Continuamos com a série de entrevistas realizadas pelo escritor Eduardo Mahon. O entrevistado da vez é o escritor, professor, pesquisador Mário César Leite. A professor Olga Maria Castrillon Mendes ajudou com os questionamentos.

 

Mahon: Vou ser direto contigo. O que mais me impressionou no seu trabalho foi a sacada da construção de uma identidade literária mato-grossense, com base numa plataforma lançada por Aquino e Mesquita. Desconfio de que essa plataforma não tenha havido, assim deliberadamente como você afirma. Eu queria que você me explicasse o seu ponto de vista.

Mário César Leite: Na primeira metade do século XX, a louvação do local era muito comum. É nesse momento em que as instituições começam a surgir, como o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e a Academia Mato-grossense de Letras. Essa pegada já estava posta. Quanto digo sobre um projeto, falo de pessoas que escreviam com esse objetivo. Foi o que aconteceu com a literatura de Alencar, por exemplo. Ao nos separar de Portugal, a mesma questão se apresentou como “projeto nacional”. O projeto surge, cria um tipo de passado para projetar o futuro, a partir da ficcionalização do passado. No caso de Mato Grosso, eu vi da mesma maneira, guardadas as devidas proporções. No caso de D. Aquino, entre discurso, prosa e poesia, há ali a mesma intenção. Falar das nossas coisas, da nossa gente, é uma recorrência. Os intelectuais do sul, por exemplo, reclamavam sobre essa imagem de Mato Grosso, criada com o objetivo ideológico. O “passado grandioso” higieniza os conflitos entre bandeiras e índios, por exemplo.

Mahon: Se pensarmos em termos de hegemonia, haverá vozes a serem silenciadas para que a hegemônica se reafirme, não? Quais são essas vozes? De quem estaríamos tratando?

Mário: Essas vozes é que são difíceis de localizar. Quando não há hegemonia literária, elas somem. Esse silenciamento, essas dissidências é que são complicadas localizar nas pesquisas. Curioso é que as dissidências tornaram-se hegemonias futuras.

Mahon: O que você me diz do Lobivar de Mattos?

Mário: Podemos pensar no Lobivar de Mattos como primeiro modernista. Ele não teve nenhuma intervenção efetiva até ser “descoberto”. Nenhuma influência concreta sobre o que se produzia aqui em Mato Grosso. O mesmo se diga do Gregório de Mattos na Bahia, por exemplo. Todo mundo sabia de cabeça uma quadrinha atribuída a ele, mas até ser redescoberto por pesquisadores, nunca foi uma grande influência. No caso do Lobivar, quem vai dar mais destaque é a Hilda com História da Literatura do Século XX.

Olga: O que aconteceu com Lobivar foi o momento do discurso em que ele explorou. Estava, naquele momento, descontextualizado e, por isso, a produção dele não apareceu. Era raro falar de trabalhadores, do negro, das minorias. Quando os pesquisadores descobrem as minorias, aí sim ele se torna atual e ganha uma importância que, na época, pode não ter tido.

Mário: Eu me lembro do Rubens de Mendonça comentando ironicamente o prefácio do Pagmejera Pagmejera, da Vera Randazzo. Ele dizia que o lançamento foi um grande sucesso, ninguém conseguia encontrar o livro porque vendeu tudo na noite do lançamento, mas foi feita uma tiragem de 30 exemplares (risos). O Rubens era muito irônico.

Mahon: O cânone literário, então, forçosamente tem ligação com riqueza. O bom autor, o autor que se pereniza tem condição financeira para isso. É isso?

Mário: Não é a questão financeira. Se você falar de grande tiragem, é uma coisa. Isso não depende do dinheiro do escritor. A questão é institucional, estou me referindo ao circuito fechado literário.

Olga: A questão também está relacionada às instituições. A Academia Mato-grossense de Letras, por exemplo. Foi o que constituiu o cânone literário mato-grossense: é inegável que nela houve uma intrincada relação de poder.

Mário: Sabemos que não basta ser apenas um grande escritor. Depende muito das instituições que estão por detrás do escritor, a editora, o crítico, o público. Dom Aquino ditou a cartilha, por exemplo. Todos falavam por ali, por aquele canal instituído por ele.

Mahon: Houve modernismo em Mato Grosso?

Olga: Pergunta capciosa. Difícil!

Mário: Eu diria que sim e não. Vai depender do prisma pelo qual se olhar. Uma coisa que acho importantíssima (e que apazigua o conflito) é a geração de passagem ou de transição, onde está o Rubens de Mendonça, Gervásio Leite, o próprio Mesquita (mais maduro); eles fazem um procedimento de conexão, de transição quando, na verdade, não há mais o modernismo. É um modernismo retocado. A ruptura é relativa.

Olga: Mas nem em 22 foi uma ruptura.

Mahon: E por outro lado? O que trouxe essa citada transição?

Mário: Trouxe a modificação efetiva da literatura mato-grossense, sem dúvida. Sem Wlademir e Silva Freire, por exemplo, não sei como seria a literatura produzida em Mato Grosso. Mesmo que não tenhamos muita clareza disso, o impacto das imagens deles é ainda enorme.

Olga: O Silva Freire não perdeu o apadrinhamento, embora tenha circulado noutros meios. Ele não abandonou a tradição.

Mahon: Não vejo relação entre a contemporaneidade com Silva Freire, por exemplo. Acho que há dezenas e dezenas de escritores com menos de 40 anos que nunca leram Silva Freire e, portanto, não sentem qualquer influência. Acho que essa corrida onde se passa a baliza não é tão contínua assim.

Mário: Na contemporaneidade, não há projeto coletivo. No caso dos dois – Wlademir e Silva Freire – havia. Eles combinaram desde os 14 anos. É o que Wlademir me disse lá na casa dele no Rio de Janeiro. O que eles queriam mudar? O cuiabano. Eles queriam o “cuiabano moderno”. Tanto que grande conflito do Silva Freire é o conflito com o progresso, com o impacto que o progresso traria para Cuiabá.

Olga: Não é essa perspectiva saudosista que eu percebo.

Mário: Não, nem é esse (o saudosismo) o projeto deles. O futuro é irrefreável, eles sabiam disso. Não acho que eles sejam saudosistas. O lance do Freire é o telúrico. Não uma saudade do passado e sim a ligação mais primitiva com a terra, com o rizoma indígena. Ele quer o desenvolvimento da cidade, mas sem perder o assentamento da terra. Silva Freire tem a fidelidade de Bachelard. Procura sempre reencontrar a casa e o pertencimento.

Mahon: Nesse contexto, ao falar de saudosismo e de tradição em forma de ficção, recordo do Muxirum que era um movimento em que a icnografia ribeirinha foi reavaliada e se incorporou no imaginário cuiabano.

Mário: Na verdade, entramos em padrões culturais hegemônicos. No nosso caso, é o padrão europeu. O que nos personaliza? O que pode nos personalizar? Exatamente os substratos das camadas populares, de heranças indígenas, negras. Inventa-se o povo. A tradição é uma invenção absoluta. O grupo Muxirum tinha um propósito muito definido que era recuperar determinados valores. A hegemonia cultural é a tentativa de definição. Por isso que eu tenho verdadeiro pânico de resgate cultural. Resgate cultural é uma falsidade. A cultura não é uma coisa, não é um objeto, não é um fóssil para ser resgatado. A cultura é uma permanente invenção.

Olga: Será que é possível que tenham lido mal Silva Freire?

Mário: Silva Freire é um dos poetas mais reconhecidos que produziu em Mato Grosso e, ao mesmo tempo, um dos poetas menos lidos em Mato Grosso. Esse é um problema. O segundo problema é que se olha as coisas na sua própria perspectiva. Ele tinha uma pegada regionalista, mas tinha clareza disso. Mas trabalhou no limiar do conflito: entre “isso” e “muito mais do que isso”. Não tenho ideia do que ele pensava sobre a Academia de Letras. Mas, sem dúvida é um espaço de legitimação. Para o projeto político que ele tinha, a Academia era importante. Esse era um projeto, aliás, da velha guarda com a nova guarda cuiabana. A poesia dele não era apenas regionalista, era muito mais. A poesia dele era, também, um projeto político e ideológico, muito marcado.

Mahon: No que era diferente a esculhambação do Liu Arruda, ao criar tipos para fazer uma crítica à tradição com a ironia do Silva Freire?

Mário: O humor sempre é cruel. Conheci o Liu, acho um homem talentoso, uma cabeça talentosa, mas com um comportamento equivocado. Cria tipos como se todo o cuiabano fosse daquele jeito. O lado demolidor da ideia crítica pode ter sido mal lido, ou mal sugerido. Na verdade, porém, ele virou um estereótipo. Um clichê. Se havia a intenção de demolição, faltou ironia.

Olga: Ficou no deboche.

Mahon: Não concordo. Absolutamente. O que Liu Arruda fez, na primeira fase, foi replicar “o tipo” para desconstruí-lo por meio da irreverência. Ele afrontava não só o canônico, como também o político. Era preciso ter uma coragem enorme.

Mário: Faltou explicitar essa ironia. Do meu ponto de vista, virou um riso discriminador. Um riso que se ri de um tipo para não rir de outro tipo. No Silva Freire há uma coerência muito grande na maneira como pensa e escreve. Ele fala de uma civilização cuiabana, por exemplo.

Mahon: Já que Silva Freire seria, de alguma forma, um herdeiro da tradição, quando é que se rompe essa corrida, esse revezamento literário onde um passa uma baliza para o sucessor?

Mário: A partir dos anos 2000. Não podemos esquecer, porém, do grupo dos anos 90. Os quadrinistas da Vôte – Wander, Ivens, Gabriel, Aclyse. Coloco essa turma como herdeira disso tudo, dialogando com a velha guarda. Inclusive recuperando o Antonio Sodré junto com o José de Mesquita numa mesma revista. O Wander foi um congregador, nesse período. Pós-2000, quando a Vôte desaparece e também com o desaparecimento da Estação-Leitura, há um rompimento.

Mahon: E agora? Como é que ficamos?

Mário: Houve uma mudança na perspectiva daquele projeto inicial. Não está mais no campo da produção literária. Está agora no pensamento da crítica literária. Nós é que estamos nos juntando e formando o projeto literário. Temos hoje um grupo muito poderoso, muito forte de especialistas, pensando na literatura de Mato Grosso, tanto a canônica, quanto a literatura que está sendo produzida no miúdo. Nós nos pensamos enquanto um grupo. Temos uma ação coletiva num mesmo sentido. Não há como definir um resultado, por não impormos um vetor único. O que queremos é um conjunto de coisas, de temas, de pesquisas com diálogo constante.

Olga: Mas eu entendi o que o Mahon perguntou. Com que objetivo se faz isso? Para mim o objetivo é reconhecer, é tornar conhecido.

Mário: O Lobivar de Mattos é um bom exemplo do que fazemos. As revistas Sarã, Pindorama, outras tantas, são exemplos do nosso trabalho. Pouca diferença faz se a literatura tenha ou não um projeto. Porque a literatura produzida em Mato Grosso é importante. O fato de estar sendo produzida aqui significa sim alguma coisa, uma cosmovisão a partir de Cuiabá.

Mahon: E os escritores que não sofreram esses atravessamentos? Há escritores que nunca abriram um livro dos cânones...

Mário: Isso nos leva a algumas questões: escritores que não são leitores. Podem não ler escritores daqui ou não ler nada.

Mahon: Aí é uma merda, ora. Estou me referindo a escritores – e há vários – que não rezam na cartilha do que se produziu até então. Tem gente lendo literatura alemã. Mas Voltando à questão: essa linha regional acabou?

Mário: Acho que não. O regional sempre é muito poderoso. É preciso uma mudança de paradigma mais penetrante, mais verticalizada, para que isso realmente se rompa. Em busca de pertencimento, todo ser humano vai. Esse movimento de “territorialização” vai acontecer inevitavelmente, de outras formas. Acho que isso não sumiu, pode ter se diluído na literatura, é verdade. Os novos acadêmicos da AML já demonstram isso – uma nova perspectiva. Lucinda e Luciene, por exemplo.

Olga: Ainda é prematuro falar sobre a nova geração. É necessário tempo para amadurecer. Eles, os escritores, são ainda muito novos, muito jovens. Para uma análise mais profunda é preciso que publiquem mais.

Mahon: O quão nacional é a nossa literatura?

Mário: Nacional, nesse sentido, é sempre forjado. É a garantia de uma hegemonia. As nações surgem com base nessa ideia de unidade. Mas isso é trabalhado, vendido, imposto. No fundo, o “nacional” é uma quimera. Uma ilusão. Mas precisa ser introjetado para que tenha efeito. O fechado é a asfixia, o aberto é a vida. Toda e qualquer literatura produzida aqui é nacional sim. Podemos ter obras regionalistas de enorme qualidade. O grande problema – aí é que entra a recepção – é que a maioria das obras regionalistas foram/são panfletos. O discurso do local assume todo o poder e se legitima por si mesmo, em detrimento do artístico, do estético.

Olga: Quem sabe foi o que aconteceu com o Liu. O estético perdeu, em lugar do comercial. O deboche com relação ao popular é que serviu de riso. Inicialmente, chamou atenção, mas acabou enjoando pela fragilidade estética.

Mahon: Será que não será a nacionalização o novo projeto literário de Mato Grosso?

Mário: Mas isso sempre foi. Na verdade, você sempre se coloca em frente ao outro. O que aconteceu foi a definição de um padrão – se diferenciar para se tornar hegemônico nacionalmente.

Mahon: Você acha? Não concordo. O projeto ou os projetos até então em curso nunca se dedicaram a nacionalizar a produção local. No máximo, firmar um imaginário mato-grossense, romancear o passado, nisso concordamos. Mas nunca tentou seriamente furar a bolha e ser nacional. Tanto que, na Academia Brasileira, apenas Aquino foi admitido pela literatura. Quase nenhum escritor daqui sequer se candidatou.

Mário: Na verdade, a ideia é essa, reafirmo – de conquista nacional. A literatura quer se diferenciar para se destacar e buscar a hegemonia. Por isso, lancei a ideia de “literatura brasileira produzida em Mato Grosso”. Ou seja, um duplo sentido: o regional e o nacional numa mesma frase. Mas penso que, no futuro, invariavelmente haverá, com certeza, expressões brasileiras de literatura brasileira em Mato Grosso.