Continuamos com a série de entrevistas realizadas pelo escritor Eduardo Mahon. O entrevistado da vez é o diretor, produtor e jornalista Luiz Geraldo Marchetti. Auxiliando com provocações, a professora e escritora Icleia Lima e Gomes não deixa barato.

 

Mahon: Sempre tive uma dúvida com relação ao CALM. Antigamente, a sigla era Centro de Arrogância Luiz Marchetti. Eu achava aquilo genial, irreverente. Você dava uma banana para muita gente. Hoje mudou a denominação?

Marchetti: Ele nunca deixou de ser centro de arrogância, tanto que o wi-fi continua sendo, mas o CNPJ é de centro audiovisual. Quanto voltei pra Cuiabá, desenvolvi alguns projetos culturais de graça e acho que abaixei tanto que minha calcinha que foi parar no pescoço. Senti que precisava recuar e dar valor ao diploma que conquistei fora do Brasil.

Mahon: Você se sentiu popular ou populista?

Icleia: A ação cultural que você fez foi para mudar a conformidade?

Marchetti: Percebi que, depois de tantas iniciativas, comecei a me tornar aquele que sempre trabalha como voluntário e, sinceramente, durante 3 anos em Mato Grosso, eu era lembrado para filmar, produzir e dirigir gratuitamente, a velha piada de que o artista precisa de divulgação. Chegou uma hora em que eu não quis mais. Daí passei a ser arrogante para quem me queria de graça. Além do mais, me especializei em autores irônicos de Emmanuel Bove, ainda que saiba do perigo que é lidar com ironia.

Mahon: Parece que você se comporta como uma espécie de tutor da moçada reunida no CALM. Além das questões artísticas feitas em coletivo, você participa intimamente da vida dos associados, digamos assim. Como é a construção dessa convivência? Não dá choque, rolo, briga?

Icleia: Você corrompe a juventude?

Marchetti: Eu acho que sou corrompido pela juventude! (risos) Penso que essa forma de organização vem do tédio dos “adultos”. Há algo na cultura jovem, na cultura urbana inglesa, na Praça da Mandioca, que eu me sinto mais em casa. Pela irreverência, pela desmistificação das drogas, pela diversidade religiosa. Então, me entedio menos com eles. Muito embora a minha melhor amiga seja Marília Beatriz.

Icleia: Mas você não acha que, na Praça da Mandioca, há uma única tribo?

Mahon: Pelo contrário. Há um conflito de estilos. Os sertanejos brigam com os emepebistas, estes com o rock e por aí vai.

Marchetti: Na Mandioca, eu desfruto da diversidade, ainda que eu me choque com o sertanejo.

Icleia: Em que ponto você se relaciona com a academia? O Marchetti é um professor?

Marchetti: Estou batalhando a regularização do meu mestrado, mas dei aula durante anos, sempre lecionei.

Mahon: Vamos voltar ao ponto: e a tutela? Você tutela a galera jovem?

Marchetti: A galera está muito engajada a procura de qualidade, de cinema, de literatura. Tenho ligação com Caio Ribeiro, Douglas Peron, um grande profissional que é cenógrafo e que tem preocupação com o futuro da cidade.

Icleia: Você tem algum guru?

Marchetti: Durante muito tempo foi Beckett. Acho que meu guru pode ser minha mãe. Ela se esforça em lapidar permanentemente o raciocínio dos filhos, até a maneira de se expressar, estimulando a avançar ou recuar.

Mahon: E você se acha guru de alguém?

Marchetti: Eu acredito que, até por eu ter estudado tanto, as pessoas encontram na minha casa, no meu espaço, boas referências de filmes, teatro e arte contemporânea. Mas não existe mais isso. A internet conseguiu dissolver a ideia de um farol.

Icleia: Você quebra a relação vertical e a troca por uma relação horizontal, quase gramínea.

Marchetti: Aquele que rompe hoje vai ser o cristalizado icnográfico de amanhã. O amanhã é bolacha Maria. É ai que o jovem me chacoalha. Aquilo que penso como extremamente atual, o jovem já chama de ultrapassado. Isso é ótimo pra mim.

Mahon: Tudo será ultrapassado? Nós todos vamos nos transformar em bolacha Maria?

Marchetti: Eu me prostituo diariamente em formatos vendáveis, mas eu tenho a consciência que é essencial conviver com o que ainda não vejo. Eu não caminho com o que há diante dos meus olhos e sim com a lateralidade. Tudo vai acabar, o que fica é a relação com o próximo. A relação com o próximo é que é a maior obra de arte.

Icleia: O próximo é o que está mais próximo?

Marchetti: É a relação de aceitação com o outro, entre o que as pessoas são e o que podem ser.

Mahon: Depois de estudar na Inglaterra, não dá vontade de chorar em Cuiabá?

Marchetti: Dá vontade de me matar às vezes. Mas eu também me sentia assim na Inglaterra. No Soho, você lida com o stress das pessoas informadas, aqui você precisa lidar com o stress das pessoas ignorantes. Há pouca gente que escute. Tenho certeza de que eu poderia levantar programas de televisão que seriam destaque em Mato Grosso, mas aqui acabo sendo escanteado. É complicado para mim. Nunca tive um projeto meu aprovado por este governo (Taques). E sei que é uma perda, mas uma perda para este governo. Os projetos envolviam coletivos gigantescos que faliram, se desmancharam. O trabalho da Casa Silva Freire com o Setembro Freire, enfim, os filmes que fiz – eles mostram que poderíamos valorizar outros escritores, outros artistas. Não tive essa oportunidade.

Mahon: O que você acha que é possível fazer em Cuiabá?

Icleia: Você, Marchetti, já falou do que poderia fazer e que não fez.

Marchetti: Acho que tudo é possível. infelizmente, os gestores culturais daqui ainda repetem receitas que fizeram sucesso em shopping e não necessariamente que transformaram cidades ou países.

Mahon: É cultura de shopping?

Marchetti: É cultura de shopping.

Icleia: Você não acha que é uma questão até anterior à cultura de shopping, num tempo em que só havia estudo de folclore?

Marchetti: Eu passo boa parte da minha vida estudando, lendo, viajando, pesquisando expressões culturais contemporâneas, imaginando como seriam essas manifestações aqui em Mato Grosso. Tudo é viável, é possível fomentar arte contemporânea no nosso Estado, mas o que realmente é preciso não é apenas trazer a Bienal, fazer algumas oficinas. Acredito que seria um diálogo mais intenso com escolas, ter uma preocupação pedagógica de relacionar o que é produzido e o acesso de estudantes. Acredito que a Bienal é importantíssima, mas algumas pontes precisam ser construídas. Para mim, não basta apenas trazer uma Escola de Teatro, ainda que respeite os módulos que a escola promove. Me soou profundamente estranho estar numa plateia com Luiz Carlos Ribeiro e minha mãe e ouvir alguém completamente desconhecido dizer “oi, eu sou diretor da escola”. Foi nesse momento que eu tive um pouco de pena de Pedro Taques, coitado. Ele precisava entender que nós temos uma história. Hoje, tenho certeza da importância da MT Escola de Teatro e de todos esses formatos que dão uma sensação de importação, mas é fundamental descolonizar essas implantações. Estou aqui. Eu e outros profissionais deveríamos estar na grade, no contexto.

Icleia: Não te perguntaram nada? Nenhum palpite?

Marchetti: Não. Já veio como hierarquia pronta, e me convidaram para ser “um nativo com quem tivemos diálogo”, uma mera quota.

Mahon: Você é um aborígene! Mudando um pouco de assunto: o que é mais vantajoso para o cinema de Mato Grosso: um edital de 1 milhão de reais para um único filme ou dez filmes de 100 mil?

Marchetti: Isso é diferente, a questão não é bem essa. A grandiosidade arquitetônica tem um valor numa cidade. A criação de um longa é uma necessidade do Estado em dialogar com outros longas produzidos no Brasil. A minha formação é de curtas, de filmes de arte. O que existe são mercados diferentes. É importante que haja o financiamento do longa e o financiamento para o vídeo-arte. O que preciso ficar claro é que todo o cinema deve ser experimental. A nossa conversa, por exemplo, é experimental. O cinema é uma experiência. Algo tem que te tirar do lugar. Seja um longa, um curta, um vídeo-arte. O problema que tenho com o financiamento do longa não é uma questão financeira, é uma questão de repetição de uma receita. A minha torcida é que esses longas financiados tenham uma cara experimental, uma cara de Mato Grosso, assim como o cinema realizado em Pernambuco.

Mahon: Vou entrar numa polêmica interminável contigo. Uma latinha de merda é arte? Um vaso sanitário instalado num museu é arte?

Marchetti: Trata-se arte pelo contexto. Existem pinturas perfeitas com perspectivas exatas que, pra mim, não valem uma lata de merda.

Icleia: E por que a merda é arte?

Marchetti: É que, naquele contexto, confrontando tudo o que estava na galeria, no museu, funciona como arte. É tudo contexto.

Mahon: Você está querendo dizer que o “contexto” é negociado entre artista e o público. Trata-se de um pacto, é isso?

Marchetti: Se o apreciador não aceita as regras, é ele quem perde. É fundamental ao público entrar nas regras de contexto do artista. Se você já observa uma obra querendo recusá-la, não vai adiantar nada. A cama (My bed) de Tracey Emin foi uma das obras mais atacadas na atualidade. Para mim, é essencial falar de aborto, e sendo assim, a obra é fundamental, ainda que haja sangue e calcinha manchada.

Icleia: Fundamental do ponto de vista do produtor de arte ou contra o produtor?

Marchetti: Enquanto artista, eu crio trampolins. Quanto mais referências, maior é o salto. Não crio nenhum empecilho de cair de barriga na água. O charme da experiência artística é conseguir se superar.

Icleia: O que serve um museu sem educação? Nada. Pode ser estar aberto, mas não adianta nada sem um professor. Há um hiato filho da puta entre cultura e educação. Como é que pode alguém se queixar de museu fechado, se o museu aberto não é frequentado?

Marchetti: Minha família vem da educação. O que eu acredito é que o ideal seria uma corrente. Cultura com turismo, por exemplo. Cultura com educação.

Mahon: Quero voltar ao tema. O que pergunto é o seguinte: se o contexto do autor é sempre o referencial, a merda nunca pode ser simplesmente merda? Sempre será uma obra-prima, se o autor disser que é... Se eu (e o público) não entendo Gerald Thomaz, não é péssimo? Você não acha péssimo o artista não ser compreendido?

Marchetti: A frustração – talvez seja ela – a ferramenta essencial para tirar o público do seu próprio lugar. Acho fantástico que, na atualidade, eu sinta desconforto. Ir a uma peça e se sentir um pouco mal talvez ajude a tentar compreender a peça e buscar outras referências.

Icleia: E a transformação social pode até se dar com o mal estar.

Marchetti: A maioria das peças que mexeram comigo não trataram de uma casinha branca numa montanha e sim uma vaca apodrecendo num blindex com moscas, são trabalhos que realmente me chacoalham, me fazem pensar no que vem por aí. Não estou muito preocupado com conforto, com luxo. Sei como o Brasil tem muito novo-rico que não entende nada. O que me seduz são as rimas novas, são as rupturas que me fazem repensar.

Icleia: Não há nada do velho que se aproveite? Como falar com a juventude, sem mencionar o passado?

Marchetti: O que preciso deixar claro é que, para pensar no contemporâneo, não significa que se despreze perspectiva, por exemplo. Saber por onde passamos é fundamental. Acho uma idiotice quem não conhece a história do audiovisual. Para desconstruir algo, é preciso saber história. Tem muita gente que nunca viu Chaplin e acho uma pena que não queiram nem ver.

Mahon: E a arte engajada? Politicamente engajada, quero dizer.

Marchetti: Toda a arte é uma arte engajada. O que existe é um coeficiente. Um tom, mais ou menos explícito. Um exemplo Dzi Croquettes durante a ditadura. Eu acredito que, em alguns momentos, é preciso lidar com um tom mais explícito. Achei engraçado um grande tapete (capacho) com a cara do Temer. Naquele momento, achei apropriado. Há uma produção artística que não quer se mostrar preocupada com questões raciais no Brasil e outra que quer dar as mãos para esse problema. Vai entrar para a História aquela que ganhar a população. Mas também respeito a arte pela arte. Se ela for boa de verdade, sem sublinhar questões sociais, ótimo. Não combato uma arte competente que não tem engajamento político.

Icleia: E a arte moralizada?

Marchetti: Uma das produções mais premiadas foi La-La-Land. Em pouco tempo, será esquecido. Serviu para algo aquele filme? Sinceramente, não. Serviu para abafar outros filmes belíssimos que não ganharam o prêmio. Foi uma calamidade. Há lançamentos mainstream que desfocam daquilo que presta. A arte moralizada é um grande perigo, um absurdo. Lida-se com a ignorância do povo que não tive educação suficiente para a apresentação artística. Não amo “os macaquinhos”. Sinceramente, não me atrai. Mas acho fundamental haver “os macaquinhos” no Brasil. Fico um pouco chocado com “macaquinhos” em 2018. Mas outros virão que saberão lidar com isso, num tempo onde o cu alheio será apenas uma parte do corpo.

Mahon: O que você prefere: as palmas do público ou uma crítica positiva?

Marchetti: Eu prefiro aquilo que eu acho correto. Não consigo mentir pra mim. Tento diariamente lidar com o mais popular e a vanguarda. O que eu preciso saber é que eu fui verdadeiro, fiz o melhor naquela expressão, seja popular, seja vanguarda.

Icleia: Você não acha que teatro em Mato Grosso tem travesti demais? Você não acha que tem muito homem de saia?

Marchetti: Qual teatro?! Imagine... Apenas 0,0001% em que há a expressão trans. Essas pessoas são tão importantes como qualquer um. Não devemos esquecer que, nas escolas de dança, os trans são invisíveis. Determinados personagens podem ser atalhos financeiros. Oportunidades não aparecem sempre e nem para todos.

Mahon: Concordo contigo. Mas, mudando de plataforma... O Chiclete Imaginário está para ser lançado. Qual a proposta? Qual a expectativa? Eu – que sou autor dos textos – terei uma surpresa?

Marchetti: Com certeza, você vai se decepcionar. Mas isso não impede de você verificar o quão foi lapidada a minha interpretação autoral. Trabalhei com os melhores profissionais, inclusive a melhor colorista do Brasil e os atores que admiro aqui em Cuiabá – Chabô e Carol Argenta. Eu vejo a literatura como um universo de ingredientes. O cinema tem essa capacidade de retórica. Eu acho que você vai adorar.

Mahon: Você é maluco, porra! Você não disse que vou me decepcionar?

Marchetti: O problema é a expectativa literal do autor. Se você não tiver essa expectativa, vai adorar.

Mahon: No Facebook, li uma opinião sua que achei inteligentíssima. Com a nova estruturação do modelo burocrático da SEC de Mato Grosso, você ironizava que os ganhadores de editais não serão os melhores artistas e sim os mais aptos a preencher formulários.

Marchetti: Não sei se fui eu quem disse isso. Mas independentemente se fui eu ou não, acho uma pena o artista ter de se submeter à burocracia que da SEC que não saiba lidar com arte. É urgente um birô para que o artista seja auxiliado no projeto. Eu tive a sensação nesta última gestão é que houve um combate ao doméstico, um desprezo pela história dos artistas daqui. Uma das artistas mais famosas do Estado perdeu um edital por não haver comprovante de residência no projeto. É ridículo. A nossa SEC não pode ser uma parede. Pelo contrário, deve ser uma mão esticada querendo nos tirar do deserto onde estamos. Mato Grosso sem o SESC seria um grande deserto.