Em qualquer inventário, sobretudo o literário, importa tanto saber o que está arrolado, quanto o que está esquecido. É que o que o autor não diz pode ser mais importante do que a própria escrita. Esse tipo de arrolamento é prazeroso em autores que escondem propositalmente a intenção, ou ainda, escondem-se nas palavras. Talvez tenhamos aí um bom termômetro para mensurar a densidade de uma obra e, por isso, quero destacar a poeta Divanize Carbonieri que pipocou pronta para o consumo nacional, temperada com sal e pimenta, nas duas obras publicadas recentemente pela Editora Carlini e Caniato – Entraves e Grande Depósito de Bugigangas.

 

Os títulos são complementares, não coincidentemente. Há uma estrutura que sustenta a lógica autoral – não existe um depósito de bugigangas que não sejam, de certa forma, entraves. O entrave é o que atrapalha, impede, obstrui. Pode ou não ser uma bugiganga. Sendo ou não, o que importa é que Divanize quer cantar o excesso acumulado, colocando o subjetivo e o objetivo no mesmo patamar de quinquilharias. Ocorre que, em meio a tanta coisa inútil que incomoda e está confusamente superposta, a autora esconde uma ausência – e é aí que a poesia torna-se maior. Pergunto: como a poeta faz caber em si tanta coisa?

Divanize começa o poema Inventário (em algum momento, em meio à montanha de itens poéticos, a mania de listagem iria surgir) referindo-se à desimportâncias tão caras a Manoel de Barros: “um inventário de/ pequenas coisas/ cachos de açucenas/frascos de alfazemas/ caixas de brinquedos/ bonecas e bodoques”... e termina por negar-se à faxina: “poucos são os badulaques/ realmente necessários/ mas dispensá-los/ é uma sabotagem/ para o espírito/ inventariante e/ catalogador”. O discurso da eficiência é descartado pela poeta. Ela é uma acumuladora de memórias, de sentimentos, de impressões. Romântica? É muito provável. No ato acumulativo, a sobrevalorização do passado, a conservação próxima dos antigos significados, a resistência por desembaraçar-se de velhos hábitos são práticas comuns.

Na rica linguagem de Entraves, Divanize enumera toda a sorte de “embaraços”: flores pisadas, homens de terno, animais vagabundos, guarda-roupas e mesmo paquidermes de toda a sorte. Chama particular atenção como a poeta enxerga o corpo obeso do paquiderme, ele mesmo mais um entrave entre tantos outros. A composição Paquiderme é repleta de duplos sentidos, enriquecida por um vocabulário denotativo: “a pele do paquiderme/ padece na secura do deserto/ ranhuras prenhes de pó/ sulcos desenhados como/ quadrados na epiderme/ enquanto pasce ressequidos/ ramos sem se impacientar/ em súbita e sibilante sequência/ na sediciosa intempérie/ uma tempestade de areia/ delineia-se diante dele/ sente o impulso de desertar/ mas empaca apalermado/ tomado de paralisia suicida/ permanece parado e quieto/ em pouco tempo se alquebra/ enterrado no granito cristalino/ sucumbe na grande estrutura/ arquitetônica de seu corpo/ uma catedral de carne rota”.

É comum observar a relação entre as contradições do vazio e cheio – tudo se transforma: a pele em piso, o osso em ogivas e o corpo, em igreja. O jogo travoso entre a proximidade vernacular – epiderme, paquiderme, apalermado, intempérie – causa admiração pela erudição da autora. O binômico deserto/desertar também soma qualidade estética ao entrave vocabular e estético de Divanize Carbonieri. Nesse mesmo sentido, a pele é um tema recorrente. No poema Entraves, por exemplo, “um talho rasgado em plena epiderme/ não é qualquer falha de caráter que torna/ arrastado o existir por entre trastes/ é o completo sequestro da sanidade/ que arruína para sempre toda a chance/ de se desentulhar os últimos entraves” e, também em Riscos: a pele não é mais pintada nem riscada/ sua aspereza não se dá pelo sulcos/ arranhados por poucos espinhos e ossos”. Por fim, cito um trecho de Mestiça: “cicatriz herdada/ bordada na epiderme/ o verme que devora/ rememora o ancestral/ espectral ascendente/ resplandecente rama/ da trama antiga”. Finalmente, pinço do poema Lacuna: “a tez do tecido igual ao tema urdido/ da derme rota dessa menina morta”. Percebe-se a obsessão com a comparação entre pele e morte.

Chamo atenção para o “jogo travoso” de Divanize porque quase todas as composições são hostis à primeira leitura. É como os “tigres tristes atravessando o trem das três” ou “o rato roendo a roupa do rei de Roma”. Os entraves começam na linguagem truncada, abusando de proparoxítonas: súbito, decúbito, espírito, moléstia etc. Vai truncando, truncando até chegarmos no violento poema Úvula: “ululando/ a úvula/ uma válvula/ volátil/ da voz/ lamentosa/ o látego/ do grito/ regurgitado/ gira e atinge/ três/ tons/ timbres/ brados/ brutos urros/ roucos/ rosnados/ o couro/ cru da/ dor”. E também no poema Gatas do qual seleciono um trecho: “tigradas/ tricolores/ chitadas/ ciciando/ no colo preguiçosas/ esticando/ as garras/ estreitando/ as presas/ sorrateiras/ no assoalho das casas/ cascalho/ areia/ saltando nos galhos/ das goiabeiras”. Ainda: “mulher é a trava/ ataviada/ travestida/ avestruz/ atroz”.

Toda essa riqueza de entraves poéticos, estorvos fonéticos, de inutilidades subjetivas, esse entulho cuidadosamente inventariado por Divanize Carbonieri (vide o poema Utensílios), quer esconder uma falta – a falta do amor. O que sobra inevitavelmente sublinha o que falta. No Grande Depósito de Bugigangas, é possível rever os gatos, os utensílios, as roupas, as fotos, um conjunto sufocante. Mas, entrelinhas, a poeta acaba por se confessar: “muito eu amei/ como se animada/ por uma mania”, do poema Melodia. Ou ainda: “cumpre-se o fado/ admirável sina/ de dardejar/ o alvo que se quer/ sobejamente amar”. No poema Empório, a poeta arrola “desse grande depósito de bugigangas/ilusões empoeiradas à escolha/ de todos os catadores de destroços/ que emprestam seus esforços/ para a recolha dos cacos de sonhos”. Tantos trastes colecionados podem ser decepções que se colecionam em cartas extraviadas, em fotos amarelecidas, em pequenas lembranças opacas.

Já no final do segundo livro, Divanize entrega-se completamente: “um formidável espécime/ pusilânime caráter/ energúmeno exemplar/ imprestável indivíduo/ um infame mequetrefe/ matusquela infantil/ um cafajeste sem par/ errante meliante/ um patife de marca maior/ um amante/ amado cada vez mais e melhor”. Importante sublinhar o “matusquela infantil” e contrapor essa expressão de desejo/rejeição com o poema Corpo: “corpo é empecilho/ um castigo/ no meio uma chaga/ encharcada/ uma parelha errada/ para o macho/ menor na estatura/ piorada por todo o lado/ pelo corpo se mensura/ a capacidade/ dimensiona-se o préstimo/ e a utilidade/ com o corpo/ faço um pacto/ de ser amotinada/ desengonçada/ desgraçada/ escapando ao corpo/ posso ser de verdade”.

Na poesia de Divanize Carbonieri há muitos empecilhos contemporâneos. O corpo é o maior deles, sem nenhuma dúvida. Sua relação com outros corpos, com o espaço exíguo, com a vida e com a morte, faz do corpo o protagonista (talvez antagonista) da pós-modernidade, onde se pode riscar, traçar, tatuar, compor, recompor, fustigar, identificar. É provável que a própria Divanize inclua-se nesse grande depósito de bugigangas, no mais das vezes como um entrave, ela que incorpora o espaço de acumulação e preenche esse enorme vazio que há em todo grande poeta.

Eduardo Mahon é escritor e estudioso de literatura.