Nesta semana, Eduardo Mahon conversa com a professora Marta Cocco. Marta é uma escritora premiada, pertence à Unemat, à Academia Mato-grossense de Letras e, recentemente, teve um livro selecionado pelo MEC para aplicação nacional nas escolas públicas brasileiras.

 

Mahon: O que é literatura?

Marta: Já começou difícil, hein?! A literatura é uma forma de arte que expressa as experiências humanas. Nela, há influência de questões históricas, ideológicas, linguísticas. Quando o ser humano escreve, ele já está inserido no universo da escrita. Isso significa que a literatura vai traduzir a vivência dessa pessoa naquele local onde está inserida que, talvez, possa sublimar os aspectos locais para se tornar universal. Num texto literário, há a imaginação e a experiência pessoal e coletiva.

Mahon: Então é arte?

Marta: Com certeza.

Mahon: Vamos então nos conduzir pela sua ótica. Quando Marcel Duchamp coloca o seu famoso urinol numa exposição de arte, a arte sofrerá um abalo conceitual, porque será ressignificada ao arbítrio do próprio artista. Essa provocação deixa muitos críticos sem chão e pode bem ser transplantada para a literatura. O que me diz? Um texto, qualquer texto, um obituário por exemplo, é literatura?

Marta: Eu não partilho dessa ideia. Acho válido o pensamento e, sobretudo, a provocação. Tenho uma preocupação muito grande com a relativização do conceito de literatura. É preciso estabelecer um parâmetro. Não suporto esse caos.

Mahon: É o chamado avanço do multiculturalismo na literatura...

Marta: Fico em êxtase diante do talento nas artes plásticas. Qualquer pessoa comum consegue levar um urinol numa galeria e dizer – isso é arte. A proposta é válida, mas continuo tendo uma admiração pelo artista que consegue se distinguir com talento, organização e que me surpreenda.

Mahon: Vamos continuar fazendo esse paralelo no nosso papo. O que você está dizendo é que, numa obra de arte, é admirável a capacidade do artista fazer o que você não consegue, o que uma pessoa comum é incapaz. Esse estranhamento na arte também pode ser migrado para a literatura, uma vez que esse critério foi o primeiro chute em termos de crítica literária. O texto literário pressupõe um estranhamento de um texto comum, é isso?

Marta: Sim, esse é um conceito formulado pela escola do formalismo russos. Eu gosto de texto bem escrito e bem organizado. O texto comum eventualmente pode ter nuances do literário. O que muda, o que distingue é a finalidade.

Mahon: Mas a finalidade muda com o tempo, com o contexto...

Marta: Mas o texto literário nasce para ser artístico, ele não tem um compromisso pragmático, entende? A literatura não tem uma utilidade prática.

Mahon: Não presta para nada?

Marta: Sim, no sentido de pragmatismo comercial na atual sociedade. O estranhamento é um conceito que também precisa ser relativizado. O texto literário desacomoda, tira o leitor do lugar comum. O impacto de um texto literário é captado de formas diferentes, evidentemente. O que é estranho para mim, pode não ser para você. O grau de legibilidade das pessoas é muito variado.

Mahon: Aí você já derrapou para as teorias de recepção. Vamos retornar. A literatura nasce sem utilidade prática. Mas tenho duas objeções: esse critério muda com o tempo, portanto essa colocação é bem questionável. Além do mais, um texto literário pode ser profundamente útil, aplicada ao segmento pedagógico, por exemplo. O texto pode, eventualmente, ser engajado e utilitário. Isso não é literatura?

Marta: Veja que a essa finalidade não é a mesma da que eu falava. O texto vai interferir na formação do ser humano, provocando um debate relevante. Todo o texto serve como um espelho, ao mesmo tempo serve para ver o outro, se diferenciando. Por isso que defendo tanto a literatura na formação do ser humano, em qualquer tempo, em qualquer classe.

Mahon: Sim, mas a finalidade da literatura fica pro final da nossa entrevista. Estou ainda preocupado com o que a literatura é. Como é que uma crônica futebolística do João da Silva é apenas um texto e uma crônica do Nelson Rodrigues é literatura?

Marta: Há prazo de validade para um texto. Numa crônica comum sobre futebol, se a preocupação é o retrato instantâneo de uma determinada situação, o tempo vai se encarregar de superá-lo. Pode ser que, no futuro, não exista mais o time, as regras, a torcida. Mas quando é o possível ler, apesar do tempo, teremos um texto que sobreviveu, tem perenidade. A literatura tem um prazo de validade maior.

Mahon: O que é mais importante: o estilo ou o conteúdo?

Marta: As duas coisas contam igualmente, dependendo do método de análise que o crítico vá optar. Pessoalmente, prefiro me concentrar no conteúdo do texto. Dou muito valor à organização do texto. Quando ele é bem organizado, a literatura consegue atingir o leitor de modo mais eficiente. O que importa é a provocação do incômodo, de uma reflexão nova. Isso é importantíssimo.

Mahon: O texto literatura que não incomoda é menor?

Marta: Não significa, de forma alguma. O texto sem grandes compromissos pode fazer bem ao leitor. Eu curto mais o texto que obriga o leitor a pensar sobre o ser e estar no mundo.

Mahon: Existe literatura sem leitor?

Marta: Não. Sem leitor, não existe.

Mahon: Até que ponto o leitor completa a obra literária?

Marta: Totalmente.

Mahon: Como totalmente? O livro está lá na estante, escrito pelo autor, publicado pela editora. A obra está realizada, independentemente do leitor. Como é que o leitor completa o autor?

Marta: Vai depender do leitor. O texto tem uma organização que vai permitir ao leitor a atribuição de sentidos. Quando se lê, o cérebro aciona uma série de mecanismos como as relações com outros textos já lidos, suas próprias experiências etc. O leitor vai preencher vazios que o autor deixa.

Mahon: E isso é válido?

Marta: Esse é que é o grande barato da literatura.

Mahon: Existe literatura, apesar do autor? (risos)

Marta: Como assim?

Mahon: Bem, algumas teorias da crítica literária descartam a contextualização autoral. Há métodos que comparam a estrutura entre dois textos, no espaço e no tempo e, fazendo isso, omitem o autor. Os padrões do discurso compõe o centro de atenção. Até que ponto essa metodologia é válida?

Marta: Ah sim, compreendi. Esse modelo crítico já está superado. Houve um texto em que todo o sentido estava no próprio texto. A interpretação era internalizada. Hoje interpreta-se o texto com todo o contexto em volta.

Mahon: É possível encontrar a verdadeira originalidade?

Marta: Não existe originalidade. O ser humano tem uma tendência natural à imitação. Desde sempre. É a mimeses que Aristóteles tanto falava. Há rupturas entre estilos, mas há diálogos. O Octávio Paz tem um texto que gosto muito onde diz que a ruptura quando se repete passa a ser tradição.

Mahon: Volto a perguntar: é possível ler um autor sem o autor? Podemos fazer uma crítica literária sem a referência autoral?

Marta: Há modelos que suprimem o autor. Quando se analisa a obra de um autor contemporâneo, há condição de entrevista-lo. Ao morrer, o autor será lido pelo que escreveu. Nunca chegaremos a uma verdade, nem sobre a obra, nem sobre o autor.

Mahon: Nem mesmo o autor manifesta a intencionalidade de forma completa, há o inconsciente que foge da percepção do próprio dono da obra, não é mesmo?

Marta: Claro, claro. O próprio autor pode ter escrito um texto sem perceber que há outras leituras possíveis. Não importa tanto o que o autor quis dizer, mas o que efetivamente disse. É o que vamos trabalhar ao longo do tempo – com a materialização da obra. O Ivens com o Wander têm um livro em preto e branco. Acompanhei uma análise na qual a cor ou a ausência de cor era um elemento importante na interpretação. Eu, intimamente, sabia que a falta de cores se relacionava com a falta de grana e não tinha relação com a opção dos autores. Ocorre que o livro foi publicado em preto e branco. Ponto final.

Mahon: Até que ponto o autor pode deslegitimar uma crítica?

Marta: Não pode deslegitimar.

Mahon: Porra, então uma crítica pode ser totalitária!

Marta: A partir do momento em que o texto está materializado, não adianta reclamar. Mas nem tudo é válido, evidentemente. Pode ser que o crítico se torne um ditador, ele não pode viajar na maionese. É preciso levar em conta o contexto.

Mahon: Se não fosse pelo contexto, o Monteiro Lobato é um racista...

Marta: Sim, concordamos. Há um conto “Negrinha”, cuja temática é a escravidão. Ideologicamente, o narrador se posiciona contra a mentalidade escravocrata. Ao ironizar o comportamento da D. Inácia, o autor se posiciona. Em relação ao racismo e à escravidão, a gente percebe que o autor se posiciona contra. Ocorre que, noutro momento, o autor escreve que a mulher tem dois momentos sublimes – o da boneca e o dos filhos. É uma posição machista que pode nem ter sido percebida.

Mahon: O crítico não pode entender que é ironia?

Marta: Não. Porque é a voz do narrador.

Mahon: Mas o Nelson Rodrigues fazia isso. Embora extremamente conservador, colocava-se na voz do narrador e falava as maiores barbaridades do mundo!

Marta: O crítico percebe quando o autor está usando o expediente da ironia e quando não está. Essa é a nossa função.

Mahon: Em que ponto um texto preconceituoso se deslegitima literariamente?

Marta: O texto pode ser genial, mas preconceituoso. Não há invalidade de forma alguma.

Mahon: Olha o caso de Wagner...

Marta: Entendo perfeitamente esses movimentos que batalham por identificar o preconceito. Infelizmente os professores precisam de um trabalho intenso de capacitação. Se o professor souber contextualizar o autor, não há problema algum: ele vai explicar as razões pelas quais o autor escreveu o texto. É preciso saber separar as coisas e aprender a contextualizar os comportamentos sociais de cada época, inclusive explicando ao aluno essas nuances. E se o professor não tem essa capacidade? Haverá problema na leitura, certamente.

Mahon: E o revisionismo? A interferência no texto?

Marta: Não concordo. Só com a anuência do autor.

Mahon: Uma vez superada a conceituação da literatura, ela serve para quê? Hoje pode-se viver muito bem sem ler um único livro. Qual o argumento que você usa para convencer alguém a perder 15 horas da vida dela lendo um livro?

Marta: Nós não somos máquinas, robôs, plantas ou animais. Somos humanos. E o que nos distingue é a necessidade de alimentar a alma, a mente. Quem vai nos alimentar a alma?

Mahon: Pode ser a música, ora bolas.

Marta: Mas, francamente, não acredito nesse negócio de “não gosto de literatura”. Até mesmo na forma oral. É impossível não gostar de nada.

Mahon: Esse é um pressuposto particular seu. Tem gente que não gosta.

Marta: Mas é da nossa natureza. Desde os primeiros tempos, há necessidade de fabulação. Nas cavernas, pintava-se, histórias eram contadas ao redor do fogo. A arte em geral tem a função de manter a nossa sanidade e o nosso equilíbrio, como o Jung defendia.

Mahon: E quem nunca leu um livro? É um desequilibrado?

Marta: Mas há outras experiências com a arte. Devemos lembrar que, mesmo com outras linguagens, pode ser que o teatro parta da literatura, a música esteja ancorada na literatura. Acho que o texto literário dialoga muito de perto com a alma das pessoas. É possível ver a dor das personagens, a capacidade de sentir a dor do outro, de se colocar no lugar do outro é o senso de fraternidade que está na literatura.

Mahon: Você não acha que as outras artes, por aderirem a técnicas e tecnologias inovadoras, estão deixando a literatura para trás?

Marta: Já está ficando para trás, realmente. Mas a literatura ainda é fonte geradora de outras artes. Embora nós sejamos a sociedade do descartável e da velocidade, já estamos nos dando conta de que o excesso de imagens com a falta de tempo faz com que não consigamos digerir os textos, essa quantidade de informação. A literatura ficou para trás porque as pessoas não têm tempo. Ainda assim, essa forma de arte vai continuar existindo. Veja a poesia, por exemplo – uma das expressões mais antigas do ser humano. Por isso que a escola, talvez, seja o local privilegiado para a sobrevivência da literatura. Se a escola fosse boa e cumprisse a tarefa de formar leitores (de vez em quando a escola faz o contrário), nós teríamos essa missão cumprida, estaria o leitor formado. Mas a escola sozinha não dá conta, porque a família já de desincumbiu dessa missão, infelizmente. É preciso ações para envolver a família desse aluno para que, juntos, estimulemos a criança a ler. Devemos comprar livros e dar de presente. Na minha família, meus sobrinhos reclamavam – não convida a tia Marta porque ela só nos dá livros!

Mahon: Você devia ser um saco mesmo! Criança quer brinquedo.

Marta: (risos) Eu era uma boa tia! Minha sobrinha me adora. Mas a questão do livro tem que ser uma política de Estado. Uma política obrigatória. O calendário escolar precisa contemplar a literatura, festivais, fins de semana, feiras literárias. Se o autor sabe que haverá público leitor, ele se estimula a produzir mais. Todas as formas de arte são essenciais para a formação humana. Olha essa polarização política que vemos! Isso é uma falha na formação, não conseguimos escutar e entender o outro. Essa dificuldade de se colocar no lugar do outro é uma dos problemas que pode ser resolvido com leitura. O calendário oficial precisa mudar. Por que temos feiras agropecuárias e não literárias? O sujeito vai à loja, compra uma bota, um cinto, uma calça e uma camisa, além do chapéu. Sabe quanto acaba gastando nisso tudo? Então, por que não haver também uma feira de livros? Algo que esteja sendo trabalhado em sala de aula durante o ano todo e desemboque no grande evento da cidade ou do Estado? Essa é a política pública mais importante para humanizar as pessoas.

Mahon: E a universidade? Onde entra nisso tudo?

Marta: É importantíssima. Ela vai produzir a crítica que vai conduzir o leitor. A intervenção do crítico é importante para selecionar e facilitar a leitura.

Mahon: Em que medida estudar literatura de Mato Grosso é bairrismo?

Marta: Não acho bairrismo. Acho super importante. Bairrismo seria estudar apenas Mato Grosso. O professor tem que levar o mundo para a sala de aula, deve levar tudo, nacional, internacional e o que está sendo escrito em Mato Grosso.

Mahon: Você acredita essencial a criação da disciplina regional?

Marta: O único autor mato-grossense que está nas bibliografias nacionais é Manoel de Barros. Apenas ele. Um dos mecanismos de formação de leitores é a citação de um autor regional. Quando levamos para sala de aula um autor que escreve sobre as coisas da terra ou ambienta a história aqui, envolve o aluno. É claramente perceptível. É um sentimento de pertencimento que esse aluno terá e de identificação positiva com o seu próprio local. Isso funciona, na minha experiência, vejo todos os dias. Quando, entretanto, ele pega uma Lucinda Persona ou um Eduardo Mahon que não têm a âncora no local de onde escreve, vai perceber que ambos moram em Cuiabá. Isso gera um espanto. Estão acostumados a autores que moram no Rio, em São Paulo, Porto Alegre. Isso cria uma sensação de autoestima.

Mahon: Santo de casa faz milagre?

Marta: Sim, faz. As pessoas gostam de saber que o lugar onde elas moram produz valores para o país. O autor de Mato Grosso ainda não é reconhecido. Faz mais de 20 anos que levo os autores mato-grossense em sala de aula. E todas as vezes é a primeira vez dos alunos, que os alunos tomam conhecimento da nossa literatura.

Mahon: Me veio à mente aqui a “leitura às cegas”, como se faz com o vinho. Os alunos não saberiam de onde e de quem vem o texto.

Marta: Apresentei um trabalho em Presidente Prudente no ano passado e constatei que a maioria dos Estados tem programas de distribuição de livros para bibliotecas e de estímulo à leitura. Até me senti envergonhada. Mato Grosso não tem, nunca teve.

Mahon: Falando em universidades, eu acho que a Unemat impactou Mato Grosso com uma revolução no ensino superior nas cidades do interior. Nós, escritores, fazemos dela um porto seguro para lançamento dos nossos livros. Qual a sua leitura desse fenômeno?

Marta: Os públicos vão se tornando específicos, mais fragmentários. A Unemat, como está em cidades pequenas, do interior, têm um aproveitamento melhor, embora atinja públicos específicos também. O que aconteceu é que vários professores da Unemat estão estudando autores mato-grossenses. Faço isso desde que cheguei a Mato Grosso e conheci Ivens, Wander, Lucinda e Marcelo Velasco. Percebi o compromisso do Wander nesse compromisso com o Estado e me engajei nesse movimento. Dediquei quase 30 anos da minha vida a divulgar a literatura produzida aqui. Há muita coisa a ser estudado, quantas pesquisas há partindo dos nossos biomas! Temos esse dever. A gente vive aqui, mora aqui, devemos ao Estado esse serviço de estudar as coisas de Mato Grosso. Tem muita gente de fora interessada em conhecer isso daqui. Além do mais, temos valores incríveis para conhecer, explorar e divulgar.