Na resenha anterior, pretendi mostrar como a terra influencia a literatura em seus diversos momentos históricos, mais especificamente fenômenos ligados à Cuiabá e suas transições no tempo e espaço. Tracei um paralelo entre o cânone “aquiniano” que pretendia idealizar a imagem mato-grossense e cuiabana como uma espécie de Éden, cruzando-se raças fortes e corajosas, com a poesia da geração seguinte que se viu aturdida com o crescimento da cidade.

 

No excelente ensaio A Cruz encobre a Espada, o escritor e estudioso Luiz Renato de Souza Pinto deixa anotado: “A construção de elogios, opúsculos, narrativas encomiásticas e qualquer texto de caráter laudatório a ‘grandes’ homens do período colonial e imperial brasileiro era apenas parte da tarefa a que se dispuseram cronistas como Varnhagen, Capistrano de Abreu, também serve de espelho para José de Mesquita, oferecendo outra visão para a historiografia nacional”. A conclusão de seu artigo retrata a força institucionalizadora do grupo literário da época: “José de Mesquita escreve para registrar uma visão canônica da história. A sua verdade legitima a ocupação do espaço do saber pelos que dominam o conhecimento. Seu cânone gira em torno de uma profusão de ideias capazes de reproduzir forças políticas nos embates. O lugar social de Mesquita é a representação institucional de uma suposta verdade, construto que procura não colocar o preto no branco, no sentido conotativo, e sim tapar os pontos escuros com a pátina do silêncio, já que, como diria Ferro (1985, p.37): esses silêncios sobre as origens, assim como todos os silêncios ligados à legitimidade, são garantidos pela própria força das instituições”.

O cânone sobreviveu ao/no tempo, porém. Parece-me que a produção mato-grossense era filtrada, recebida e reconhecida, desde que não se afastasse muito do padrão estabelecido inicialmente por Aquino/Mesquita. Outros poetas poderiam muito bem nos servir para retratar a terra pela visão canônica (terra mater) como, por exemplo, Maria de Arruda Muller:

No enredamento feraz, das silvas tropicais/ Cheias de ásperas, terríficas surpresas./ Dormias sob o céu estrelado, no silêncio/ Feito de mil sons da Natureza!.../ Vieram a ti, paulistas desabridos,/ Panache sem par, de homens destemidos/ Homens “de sertão”, impávidos, fogosos/ Mais feitos de aço, que de carne,/  Trazem a esta solidão, imensurável,/ O som da língua portuguesa,/ Misturado ao jargão do curiboca.../ Eles vieram, apresar índios e encontraram/ Tanto ouro, que em vez de ir, aqui ficaram!/ Berço de aborígenes valentes,/ Paiaguás, borôros, guatós, coxiponés/ Rebentos das raças ameríndias/ Que, na imensidade do torrão, viviam/ Há milênios, livres, soberanos.../ Mansos uns, outros agressivos,/ Receberam o invasor, apreensivos./ Coroada e rica, de silva e de flores/ Em ti se mesclam, frondes de gramíneas./ – Os épicos bramidos das torrentes,/ Os tonos do trovão, o grito das araras,/ Tudo convida a ficar, nela permanecer!/ Mas, o chocar de inúbias nas monções de caça/ Assusta e impele a luta, homens de outra raça/ Porque, do áureo metal, eras matriz,/ Metal que, então como hoje, tenta e impele,/ Tendo, no seio virginal a misteriosa flama/ Atraindo homens como chama a mariposa,/ Enfrentam a luta, afrontando a morte!/ Os pés cansados, da intérmina jornada,/ Pele curtida, veste esfarrapada,/ De Itu, Porto Feliz, de Sorocaba,/ Em grandes levas, vadeando rios/ Galgando serras, varando socavões e brenhas/ Transpondo cachoeiras, precipícios,/ Elegeram estes sítios pra morada!/ Moreira Cabral, Sutil, Martins Bonilha/ Contemplai Cuiabá, após “Forquilha”...

Já vimos que a festejada poeta comungava da mesma visão dos “homens destemidos” de Aquino/Mesquita. Veremos agora como observa Cuiabá, mais particularmente:

“Cidade Verde”, de claro céu e ardentias/ luminosas de arrojado pôr-de-sol.../ As tuas águas correntias,/ os teus suaves arrebóis.../ e tuas matas de ametista,/ que fascinam a fantasia de um artista!/ Terra tapisada de flores, broquelada/ de gemas.../ És Ariel, preso ao mundo pelos pés./ Atenta a um forte impulso, para a liberdade/ que a ferrovia te dará, gentil cidade./ “Cidade Verde”! Ao tropel de loucas ilusões/ fatigado: o seio palpitante/ patenteou alfim, o bandeirante,/ a ofuscadora e incrível realidade,/ nas tuas grupiaras e monchões.../ Daí, o núcleo, todo alacridade/ Do “Senhor Bom Jesus de Cuiabá”./ Rainha e primogênita desde a fundação,/ és de Mato Grosso e da Pátria o coração:/ vigias os misteriosos estendais, que balizam os pontos cardeais.../ De norte ao sul, de leste ao oeste,/ riquezas tão faustosas, quais de Ali Babá./ Dos confins da Amazônia ao Apa sorridente,/ o látex corre a flux e a ilex viridente,/ quanto mais se ceifa, mais de adensa em mata agreste./ E os diamantes, o ouro; do Garças ao Galera/ que fizeram a grandeza de vividas eras!/ “Cidade Verde”, és um tesouro!/ Tens ainda o mesmo ouro/ que fez ricos os reinos;/ sob o solo e no caráter dos teus filhos,/ Terra mater,/ ele faísca em mil fulgores./ Amplia a tua história!/ Escalando o céu de tua glória,/ filha de audazes, mãe de heróis!

A relação com a terra se dá noutro eixo quando se trata dos últimos fluxos migratórios. Com relação aos “chegantes”, além de Marli Walker, eu bem poderia apontar Luiz Renato, Marta Cocco e o excepcional Santiago Villela Marques. Deste último, reproduzo “Confidências do Mato-Grossense” que retirei da coletânea “Nossas Vozes, Nosso Chão”, didática que deveria ser mais apoiada pelos poderes públicos. Eis Santiago:

Nesta vida de meus anos/ nunca nasci em Mato Grosso./ Mas que saudade me dá/ de morrer aqui./ O corpo encerrado no oco/ do último tronco de cedro/ antes que o inverso leve/ da praia as folhas de jacarés/ no vento,/ e caia a pena do tuiuiú/ madurada à força./ Além da chuvinha de agosto/ ninguém não vai chorar por mim/ que não tenho fazenda, não /nem sou dono de gado/ nem sujo a mão de soja.// Que eu sou mato-grossense/ e o Mato Grosso é dos outros./ Mas sou tantos couros/ que quando me esfolarem/ a pele de bicho morto/ nem vai doer.

Portanto, além das novas fronteiras, há uma nova percepção de Mato Grosso, como era de se esperar. O poeta denuncia a desigualdade social e confessa o “despertencimento”, percebendo a si mesmo como um mero objeto. Esse sentimento de exclusão não é uma grande surpresa. As análises literárias que cuidam de fluxos migratórios voluntários e compulsórios registram essa reação.

Um olhar menos idílico e mais realista surgiu no final do processo de reestruturação da cidade, ultimado com a queda da antiga catedral. Caía um símbolo. Como a poesia contemporânea se relaciona com essa Cuiabá renovada? Teremos algum vestígio de ressentimento, de resistência ou de luta? Ou as mudanças já estarão integradas na mentalidade do escritor? Qual o cenário que escolhem para a nova literatura produzida na capital?

Para responder à questão, gostaria de apontar Luciene Carvalho. A escritora é comumente estudada pelas múltiplas escrituras femininas em sua obra literária. No entanto, gostaria de analisar especificamente o relacionamento dos autores com a própria terra. No livro Ladra de Flores, ela também tenta escapar da descaracterização da cuiabania, fugindo para o quintal, porto seguro da poeta:

(...)

Vi o tempo que passava/ Na Cuiabá dos meus trajetos/ E a cidade era tão eu.../ O que eram lágrimas/ Fez-se pranto e arritmia/ Não sabia/ Se solidões/ Ou poesia/ Já na Barão, novo dilema/ Como atravessar/ O cinturão dos conhecidos/ Amigas de infância e parentes/ P’ra chegar ao meu quintal?

O quintal atual de Luciene Carvalho, localizado numa das antigas casas do Porto é um recorte da memória da poeta, uma fotografia onde ela vive ou se refugia. A topologia do Porto, aliás, está descolada da capital, talvez porque, desde o início, os habitantes do distante bairro tenham vivido à parte, com sua própria comunidade religiosa, sua escola pública e sua pracinha onde brincavam as crianças. O Porto é, de certa forma, uma oposição à cidade e à tradição, um mundo à parte ou uma outra tradição. A melhor poesia de Luciene Carvalho que representa essa bolha apartada do corpo urbano é “Outros Tempos”, do livro Porto:

Fui andando pelas ruelas/ tão aquelas/ do Porto de Cuiabá// têm história.../ crianças de hoje/ brincam com netos/ de vizinhos de outros tempos// o dono da padaria/ conhece Dona Maria/ sobrinha do seo João/ Jacira que lava a roupa/ em outros tempos foi louca/ de amor por Sebastião/ que hoje toca a padaria/ porque casou com Sofia/ a filha de um alemão./ E, aqui no bairro do Porto/ vizinho é de porta adentro/ é um bairro de outros tempos,/ tem outra arquitetura./ E o que se procura acha:/ é linha, anzol, borracha;/ macumba é na baianinha,/ chá de folha é no Suat// hortaliça, arame, linha/ tem vidraceiro, engraxate/ café moído na feira/ cabelereira, sapato// o que tem de história triste/ muito serviço barato.// tem puta de qualidade/ tem putinha de tostão/ pano de prato/ cultura/ tem pedinte/ tem cafetão/ tem virgem/ tem traficante/ tem carretel, tem barbante/ suor trabalho, mistura// tem Cuiabá neste bairro/ que em Cuiabá não tem/ tem tanta história importante/ que Deus salve o Porto, amém”.

Como se vê, as referências de Luciene Carvalho são completamente diferentes do cânone que tratava da Cuiabá bela e radiante, lugar para bravos e destemidos, terra de heróis que se doavam pela pátria. Para a poeta contemporânea, a tradição desloca-se para outra geografia, muito embora a intimidade típica de cidade pequena esteja sempre presente. No entanto, temos claro uma “Cuiabá do Agora”, representação de cidade que muda e a escritora segue esse fluxo contínuo. Novos cenários são integrados à paisagem.

É no livro Conta Gotas que a escritora evidencia mais agudamente essa “nova cidade”: febril, caótica e sensual – a metrópole que Cuiabá virou. No conto Nervoso, temos a periferia cuiabana sendo escolhida como cenário: (...) lanchonetezinha chinfrim, estreita e comprida, fruto de uma casa cuiabana revisitada. O texto não tem nostalgia, não usa expressões como “demolição”, “esquecimento”, uma melancolia típica na resistência à urbanização. Prossegue a escritora: então falei que ia na sua casa e fui no campinho do CPA IV. O bairro citado é distante do centro de poder cuiabano, deslocado do quadrilátero histórico tradicional e das igrejas respectivas. Dá-se o mesmo no conto Revelação: num domingo, ela havia sido liberada para ir a uma matinê no Clube Náutico, ali no comecinho da Várzea Grande, passando um pouquinho a ponte do Porto. Na ida, tudo certo, a turminha da vizinhança se divertiu pelo caminho e se esbaldou com o som de discoteca que embalava aquele fim de anos 70.

Durante a formação do cânone literário mato-grossense, nas primeiras décadas do século XX, seria vedado o cenário, a forma, e a intencionalidade da escrita de Luciene: os arrabaldes como CPA IV e a vizinha Várzea Grande estavam fora do interesse da capital. Isso para não dizer do enfoque principal do trabalho da escritora que é a revelação da mulher, seus desejos, mistérios, rituais, cobiças. Quero, porém, voltar a me concentrar no relacionamento com a terra. No mesmo Conta Gotas, a periferia é sempre relembrada, uma margem que está integrada com o centro, não cobra e não deve nada à tradição. Eis um trecho do conto Rota:

Ela desceu do ponto de ônibus da Prainha, perto do calçadão ainda meio tonta; passou em frente à joalheria onde haviam comprado as alianças em setembro passado, numa tarde de risos e cumplicidade. As lágrimas sucumbiram às lembranças, desabando pelo seu rosto, enquanto descia a 13 de junho em direção à farmácia Pax. Comprou uma Água de Melissa de um balconista solícito que, vendo seus olhos cheios de lágrimas, perguntou se ela queria mais alguma coisa. Quero, quero sim – ela pensava, enquanto seus lábios murmuravam um obrigada pálido “quero voltar as horas, mudar o caminho das coisas, quero acordar de novo nesse sábado...” ela decidiu ir a pé pra casa após pagar a nota da farmácia. Sua dor precisava de espaço e sua cabeça tinha entrado num rodamoinho de pensamentos sem controle... quero acordar de novo neste sábado e não inventar moda de querer ir à casa de Frederico pra ter uma conversa sobre nós dois – esse negócio de discutir relação é bobagem – ainda que eu saia de casa, que eu não pegue o ônibus do CPA, que eu vá ao Porto visitar Anginha. E mesmo que eu pegue o ônibus, que eu desça na subida do Araés e vá ver Zulma, que eu desça no centro e torre meu cartão. Quero qualquer força que me mude a rota, que me impeça de chegar à casa do meu Fred e usar a chave na porta.

O trato com a cidade é diferente. Já estão incorporadas as mudanças que não são opostas. Explico a provável razão: a escritora Luciene Carvalho nunca partilhou das regalias do “centro”, dos costumes dos abastados, das viagens internacionais. E, se algum dia gozou do fausto das mais tradicionais famílias, o hábito não se incorporou à mulher geograficamente plantada no Porto, uma outra cidade, um outro universo. Em geral, há saudade da perda. Se imaginarmos que a escritora não comunga do sentido convencional de tradição e nem tampouco pretende replicá-la, não há porque a obsessão com um passado naturalmente mutante.

A vida da escritora está vinculada ao quotidiano urbano quando sai do mundo paralelo que é o quintal remanescente. Ela não se lamenta por ter perdido nada porque nada era realmente seu. Da mesa aristocrática, Luciene nunca se fartou. Aquele idílio cuiabano, cantado em verso e prosa, não pertenceu à maioria da população cuiabana. A atenção da escritora está voltada para uma cidade que, até então, era apagada na literatura: a Cuiabá da mulher comum que ganha um salário mínimo, anda de ônibus, espera nas filas de banco e consome comida de rua. Destaco um dos contos de Luciene Carvalho que mais me impressiona:

As lentes dos óculos Jackie O. refletem o cumprimento ‘oi!!!’ e só então seu dia começava de verdade. A calça branca de lycra agarrava com vontade o quadril farto que se demorava na ferragem da roleta, enquanto mãos cegas fingiam procurar o vale-transporte nos escaninhos mais que conhecidos da bolsa curta de camelô. Aquele breve interlúdio matinal vinha dando alma nova à manhã dela; já não se preparava apenas para limpar os corredores intermináveis do Hospital Geral, já não se exasperava com clorofórmios e desinfetantes, já não se incomodava com o escarro do pai que se levantava para continuar o porre interrompido na noite anterior; já não lhe pesava a chegada dos 45 anos. Não! Acordava para ele, se vestia e maquiava para ele; o cobrador da linha 508. Tinha que ser pontual para pegar o ônibus certo e poder realizar aquela cena matinal: unhas pintadas com esmalte vermelho escondiam o contato com os corrosivos e descansavam por um minuto sobre a caixa de dinheiro. O cabelo alisado com chapinha no fim-de-semana exigia que ela se inclinasse em direção à bolsa para mostrar seu balanço, a língua umedecia o lábio roxo de cuiabana antiga e: ‘Oi’!!!

O que se evidencia no texto de Luciene é a empregada doméstica, a secretária, a babá, a frentista, a enfermeira, milhares de mulheres do povo grandemente desaparecidas da primeira geração de escritores mato-grossenses. Esse “apagamento” como tão bem estudado por Marli Walker é simplesmente uma barreira imposta por intelectuais alinhados com o conservadorismo provinciano: não se publica e, se publica, não se comenta. Daí que a poesia divergente desaparece dos compêndios, das antologias, dos estudos universitários, da bibliografia enfim. Luciene Carvalho encontra-se desafiando o “standard” feminino consolidado em Mato Grosso: a mulher do lar, obediente e intelectualmente conformada. Mulheres havia, é certo, mas nenhuma com os quadris metidos na “calça de lycra”, as unhas enfeitadas de “esmalte vermelho” e os “lábios roxos”. Essas mulheres de Luciene Carvalho não estão castradas, para resumir numa frase.

De qualquer forma, essa “nova Cuiabá”, igualmente feminina e sensual, não censurada e livre de pedágios institucionais, vai surgir entre 1980 e 2000, mostrando-se mais mundana do que supunham os autores pudicos, religiosos e patrióticos que forjaram o cânone mato-grossense. Os tempos são outros: é a vez do agora. Luciene Carvalho continua produzindo. Estou à espera de “Dona”, o novo livro. A poeta promete que vai dar BO. Ela sabe o que está fazendo, sabe o quê e quem está provocando. Como dizia Bakhtin no seu Teoria do Romance: “por trás da narração do narrador lemos uma segunda narração: a narração do autor sobre a mesma coisa narrada pelo narrador e, além disso, sobre o próprio narrador. (...) Não perceber esse segundo plano intencional e acentual do autor implica não compreender a obra”. A gente está sacando tudo, Luciene. Vá em frente!

Eduardo Mahon é escritor e estudioso de literatura.