As fotos velhas estão guardadas como que sepultadas em algum álbum roto. Não mexas com elas. Em tudo há uma razão. As fotos amarelecidas estão descerradas no esquecimento por um motivo. Não acredita? Então, vá! Mexa! Verás que elas têm alma, qualquer coisa de sagrado e, por isso, a aflição dos sacrílegos há de acometer-te. No fundo esbranquiçado, o teu bisavô pretende te contar uma verdade decantada pelo tempo: que a vida é dos vivos e não dos que já passaram. No entanto, ele está fraco na foto e na tua memória. Gente desconhecida de chapéus e vestidos longos. Homens de gravata, bigodes cofiados. Isso tudo nada te diz. Vindo de tanto tempo, nenhuma foto emociona quanto a do pai, mais magro e da mãe, com os cabelos enormes. Estes sim, estão lá convivendo com os avós nas primeiras festas do teu aniversário. Vês? Olha o bolo. Não se faz mais bolo assim. Vê que capricho, que zelo. A toalha foi bordada à mão. Tua mãe está com um vestido estranho, com ombros à mostra, enquanto teu pai fuma. O pai tinha gostos jovens, quem diria? O carro conversível, a camisa colada ao corpo, a calça boca de sino. Soa tudo ridículo. Estás vendo? Para que fostes remexer no tempo? Agora aguenta. Na página seguinte, a avó te leva nos ombros, completamente nu. É a mesma que morreria dez anos depois, sem te dar a chance de lembrar do cheiro bom que os avós exalam. Agora vê teu avô meio torno, noutra página. Nunca foi simpático o avô, mas agora parece ainda mais contrariado. Veio de longe, imigrando contra a guerra, contra a fome, contra uma vida regrada e triste. Ei-los, avó e avô, casando. Não parecem felizes. Mas estavam. Os filhos vieram, dentre os quais, a tua mãe ou o teu pai. Que coisa gozada ver o pai ainda menino. Perece que nunca será pai. Mas foi. Cresceu, criou barba e conquistou quem seria a tua mãe. Ela também está aí no álbum de vestidinho de renda, lacinhos na cabeça, uniforme de colegial, mulher pegando sol. Depois, mãe. Simplesmente mãe. Como é público e notório, a mãe é uma instituição. Não tem sexo, não tem idade, não tem boa ou má. Hás de me desculpar o comentário, mas tua mãe era linda. Não entremos em detalhes, mas que era um pedaço, isso era mesmo. Finalmente, chegas no casamento dos teus pais. Aqui, já não há mistério. Algum dia, chegarás chorando, em duas ou três páginas do álbum de fotografias. Núpcias em algum lugar com praia, impossível divisar onde. Fotos sobre cavalos. Parecem outros, pais diferentes quando ainda não eram pais. Poderiam ser teus amigos? É possível, nunca se sabe. Avança para o teu nascimento. Conheces a foto. Um bebê ensanguentado. Depois, no berço de laca branca. No tapete da sala, tentando os primeiros passos, tomando água na casca do ovo para falar o que ainda não falavas, no colo da avó de cabelo azulado, assustado no ombro do pai jovem. Depois, o álbum acaba contigo pronto para a escola. Levas uma cabeça enorme, equilibrada num corpinho miúdo de guri. Nem sabes a marca do carro, o custo da escola, do material que todos os anos se comprava, de tudo o que passou sem a tua menor preocupação. Não avances para tirar da gaveta outro álbum, o mais recente. Já não basta chegares até a tua própria infância? Não esmiuces o passado ainda sem cicatriz. Este te será dolorido. Não terás avós, talvez nem mesmo os pais. Faltarão alguns amigos da família que já se foram, os tios mais velhos, já não há o irmão, dois primos queridos, os cenários passados de uma cidade longe onde tu passavas férias. As fotos estarão, antes de serem vistas, estampadas nas tuas lembranças e, por isso, tua mente dará andamento ao brinde daquele almoço de sábado, o jogo de baralho interrompido para a fotografia. E, sem saberes que armadilhas o tempo te preparava, algum dia estarás lá também, aprisionado naquele instante passado, como parte do passado não vivido do teu filho ou quem sabe um neto que consultará o álbum velho. Naquele momento, em vão tentarás sussurrar: não mexas nas fotos antigas. Deixe-as no esquecimento.