Carnaval é substantivo, mas no Brasil também é verbo e advérbio. Carnavalizamos a nossa vida e achamos muito natural. Essa euforia, essa graça, esse displicente estado de espírito governa o nosso modo de ser. Isso não é mau. É apenas diferente. Alguns povos – sobretudo os europeus, nos invejam. Como são felizes! – espantam-se com a difícil conjunção entre pobreza e alegria. Tudo está liberado, tudo é permitido: “não existe pecado do lado debaixo do Equador”. Se não temos churrasqueira, usamos tijolos; se não temos antenas, usamos palha de aço na televisão; se não temos shampoo, lavamo-nos com sabão de coco. E está tudo certo. Aliás, somos acostumados a, quando perguntados – como vai você? – respondermos automaticamente – tudo ótimo! Portanto, quem não nos conhece direito, acha que o brasileiro vive imerso em felicidade, inclusive o gari carioca que varre sambando a pista imunda do Sambódromo. Sérgio Buarque de Holanda chamava essa característica de “cordialidade” e foi, por anos, mal interpretado. Dizia-se que o brasileiro era afável, pacífico, flexível. Nada disso. O estudioso referia-se ao coração como centro da existência brasileira: agimos por impulso e não por reflexão. Somos um povo cordial, apaixonado, carnavalesco. O problema de carnavalizar a vida é vestir uma fantasia e não saber discernir a realidade em que nos encontramos. Se o trabalho desagrada, há o chope de sexta-feira; se a escola não ajuda, há a semana do saco cheio; se o hospital não funciona, há sempre quem venda remédio sem receita. O importante é ser feliz – repetimos como um mantra. E somos felizes, a despeito de tudo: de um dos piores sistemas educacionais do mundo, de índices inaceitáveis de mortalidade infantil, de violência urbana e no campo. Essa nossa cordialidade torna “chato” todos os assuntos que são essenciais: o gravíssimo preconceito racial e sexista que está instalado como uma bactéria resistente, a desigualdade obscena de renda, as mamatas de uma casta que se formou no serviço público, enfim, um conjunto de temas que não combinam com a nossa fantasia. Evitamos assuntos difíceis: “se eu for pensar muito na vida, morro cedo, amor”. Discutir os nossos próprios problemas é a quarta-feira de cinzas do brasileiro, uma ressaca, uma má disposição. Enquanto não há transporte público decente, as ruas estão lotadas de cordões de animados foliões; enquanto o paciente agoniza na maca, tudo pode esperar o carnaval passar. Temos uma maquete para a realidade: para o patrimônio histórico que despenca na rua, para os museus que ardem no fogo, para o hospital que tem os corredores lotados, para as escolas de lata que assam as crianças, para as estradas sem asfalto que nos matam em acidentes. São os nossos adereços. Sem eles, não é Brasil. Na fantasia permanente do estado de carnavalização brasileira, a política é tratada com humor. Era de se esperar. Somos roubados diariamente, mas incapazes de vaiar o ladrão no restaurante. Isso vai contra a etiqueta da alegria: o importante é ser feliz, cada um na sua, ninguém incomodando ninguém e todo mundo se salvando como pode. Afinal de contas, o sacrifício compensa: uma vida miserável no barracão é redimida por quatro dias gloriosos de carnaval. É tudo de graça: a festa, a rua, lantejoula e serpentina, só não pula quem não quer, só não entra no cordão quem é chato. Aí está a cordialidade nacional: “quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé”. E dá-lhe fantasia, dá-lhe adereço, dá-lhe maquiagem: quanto mais pobre na vida, mais rica é a fantasia. O favelado deve usar cetim e tafetá, muitas penas de pavão e sorrir. Precisamos sorrir. É obrigatório sorrir: “finjo-me alegre pro meu pranto ninguém ver, feliz aquele que sabe sofrer”. A nossa escola de samba pode ser punida se todos nós não cantarmos juntos o mesmo samba-enredo e mostrarmos animação na passarela. O nosso choro, reparem bem no close das câmeras, é sempre um choro de felicidade.
Quem Não Gosta de Samba?
- Escrito por Eduardo Mahon