Em nossas andanças por Campo Grande, entrevistamos o casal de intelectuais Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa, ambos historiadores. Ele, membro da Academia Sul-Mato-grossense de Letras e ela, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul.

 

Mahon: O nosso ex-governador foi preso por corrupção. Os casos de roubo ainda estão presentes. O ex-governador de vocês também foi preso. Em que medida essa realidade tem relação com o banditismo estudado por você, Valmir?

Valmir: A raiz do problema é o patrimonialismo e, dentro do patrimonialismo, há a apropriação do poder público. As famílias de origens antigas perpetuaram com essa apropriação, nomeando filhos e netos para cargos estratégicos. Hoje em dia é que está se combatendo – ainda timidamente – a corrupção sistêmica que é, de certa forma, combater velhos hábitos. Tenho acompanhado o desastre da Copa do Mundo em Cuiabá, com a destruição do patrimônio histórico, sacrificando o povo que paga imposto.

Mahon: A questão das nomeações era essencial para a manutenção do sistema...

Valmir: É a conciliação de forças. As elites antigas ainda têm o controle do poder, ainda que seja simbólico.

Lúcia: Tanto que é possível observar que os descendentes dessas famílias ainda estão em posições de controle: tribunais, repartições etc. Dá pra perceber que existe essa ligação. Na minha opinião, no entanto, o vínculo enfraqueceu. Mas quando se corta uma árvore frondosa sobra a raiz e dela pode brotar uma nova forma de patrimonialismo. O poder que se transferiu para grandes empresários representa uma desarticulação da velha oligarquia, o poder tradicional, das velhas oligarquias, está presente em Mato Grosso, mas é decadente.

Mahon: Mas há o cruzamento do velho com o novo, com o empresariado...

Lucia: Eu penso que o poder econômico aceita porque se legitima politicamente. Portanto, é preciso unir a velha tradição aos novos conglomerados econômicos.

Valmir: A denominada “cuiabania” é uma forma de gestão da política pública que se irradia a partir da capital para todo o entorno, é a vinculação histórica e geográfica, o compromisso político com Cuiabá, mesmo com pessoas que não fazem parte diretamente desse núcleo.

Lúcia: Eu diria que a “cuiabania” é uma noção de pertencimento dos cuiabanos de “chapa e cruz”, é um pertencimento, no sentido de posse, de poder simbólico. O poder simbólico tem força.

Valmir: Agora eu que te pergunto, Mahon. Nesse rolo todo em Mato Grosso, alguém de família tradicional foi preso?

Mahon: Foi sim, uma ou duas famílias sofreram essa vergonha. Mas quero insistir no ponto. Com advento dos 300 anos, essa tradição não renova sua força?

Lúcia: Pode fortalecer a questão cultural, isso sim. A Copa foi uma chaga aberta. A cuiabania pode promover um resgate cultural da cidade, em favor do patrimônio urbano. O patrimônio está regelado, caindo. Se empregassem 10% do que usaram na Copa para a cultura, o cidadão poderia conhecer muito mais sua identidade tão pitoresca. Essa reativação do pertencimento é fundamental.

Valmir: Mas, com a migração em massa, perdeu-se a noção de conservação

Mahon: O casarão que cai não é mais a “casa do meu avô”. Seria isso?

Valmir: Exatamente isso. O casarão não tem a menor importância para os empresários que chegam. A ligação comunitária tende a ser destruída. Os cuiabanos não tiveram sensibilidade para perceber essa movimentação, nem econômica, nem política.

Mahon: Nesse rincão de bandidos do século XIX e XX, o que é moderno?

Valmir: A migração de gente de fora, a presença do Estado, uma administração nova e capitalista que rompesse com os elos da aristocracia colonial.

Lúcia: Tenho uma imagem na minha cabeça que é a substituição do carro-de-boi pelo fordinho. É um salto tecnológico impressionante. Mas o que chegou com o carro? Vem o capital estrangeiro. Fizeram em MT o que sofreu a África, por exemplo, uma terra sem qualquer fronteira sólida. Grupos ingleses, franceses, belgas chegaram impactando a região. A pecuária era extremamente primitiva, assim como a plantação. Eles revolucionaram o modo de produção.

Valmir: Para Cuiabá, especificamente, o símbolo da modernidade foi a destruição da catedral e a construção de um monstrengo no lugar, o maior absurdo que se possa conceber. Ali houve um rompimento figurativo e simbólico com o passado. Foi uma judiação irreparável. Ainda assim, a tradição resistiu. Na década de 70 ainda se falava muito de cuiabania.

Lúcia: Me lembro do Carlos Rosa levantando essa bandeira.

Mahon: E mulher? Fez alguma diferença no processo histórico?

Lúcia: Nos bastidores, sim. Foram valentes. Temos alguns casos de protagonismo de mulheres. Não sou adepta da pesquisa por gênero. Mesmo na contemporaneidade, não suporto o estudo em migalhas. Há uma tendência histórica, uma linha de pesquisa francesa, na qual se investiga o comum, o micro, mas se perde a noção de todo. A mulher foi um complemento extremamente importante, mas não deixou de ser uma figurante. Minoria absoluta, vivendo em fazendas, num isolamento absurdo, enfrentando maridos autoritários e onças, ao mesmo tempo.

Valmir: Em Mato Grosso, havia a Sarita Baracat que me impressionava muito. Ela confrontava-se com aquele mundo masculinizado. Fiquei muito impressionado.

Mahon: Houve uma “Maria Moura” em Mato Grosso?

Lúcia: Em Corumbá, podemos citar a a Baronesa de Vila Maria. Ela era uma mulher muito culta, casou-se com um sujeito extremamente violento, pai de um dos fundadores da Nhecolândia. Ela era filha do capitão da Fazenda Jacobina e exerceu o mando, a liderança num determinado momento histórico.

Mahon: A sua colocação sobre sectarismo metodológico me chamou atenção. Você está na contramão dos estudos contemporâneos, percebe? Querem estudar o que se vê no microscópio, um cacoete da CAPS e das universidades, quem sabe. Nesse sentido, concordo contigo.

Lúcia: Eu acho que essa história em migalhas torna muito difícil juntá-las para olhar o todo. Na minha época, tínhamos uma orientação marxista: ver o conjunto, o sistema em funcionamento. O melhor instrumento/método para compreender a história é o marxismo – tentar visualizar o funcionamento da sociedade como um todo. E saber que existe uma possibilidade de identificar um sistema que age por detrás d as coisas. Por que a mulher está sendo supervalorizada? Porque foi integrada na sociedade de consumo. A mulher passa a ser adulada porque se integrou no mercado e é preciso ressignificar a história dela. O índio está do jeito que está, abandonado, porque não significa nada para a sociedade capitalista.

Mahon: Particularmente, acho o método de investigação marxista profundamente paranoico. Primeiro porque acredita francamente que todos os movimentos sociais são originados por interesses econômicos (e nós sabemos que não são), depois por saber, de antemão numa pesquisa, a que conclusões chegar.

Lúcia: Você pode estar certo, se olhar para sociedades pré-capitalistas. As relações capitalistas modificam as relações sociais. É possível ter algum caso de resistência, mas é uma exceção, é uma reação de povos que foram dominados. No caso da Guerra do Paraguai, por exemplo, a grande invasão em Mato Grosso foi posterior a Solano Lopes. Eles invadiram culturalmente o sul e mesclaram sua forma de vida com a nossa.

Valmir: Vou usar o exemplo de Cuiabá para analisar a questão. A cidade foi formatada de forma isolada. Era um enclave na região que se formou uma sociedade conservadora. De 70 em diante, a tradição começou a ser rompida. O capitalismo era a modernidade. Eu entendo esse movimento pela ótima marxista. É possível transformar a sociedade com o controle do capital. Uma reação, uma resposta da sociedade pré-capitalista foi dada pela cuiabania, uma forma conservadora para a manutenção histórica.

Mahon: Penso que o marxismo tem, dentro de si, um determinismo míope.

Lúcia: A pretensão não é explicar tudo. Mas identificar um sentido na história. A história do quotidiano, por exemplo, não busca um sentido: trabalha com a fragmentação, valorizando um determinado segmento. Claro que é importante, por exemplo, estudar a África – é um sinal do que está acontecendo com a América Latina. O que não pode acontecer é ver um fenômeno isolado, estudar a História da África sem qualquer relação com o restante do mundo. O que aconteceu com os historiadores foi a apropriação de métodos de arqueologia que se apega a decupagens. Vê-se a árvore, mas não a floresta. Pior: estuda-se a folha, mas não se enxerga o galho. A gente que fazia história regional levava muita pancada na USP. Hoje o que predomina é a história social, inclusive na captação de alunos e bolsas, produzindo muito mais do que história econômica, um equívoco do meu ponto de vista.

Mahon: O que significou a separação de Mato Grosso?

Lúcia: Foi um ato de total arbitrariedade do governo ditatorial.

Mahon: Não posso acreditar nisso. Estudando, é possível perceber movimentos sulistas que datam do século XIX, estampado em jornais, nas eleições, uma tensão constante na Assembleia, por exemplo.

Lúcia: Mas não acontecia nada a ponto de haver uma cisão definitiva.

Valmir: O rompimento não foi histórico, foi questão de interesse geopolítico do governo Geisel. Estamos escrevendo um livro a tratar essa discussão. O tema não é divisão e sim “criação” do Estado de Mato Grosso do Sul.

Mahon: E a questão da identidade? Como é que fica?

Valmir: Qual era o grande problema do sul? Não ter o controle dos cargos e o financiamento do Estado que ficava com Cuiabá. Os impostos eram concentrados no Norte.

Lúcia: Há relatórios dando conta que a arrecadação era muito maior no sul do que no norte, mas a redistribuição/aplicação era em prol do norte. No sul, não havia a oligarquia do norte, cujos interesses eram comuns e defendidos de forma sistemática. O que havia era uma luta, uma disputa interna. Não houve um acordo entre os coronéis do sul, por exemplo, para os primeiros anos do Estado de Mato Grosso do Sul. Inicialmente, assumiu Harry Amorim Costa que foi derrubado por falta de sustentação política local.

Valmir: As famílias sulistas, desacostumadas com o poder, digladiavam-se para assumir os postos estratégicos. Os grupos Pedrossian, Fragelli, Barbosa Martins, Rachid Saldanha, Rubem Figueiró não se uniam. A confusão foi tão grande que o Geisel impôs um tecnocrata para o governo.

Mahon: Volto ao ponto. A constituição de um Estado, até mesmo a criação de uma cidade pressupõe identidade...

Lúcia: Aqui no sul, as cidades foram criadas como meros entrepostos, como pontos de interesse para fazendeiros. Os grupos formaram um arquipélago: japoneses, árabes, nortistas, sulistas. Isso demonstra muito bem como foi o poder político em Mato Grosso do Sul. Até hoje, está tudo em movimento, o convívio do velho com o novo, o coronel com a empresa, o carro de boi com o fordinho, isso tudo por causa da fronteira. Uma terra de ninguém, uma grande mistura, um grande vazio habitacional e cultural.

Mahon: E Corumbá nesse contexto?

Valmir: Corumbá tem identidade própria por meio de uma história, completamente diferente da formação ocasional de cidades do sul.

Lúcia: Há uma vinculação com Cáceres, Cuiabá, Livramento. De manhã, escutava-se o roc-roc do pau de guaraná sendo ralado. Como Corumbá parou no tempo, conservou essa tradição. Mas, antes, era extremamente aberta ao novo. Por isso, estudar Cuiabá e Corumbá é uma forma de ser universal, porque são cidades cosmopolitas e não regionalistas como as outras de Mato Grosso do Sul.

Mahon: Nós sabemos que, para criar identidade, comumente romantiza-se a própria História para criar personagens paradigmáticos. Como é que isso fica em MS?

Lúcia: As comemorações da separação são tímidas. Talvez porque não houve protagonismo individual, não houve um herói. Na verdade, não tínhamos força política. Foi tudo uma questão de arranjos sem qualquer planejamento.

Valmir: Por aqui, não há uma reinvenção do passado. A Assembleia Legislativa teve um papel preponderante para a construção da máquina de Mato Grosso do Sul, ao indicar nomes para o aparelho estatal. Mas foi tudo muito amador. No dia da instalação do Estado, por exemplo, o Presidente do novo Tribunal de Justiça foi esquecido no hotel. O Estado de Mato Grosso do Sul não teve certidão de nascimento! Não teve sequer ata da cerimônia. Quando ele chegou à porta do evento, foi barrado pela polícia. Quando finalmente conseguiu entrar, foi colocado num canto, esquecido. A cerimônia já havia acontecido.

Mahon: Na proximidade da separação, muita gente se gabava que o MS iria dar certo e o MT iria falir. Por que não deu certo? O plano falhou?

Valmir: Mesmo com a montanha de dinheiro que aportou aqui os recursos pulverizaram-se por causa da desunião política interna. Na divisão, o governo federal trouxe uma tecnocracia completamente diferente do que era a política regional. O dinheiro que veio foi desperdiçado em cargos e famílias que se digladiavam. Foi uma grande oportunidade perdida.

Lúcia: A Nhecolândia foi um exemplo. A partir dos anos 90, os grupos de fora começavam a comprar terras. Um desses grupos comprou o núcleo da Fazenda Firme e fecharam as cercas e as servidões de passagem. Os outros fazendeiros não tinham acesso às próprias terras e, portanto, quebraram. Houve também uma migração para a região do Paiaguás e, com a enchente, perderam-se grandes patrimônios.

Mahon: Então, pode-se dizer que Mato Grosso do Sul foi resultado de um grande amadorismo.

Lúcia: Eu diria que Mato Grosso do Sul foi um equívoco político.

Mahon: E o ensino de história? Estuda-se a partir de 77? (risos)

Lúcia: Não tenho informações sobre como se está ensinando História de Mato Grosso. O nível de formação docente é muito ruim, fico surpresa com a falta de conhecimento dos professores e alunos. Temos uma geração sem vínculo com nada, nem com a História do Brasil ou mesmo do mundo. Fomos pioneiros na escrita histórica com metodologia científica.

Valmir: Já se tentou escrever uma “nova história” a partir da criação do Estado. Eu e a Lúcia pensamos diferente. Discordamos frontalmente. Não se separa a história por decreto. Para se entender Mato Grosso do Sul é preciso estudar Mato Grosso.