto, ele não é mais do autor. Ele será analisado por outras pessoas. Do meu ponto de vista, qualquer autor quer ser lido pela maior quantidade de pessoas possível. Será que os autores não estão dispensando o caráter universal da literatura para fazer da terra o maior protagonista? Como é que fica o leitor que não sabe o que é uma pacupeva? Que não sabe o que é uma manga, um cajá, uma pitomba?

Larissa: Essa discussão tem relação com intenção política. No caso do Silva Freire, isso é evidente. O cenário é Cuiabá, mas não é a única personagem na obra dele. É possível ver traços universais na obra dele, mesmo com esse cenário. Gosto muito de um conceito da Ludmila Brandão – todo o universal é o regional que se tornou hegemônico. O Célio da Cunha também tinha uma definição parecida – o universal é o regional de algum lugar que se universalizou. Quer mais regional que Shakespeare? Ou Camões? Ou Dostoievski? Essa discussão é muito difícil, muito polêmica. O que não podemos é cair na tentação do sectarismo, isto é, dividir as coisas em duas partes. Fundamentalmente, é uma questão política. Para onde queremos ir, com quem vamos nos relacionar?

Mahon: Acredito que qualquer autor universal tem que ter o mínimo de legibilidade. Se não for legível, minimamente legível, não será nunca universal por questões óbvias. É possível ser universal até nas Ilhas Fiji. Mas se um romance fijiano se usar de questões essencialmente locais, incluindo a língua, fica impossível entender no mundo todo. A questão é o drama humano. Veja o caso de Ismail Kadaré, um albanês, que foi remontado em pleno nordeste brasileiro... Funcionou perfeitamente o Abril Despedaçado, tanto na Albânia, quanto no sertão brasileiro.

Larissa: Talvez aí que more a dificuldade do leitor com a obra do Silva Freire.

Mahon: Eu acho que o Silva Freire é muito sofisticado para o povão. Não é isso uma dualidade? Quem é que entende de verdade o Silva Freire?

Larissa: A obra do Freire pode ser considerada etnográfica, onde trabalha a cultura e a linguagem. Realmente, ele faz um processo de racionalização da linguagem a ponto de não ser acessível para qualquer um. Tratava-se de um projeto próprio. Devia ser uma angústia dele não ter com quem dialogar. Uma dos meus primeiros passos foi fazer um levantamento das cartas, anotações avulsas etc. Há ali muito de angústia. Na base da obra de Silva Freire, há a ferida colonial. Um menino apelidado “bugrinho” que saiu daqui e sofreu preconceito por ser diferente, por falar diferente, deve ter sofrido muito. Esse “bugrinho” era depreciativo. Por isso, Silva Freire tinha esse compromisso com a terra, com o lugar, de transformação.

Mahon: A quem ele queria impressionar? Por quem ele queria ser lido?

Larissa: Quando era estudante, foi a UNE. Havia uma rede de relacionamento muito vasta. No acervo literário, há várias correspondências interessantes. Ele estava num processo de troca com outros autores de fora, sem dúvida.

Mahon: Justamente isso. Quando pego um livro do Silva Freire penso – ele não está falando “para” Mato Grosso. Ele queria falar “de” Mato Grosso para o mundo! Isso devia ser muito angustiante.

Larissa: Mamãe contou uma história interessante. Voltando de São Paulo, encontraram-se com Ferreira Gullar. E o Silva Freire estava com o “Enciclopedras”, um poema não publicado até hoje. O Gullar escutou alguns blocos. Levantou-se meio tonto. Realmente, ele chegou num ponto da racionalização da palavra que devo reconhecer – não era fácil. O próprio Wlademir falava nessa diferença com o Manoel de Barros, por exemplo.

Mahon: O Manoel de Barros busca na nossa humanidade uma solidariedade esquecida. Ao dizer que lida com coisas desimportantes, ali surge a solidariedade, e ressurge uma humanidade perdida que responde – não, isso é o mais importante. Não era o caso de Silva Freire, de forma alguma. Você pode classificar a poesia de Silva Freire como reativa?

Larissa: Sem dúvida, a produção dele era uma reação contínua pela reafirmação da terra, no vínculo, no afeto com a terra. Ele está sendo fiel a um lugar de enunciação. No 1º Caderno de Cultura tem inclusive isso mesmo – o filho da terra não a traiu. Ele se coloca em defesa contra o progresso avassalador que apaga os saberes populares. Por isso, esse conceito de colonialidade e decolonialidade veio muito a propósito.

Mahon: E o tom do Silva Freire? O tom do Moisés Martins é inclinado para a nostalgia, para a evocação de uma belle époque cuiabana. Já o do Ronaldo de Castro é de irresignação, de protesto, de denúncia. E o do Silva Freire?

Larissa: Ele era crítico. Estava o tempo inteiro fazendo uma crítica política, ainda que velada. Mas o que predominava era o afeto.

Mahon: Aí está. A grande sacada dele era o afeto!

Larissa: Ele tem uma entrevista que foi encomendada pela Maria Teresa Carracedo, feita três meses antes de falecer, onde ele diz que deveria voltar do Rio por ter um compromisso atávico e telúrico com a terra. Imagine o que ele passou de dificuldade, as situações de enfrentamento. Não é possível ler a obra dele sem saber com quem ele estava dialogando. Ele fazia um projeto de nação, em termos políticos, uma linha de esquerda da época, com Darcy Ribeiro e outros.

Mahon: Como é que o Silva Freire reagia ao conservadorismo daqui?

Larissa: Ele sempre prezou pela tradição, pelo convívio. Havia muito respeito. Mas a verdade é que ele não conseguia dialogar com muita gente. Não adiantava querer uma mudança radical nesse meio conservador. Ele e Wlademir tentaram uma mudança negociada. Em Sarã, por exemplo, havia um misto, era um período de transição. O que as pessoas tinham medo era da independência dele. Por isso, Silva Freire não era bem quisto por muita gente. Daí a morte tão prematura. Eu suponho que essa relação cordial com essa parcela da tradição era do próprio Silva Freire e não do Wlademir, por exemplo. Aliás, sobre essa discussão, me vem agora o conceito de cuiabania.

Mahon: No que você pensa?

Larissa: O conceito de cuiabania foi massificado entre as décadas e 80 e 90. Senti que essa expressão “cuiabania” se tornou uma referência ao poder de uma aristocracia cuiabana, do centro de Cuiabá. Mas não era isso! Quando ele criou a expressão queria abranger o conceito de progresso avassalador do passado e do presente, a resistência dos sobreviventes. O conceito é muito mais amplo do que se fala comumente por alguns movimentos que se apropriaram da palavra e do sentido, inclusive.

Mahon: Quando você cita a outra expressão dele “piçarra-filtro”, acho que aí é a grande sacada da sua tese. Esse filtro que contamina, essa coisa nova que surge filtrada pela própria terra, é a relação afetiva e inclusiva que Freire tinha. É aí que o poeta foi feliz – por não reagir de forma xenofóbica ao fluxo migratório.

Larissa: O que ele fazia não era uma defesa fechada. Ele queria apenas não permitir o apagamento das nossas características. Não há como impedir novas frentes, novas influências, a migração etc. Em “luta pela cuiabania”, Silva Freire rememora uma série de memórias populares que compõem a cuiabania. A utopia da criação da Universidade da Selva é outro exemplo. Uma utopia do ensino do popular pela universidade.

Mahon: Os professores da UFMT ajudaram muitos movimentos culturais de Cuiabá. Parece-me que, ao longo dos anos, perdeu-se essa verve. Mas continuemos – em que medida podemos situar Silva Freire entre Manoel de Barros e Guimarães Rosa?

Larissa: Na minha opinião, ele está bem mais inclinado para o Guimarães Rosa do que para Manoel de Barros. A formação dos neologismos e dos cenários do interior são exemplos disso.

Mahon: É possível explorar a obra do Freire de vários ângulos. Mas ele é lembrado – eu diria quase mitificado – por outras razões: jornalista ferino, tribuno admirável, advogado combatente, excelente companheiro de bar. O homem é maior que a obra ou a obra é maior que o homem?

Larissa: Também tem outro quesito aí que devemos considerar. A obra foi interrompida pela morte prematura e os livros tiveram uma tiragem pequena. Na época, era tudo muito mais difícil. Antes de falecer, ele deixou registrada a vontade da reimpressão da obra dele. Essa questão do comportamento corajoso chamava muita atenção, era o Silva Freire polemicista no jornal e na advocacia e, finalmente, o próprio afeto pela cidade. Era uma personalidade difícil, de um lado, e afetuoso, por outro. Esse conjunto de características é que criou o mito. Mas, de fato, Silva Freire é pouco lido. Além do mais, a família decidiu preservar a parceria com Wlademir e muita coisa não foi publicada em razão disso. Não havia expertise suficiente para pegar os textos de Silva Freire em Mato Grosso. Agora, com quase 18 anos da morte dele, temos qualificação suficiente para trabalhar com os livros deixados por ele.

Mahon: O lance do Setembro Freire foi muito bem articulado. Geralmente, as famílias não têm essa movimentação. Adélia fez o centenário do Rubens de Mendonça e a Marília, do Gervásio Leite. Além dessas duas, só mesmo vocês que revivem Silva Freire de dois em dois anos. Falando nisso, como era ele como pai? Você tinha a noção do escritor?

Larissa: Não havia a menor noção do escritor. Era apenas uma vivência como pai, inicialmente. Depois, quando fomos crescendo, percebemos algo diferente. No carnaval, quando eu tinha uns 8 anos, já sabia que havia uma participação dele muito diferenciada. Quando cheguei à adolescência, soube o projeto cultural proposto por ele. Ainda assim, era fundamentalmente meu pai. Mamãe tinha mais consciência da postura dele. Nós todos nos sentíamos muito protegidos por ele, era um homem muito forte e nos transmitiu essa força, essa persistência no vir-a-ser de cada um de nós.

Mahon: Como pesquisadora, você encontrou um Silva Freire que você diferente do que já conhecia como pai?

Larissa: Muita coisa eu já tinha ouvido. Minha mãe era a memória da casa. Isso ajudava muito para ambientar tudo. Mas, até então, era como se fosse apenas uma história. Não via as coisas como dados científicos. Na pesquisa, essas histórias começaram a se concretizar. Existem vários Silvas Freires, cada um de uma determinada fase. Houve ocasiões em que eu me emocionava muito, sobretudo no que se refere ao tal “bugrinho”. Não dimensionávamos o quão ruim era aquilo para ele.

Mahon: Todo bom autor já foi ferido. Na felicidade, não se encontra disposição para a resistência. Ninguém faz poesia dançando uma valsa com uma taça de champanhe na mão. Para acessar a nossa condição humana, precisamos nos despir dos sorrisos tatuados da vivência social. Imagino que Silva Freire tenha essa marca.

Larissa: Tinha sim esse recalque, essa incompletude na infância. Os absurdos que vivenciou inclusive como advogado. A própria prisão dele na ditadura militar o marcou profundamente. Imagine deixar uma mulher com filhos e ficar preso. Escreveu um poema “É preciso perder-se a liberdade um dia” num papel de cigarro. É muito triste. Ele tinha muitas coisas remoídas na cabeça. Deve ter sido muito traumatizante. Eu tinha apenas 2 anos, mas minha mãe dizia que era muito humilhante – ele vinha e voltada, era interrogado vários dias, até que ficou 50 dias preso sem motivo algum. Nunca foi um ativista do comunismo.

Mahon: Uma coisa é ser preso com 18 anos, num contexto de protesto etc. Outra, muito diferente é ser preso mais velho, com família para sustentar. Eu imagino bem o drama dele.

Larissa: São essas marcas que ele levava que o fazia mergulhar na literatura como fez. Primeiro, no compromisso com a terra, a terra que o marcou irreversivelmente e, depois, com os compromissos políticos que fazia. Meu pai não tinha rabo preso e isso causava medo em muita gente. Dizia na cara de muita gente o que pensava, enfrentava autoridades, enfim, tinha um gênio difícil. Uma vez arrumou uma briga num restaurante que só fomos entender anos mais tarde. Mas o que mais o incomodava era mesmo a descaracterização da própria terra. Na construção do primeiro shopping de Cuiabá, ele ficou horas olhando a obra e tentando entender o que a cidade viria a ser no futuro.