Na entrevista da semana, Eduardo Mahon conversa com a escritora Luciene Carvalho que vai lançar o novo livro Dona, em 2018. Luciene é autora de Insânia, Ladra de Flores, Porto, entre vários outros. Recentemente, foi tema para peça de teatro e documentário cinematográfico.

 

Mahon: Quais os espíritos que te aplaudiram ao entrar na Academia?

Luciene: Penso que muitas entidades prestaram atenção em alguém tão diferente do padrão. Não apenas uma negra, além dos formatos tradicionais. Mas alguém com uma proposta de vida diferente. Sou uma pessoa antiformato. E não é só antiformato acadêmico, mas em geral. Gosto de morar em quintal, quando todo mundo quer morar em apartamento. Sou uma autora que dialoga com o leitor sobre diagnósticos psiquiátricos, quando as pessoas querem esconder os problemas. Sou uma mulher que não cabe nem mesmo nas roupas que eu visto. E não estou atrás de uma bariátrica! Então não estou atrás de um formato, não aliso o cabelo para me adaptar.

Mahon: E como você se sente no establishment centenário?

Luciene: Eu dou um tempo para que as pessoas se acostumem comigo. Entrei de forma respeitosa. Mas não tenho uma responsabilidade, nem sinto peso por causa da Academia. O meu compromisso é com o meu leitor. Todo mundo quer ser respeitado, mas faço um livro de verdade, genuíno, de acordo com a minha vida.

Mahon: Você se sente representante ou representando?

Luciene: Eu não sinto, eu me sei representante. Há poucos dias atrás, no Sarau das Minas, tive um exemplo disso. Nunca haviam homenageado uma negra viva. Isso é significativo. O pessoal da Universidade que trabalha a questão da negritude é outro segmento. São eles que estão me falando que ter entrado na Academia é importante para a luta. Se você quer saber bem a verdade, eu no início queria mesmo era agradar a minha mãe. Porque minha mãe era uma negra que me deu uma única chance, diferente das outras meninas da minha idade. Ela não me colocou na casa de ninguém para trabalhar como doméstica, me deu uma oportunidade de estudar. Foi aí que minha mãe fez a revolução. Ela mesma continuou trabalhando, mas me deu suporte para a vida. É aí que a história muda. Permitiu ainda que eu tivesse uma imagem de mim que não fosse associada à submissão.

Mahon: Como você percebe a posição política de cada confrade? Tem gente que interpreta a vida como teatro, como arena etc. Como você interpreta a sua própria convivência com outros personagens da literatura?

Luciene: Eu acho que as pessoas estão cegas e não estão vendo o tamanho da militância do nosso tempo. Ela não se dá na tribuna, nem nos partidos. As eleições não representa mais a essência do que está acontecendo no nosso país. Para mim, o fato político mais importante dos últimos tempos foi o surgimento das redes sociais. As pessoas se agrupam por ideias, por identidades comuns. Mataram o espaço, o tempo. Vamos nos agrupando pela construção de identidade e isso é a maior forma de expressão política que há. Muita gente nem sabe do que estou falando.

Mahon: Quem você bloqueia?

Luciene: Eu não bloqueio ninguém. Simplesmente não deixo entrar! (risos). Não deixo entrar pessoas invasivas, as pessoas que atormentam. Não suporto os ladrões de paz. Os ladrões de paz pertencem a todas as classes sociais, sabe? Não há como comprar paz. Mas há gente que quer roubar a paz dos outros, ficam provocando, ridicularizando, dando pequenas alfinetadas, falando mal. Isso me é insuportável. Minha prioridade são os laços, os laços de paz, os laços de ajuda, enfim. As pessoas que gosto dão a sombra de suas companhias.

Mahon: Quem é que você incomoda?

Luciene: (risos) Um elefante incomoda muita gente, uma preta grande incomoda muito mais! Mesmo que eu perceba um incômodo alheio, eu sou cênica. Eu nunca fui no gogó de uma pessoa.

Mahon: Eu já fui no gogó de várias pessoas!

Luciene: Eu perco. Sempre vou perder num confronto direto. Eu choro a dor de muitos. Eu sinto uma dor atávica da condição social. Tenho um trabalho de ajuda mútua, um companheiro que é negro. Ter chegado a um relacionamento com um negro foi uma conquista, depois de ter casado com brancos. Mas quando sinto que incomodo e que sou indesejada, eu escrevo um poema, faço um show. Torço para que o desafeto esteja presente. Eu peço emprestado o brilho das estrelas, converso com elas.

Mahon: E o que as estrelas te dizem?

Luciene: Elas me dão a luz na hora de declamar e vejo esse brilho nos olhos das pessoas. É muito lindo sentir que, com voz, memória e texto, eu posso mudar a qualidade de um ambiente. A literatura pode mudar um ambiente, um poema bem dito. Até quem estava com sono suspende o tédio. Um bom texto é uma picada na veia.

Mahon: Você já leu o Verônica decide morrer? Assistiu ao Bicho de Sete Cabeças? Muita gente morre de medo de você. Talvez seja a forma que você fale, sei lá. Afinal de contas, por que você foi internada?

Luciene: Caetano sempre foi brilhante ao falar sobre desafetos: “É que Narciso acha feio o que não é espelho”. Fui internada porque tenho problemas de bipolaridade, distúrbio que não pode ser tratado da mesma forma convencional, com a mesma dose de medicação. Do contrário, sinto a virada maníaco-depressiva. Vou aos extremos: da depressão à crise maníaca. Passei nove anos longe das drogas e demorou muito tempo para me aceitar dependente química. O remédio é a abstinência. É por isso que não acredito na política brasileira de redução de danos. O dependente químico que tem contato com a droga vai se afundar novamente.

Mahon: O que você viu na internação que você não gostaria de ter visto?

Luciene: Eu me vi ali dentro. Isso eu não deveria ter visto. É muito cruel. Os transtornos não deveriam ser tratados com internação. É muito triste ver-se lá dentro. Eu nem sabia do que deveria ser tratada. Misturavam tudo: questões morais, de comportamento. Pessoas próximas da minha mãe diziam que eu iria virar a “mulher do saco”. Foi muito penoso enfrentar isso. Me salvei escrevendo! É preciso aprender a sobreviver, a não morrer. Não há enfermeiras, todos são assistentes. Psiquiatra é só de quinze em quinze dias. A internação é criminalizante.

Mahon: Concordo integralmente. Os criminólogos europeus dizem “processo de etiquetamento”, muito embora essa expressão já esteja popularizada.

Luciene: Quando as pessoas dizem que você é louco, te desconstroem. Perde-se completamente a cidadania. Ter sobrevivido a isso é a minha maior vitória. Quando me serviam feijão, eu não reconhecia os caroços de feijão. Era só caruncho. Não tinha carne. Bucho era uma vez por semana. Mulheres trancadas na ala sem água, sem bebedouro. Eu vi mulher tomando água de vaso. Ela é louca? Não! Ela precisa tomar água por causa do remédio que deixa a boca extremamente seca.

Mahon: E como você não se institucionalizou? Foucault dizia que a prisão, o manicômio e a escola são aparelhos de institucionalização. Como é possível escapar da etiqueta social que te colocam à força?

Luciene: Eu tive muito medo. Mas tinha uma coisa dentro de mim que me ajudou. Ganhei o festival de poesia. Vislumbrei na literatura uma forma de salvação. Não acreditava que estava acontecendo aquilo comigo. Os Van Gogh da vida estavam lá. O tempo te mata: não há leitura. Tem a T.O., terapia ocupacional. No mais, tem o preso judiciário que come as meninas da internação. Eles não têm nada de loucos, escapam da cadeia com a história de loucura. Dominam o ambiente com dinheiro. Uma garota, em 1995, custava 5 reais.

Mahon: Nos filmes, há uma visão distorcida sobre a internação. Quase sempre, o protagonista “não é doente”, foi colocado ali para identificar-se com o público espectador, a fim de narrar o que se vê. Mas é um retrato do normal sobre o “anormal”. Na sua experiência, você via os outros internos como iguais ou como diferentes? Algum dia você mesma se identificou?

Luciene: Ah sim, já cheguei até a chegar para o médico e gritar – você quer discutir com um louco?! (risos). Sim, porque num surto psicótico, ninguém discute com o louco! Eu queria liberdade, mesmo na crise, queria a liberdade a todo o custo. Muito embora eu respeite o movimento antimanicomial, eu acho vários casos demandam a internação. Quem não sabe a diferença entre a realidade e a imaginação, quem vive para lá do espelho, precisa desse acompanhamento. Mas não em casos de distúrbios. Basta a medicação. Na minha experiência, em qualquer estado transitório, a internação serve para proteger os outros e, sobretudo, a si mesmo. Deve-se internar alguém com ideação suicida, por exemplo. Ocorre que é preciso urgentemente descriminalizar a psiquiatria, tratar a doença como um caso médico como vi em Ribeirão Preto, por exemplo. Temos que combater as barbaridades da internação, aquelas que permitem ao enfermeiro levar uma menina dopada para a sala de curativos a fim de abusar sexualmente dela. Isso não acontece quando a psiquiatria está próxima da medicina e não do crime.

Mahon: O suicídio sempre ocorreu na trajetória humana. Até que ponto alguém pode dispor da própria vida? Não seria legítimo dispor do corpo livremente?

Luciene: O suicídio é um orgulho, Mahon. Na mente alterada nos neurotransmissores as sinapses não funcionam. O primeiro pensamento depois que se acorda é – não vale a pena viver. Isso é muito penoso. O suicídio não é legítimo, é preciso tratar a pessoa. Quando vamos saber que o suicídio não é patológico? Pode ser um quadro doentio. Temos que tratar o superego.

Mahon: Sim, mas e se for uma questão de ego? E daí?

Luciene: Vou bater a real pra você: acho feio devolver o corpo estragado. (risos)

Mahon: Ok, mudemos de assunto.

Luciene: Quer saber? Diante de tanto problema, comparando dificuldades na vida, ao olhar pra miséria absoluta da África, acho que saí no lucro! (risos). No meu livro novo – Dona – tem um trecho assim: “meu verso é pardo como o meu país”. Eu procurei esse verso a vida inteira, Mahon. Dona é um olhar reflexivo para os que morreram, para os que mataram, para os que buscaram a liberdade.

Mahon: Nesse sentido, você é a favor das políticas afirmativas?

Luciene: Que políticas afirmativas? O que eu vejo é uma forma, um método de acesso, uma forma de reproduzir a cultura branca e patriarcal – uma papinha na boca. As políticas legítimas nascem do grupo. Veja o que está acontecendo na denominação dos grupos LGBT. Antes era o GLS, agora é o LGBT. E tem outras letras. Eles estão tomando o alfabeto! A política afirmativa funciona quando parte de quem precisa delas. Quando esse país deixar de ser ridículo de falar em porcentuais e admitir a própria negritude, vamos melhorar. Não adianta o acesso à medicina se, depois, o preto vai querer se transformar em branco. Isso nasce na própria família negra que forja esse pensamento. Eu sou filha desse Brasil assim. O que estou falando é que o negro precisa primeiro ser negro. O que adianta quota, se o negro vai querer sair da faculdade para ser branco?

Mahon: O que você está falando é sobre a educação para o negro ser negro.

Luciene: É uma questão junguiana. Os mitos precisam ser derrubados. O preto precisa deixar de ser pau, de ser piça, e querer se colocar de forma diferente. É um despertar interior. Nesse país, o jogador de futebol que é preto, quando fica rico, arruma uma loira para andar de iate e confirmar o sucesso, entende? O que estou falando é sobre um despertar do espírito. Do contrário, ocupa-se a quota somente para ficar branco. Morre-se aos 50 como o Michel Jackson, depois. Quando as políticas afirmativas quando não partem da própria classe, são amputações.

Mahon: Mas vou repetir uma pergunta que fiz na semana passada para Adriana Vandoni. É preciso ter pressa. O negro espera esse “despertar do espírito”?

Luciene: Você está olhando uma preta. Você acha que estou atrasada?! 

Mahon: Mas você é minoria, ora bolas!

Luciene: Quando estava cruzando a Barão de Melgaço, logo depois que vocês me elegeram para a Academia de Letras, uma mulher que já tinha passado por mim 500 vezes e nunca havia dito nada, virou-se pra mim e disse – você “pegou” uma vaga lá na Academia? Que bom né? Você foi lá e “pegou” uma vaga pra nós. É claro que essa mulher tem consciência de classe. As meninas entrando de black power foi uma desconfiguração da Casa. Tinha louco, tinha noiado, tinha branco, tinha preto, tinha pobre. Ainda que não tenha sido a primeira pessoa negra a entrar na AML, sou a primeira pessoa que simbolicamente, afirmativamente entrou “como preta”, como senzalada, com consciência social, entende? Acho o máximo que minha vida sirva para experimento social.

Mahon: Mas a sua eleição não foi experimento social! (risos) Você entrou porque é uma grande poeta.

Luciene: Mas a questão é macro, Mahon. Chega uma hora que tem que entrar alguém como eu. Chega uma hora no hospício que alguém precisa sair vivo. Esse alguém sou eu. Tenho alguma honra nisso.

Mahon: E o futuro?

Luciene: Os pretos estão sabendo de tudo. Está tudo revelado. Rapaz, eu estava assistindo o jornal da Globo, cobrindo São Paulo, com um black power deste tamanho! A Glória Maria já cumpriu o papel dela, alisando aquele cabelo. Parece que é pouco, mas a cada dia fazemos uma conquista. Há escritoras negras aqui em Mato Grosso. Mas quanto tempo passou sem que o preto tivesse educação. Tem a Júlia, a Azul. São pretas que estão escrevendo bem. Mas a apropriação da língua demora muito. Quando é que preto podia estudar? Quando é que preto poderia fazer literatura como preto, na condição de preto?

Mahon: Nunca!

Luciene: O Mobral foi o primeiro experimento com os pretos, com os velhos, com os pobres. Tem menos de 100 anos. Eu mesma não tenho pleno domínio da língua portuguesa, mas tenho a ousadia de lidar com ela. Tive em casa o exemplo da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos. Todos nós líamos, de jornal a quadrinhos. A gente morava muito dentro do Pantanal, na última estação do trem, em Ladário. Era o embarque e desembarque de gado da região. Ali abriu uma escolinha municipal e já entrei com 5 anos alfabetizada. Eu lia até caixa de Kolynos.

Mahon: Preto, negro ou afrodescendente? Faz diferença?

Luciene: É tudo gente. Não adianta chamar de “afrodescendente” e tratar como cachorro. Pode chamar de “afrodescendente da silva” e fazer de empregado. A gente tem desejo, mas é escravo de uma cegueira. Como disse no poema, o meu país é pardo. Esses pretos vão comer japonês, vão entrar em todos os lugares. Para mim, não faz a menor diferença como chamam o preto. O que eu quero é a diferença, a diferença de ser tratada como igual. Ninguém te chama de “branco”, por exemplo. Pessoalmente, pode me chamar de “Dona”, como o nome do meu livro. Só Dona. Já está bom. Numa certa ocasião, onde havia muitos acadêmicos, chamaram todos de imortais, mas a mim, de Luciene. Se houver muita dificuldade, podem me chamar pelo título que conquistei – de imortal.

Mahon: Literatura mato-grossense ou, como diz o Mário César Leite, literatura brasileira produzida em Mato Grosso?

Luciene: Eu prefiro literatura. Somente. Gosto muito do Mário César. Ele é passarinho. É o tipo de crítico que carrega sementes. O que não suporto é o crítico que quer fazer política, que quer fazer a desconstrução do poema, que quer se meter a besta de se fazer em cima do escritor. Não quero saber do crítico. Não quero ter o saco cheio. Estou muito ocupada produzindo. Tem pessoas amargas que acham que o trabalho delas é maior do que o do escritor. O Mário César colabora, é uma pessoa leve. Bem, se o Mário César chama assim a literatura daqui, eu vou ficar com a versão dele! Eu estou ocupada escrevendo, declamando. Quero conquistar leitores com o ouvido. Preciso de tempo pra fazer tudo isso.

Mahon: O que é a poesia?

Luciene: Minha poesia é uma salvação e uma celebração. Fiz essa opção de vida: viver exclusivamente de literatura. Faz sentido. É o melhor de mim. Assumi essa trajetória, ainda que seja penoso. Me chamaram de louca nesta cidade. Mas escolhi viver assim. É a opção de ter o telhado mal ajambrado, sempre pronto para o concerto. Eu vivo do show, eu vivo do livro. Foi por isso que achei tão bom entrar na Academia. No momento da posse, quando falei a história dos meus antecessores e pensei em mim, me senti guardada, me senti protegida. Eu sou da literatura!