Na entrevista da semana, Eduardo Mahon conversa com Moisés Mendes Martins Júnior, um grande ícone cultural de Mato Grosso. Moisés, além de atuar profissionalmente na odontologia, é poeta, cronista e músico. Foi Secretário Municipal de Cultura e pertence à Academia Mato-Grossense de Letras, onde ocupa a cadeira 08.

 

Mahon: Bilac ou Drummond?

Moisés: Drummond, por causa das origens humildes dele. Veio de Minas, conseguiu formar-se em farmácia e, depois, começou a escrever despretensiosamente e tem uma escrita inteligente. Quem não é capaz de decodificar a escrita dele tem algum problema mental. E agora, José? É preciso entender o que ele está falando. Poeta cada qual tem seu estilo, não adianta querer imitar.

Mahon: O que estou fazendo é uma provocação sobre a sua preferência poética...

Moisés: Toda a música me atrai, toda poesia me atrai. Algumas, não só me atraem, como me comovem. Não sou capaz de criticar ninguém que esteja produzindo poesia. Mas, para mim, os poemas precisam fazer sentido. O poeta é um ser social, precisa atingir de uma forma positiva as pessoas para que elas sintam vontade de viver. Dia desses fui convidado para dar uma palestra onde fui perguntado sobre a relação da poesia com a vida profissional. Me lembrei de uma poesia que fiz no anverso de um receituário. A poesia metrificada teve uma influência na minha formação. Sempre fui admirador do Castro Alves. Por outro lado, admiro muito Cora Coralina com sua simplicidade. Cito ainda outro: Manoel de Barros, com a sua simplicidade poética ao olhar o Pantanal. Minha poesia sempre foi despretensiosa, aconteceu naturalmente na minha vida.

Mahon: A sua poesia é arraigada na terra. Mas apresenta um tempo passado, o da memória afetiva. Qual os elementos usados por você para escrever?

Moisés: Você fez uma leitura correta. Venho de uma família profundamente pobre, pobre de verdade. Só não passei fome em Goiânia porque comia um melado com café. Isso com uma artrite reumatoide bilateral, resultado de papelão no calçado furado. Quem ler a minha obra, vai encontrar o infinito como tema central, a injustiça social como coadjuvante. Penso muito nos meus ancestrais, guardo comigo essa nostalgia, na forma como eu mesmo consegui sobreviver. Não tenho uma pauta fixa, nem mesmo um estilo como norte. O que eu quero fazer coincidir é o conceito com a forma. Busco o conceito e, depois, vejo uma forma que se adequa.

Mahon: Recordo do começo de O Bobo, de Alexandre Herculano. O prédio velho se sente mal diante da modernidade, não se reconhece mais na paisagem urbana que mudou. Você sente o despertencimento, a fragmentação do pós-contemporâneo? Como você se coloca atualmente?

Moisés: Eu tenho uma visão positiva de futuro. Tenho esperança, filha da fé. Uma não vive sem a outra. O meu presente é o agora, o meu quando já foi. O futuro não depende de mim. A vida, graças a Deus, não é reta, faz curvas. Os rios conseguem sobreviver graças ao contorno da montanha. Curiosamente, temos um paradoxo com a morte do rio no desaguadouro do mar. Essa minha fé no futuro é essencialmente espiritual, não relacionada às coisas mundanas. Tolstói dizia que onde há homens, há problemas. A minha fixação com o passado é extremamente importante por causa das minhas próprias dificuldades pessoais. Talvez por isso é possível ver essa reação pessoal no meu trabalho.

Mahon: A poesia tem alguma função ou ela não presta pra nada, como diria Manoel de Barros, referindo-se à questão da recusa ao pragmatismo?

Moisés: Como é que não serve pra nada? (risos) A poesia não serve pra nada, entretanto os peixes nadam (risos). Pegue os grandes poetas, o direcionamento aberto para chegar a uma conclusão, a uma intencionalidade. O poeta é um grito social! O poeta precisa ter responsabilidade social. Quem não tiver essa sensibilidade, não presta para a poesia. Mesmo a poesia diletante serve para o próprio autor do poema como forma de acalanto. Toda poesia tem uma função.

Mahon: Gostei muito da sua resposta, concentrando energia no olhar social. Cantando a terra, temos em Mato Grosso vários dialetos poéticos, digamos assim. Desde o simbolismo de Aquino até o modernismo de Freire. Quem mais influenciou a sua produção?

Moisés: Nessa questão emblemática, o Silva Freire me influenciou bem mais. Me chama atenção o Gol, por exemplo. Ao contrário do que parece, minha poesia não é seca, mas é objetiva. E, francamente, não sei porque faço assim. Acredito que todos nós, poetas, temos uma luz sem qualquer explicação. Mas respondendo: o Freire foi muito influente na minha obra.

Mahon: E como eram vocês na Academia? A convivência...

Moisés: A Academia tem duas imagens. De quem está dentro dela, de quem conhece os próprios problemas e a imagem externa, do povo. As pessoas pensam numa Academia engessada que não tem contato com a sociedade. Até mesmo os universitários pensam dessa forma. Lembro do Dr. Lenine de pé, com uma pasta debaixo do braço, esperando o sinal abrir. Eu o reconheci e ele a mim. Naquele momento, deu de presente um livro dele. Perguntei se eu poderia conversar com ele na Casa Barão. Fiquei fã do Lenine! A imponência da Academia afastava muita gente. Tive uma conserva com o Dicke sobre a entrada dele na Academia. Ele nunca demonstrou vontade. Tenho a vaidade dele ter prefaciado o meu livro “Nhá Tuca”. Hoje em dia, felizmente, a Academia não afasta mais. Foi ótimo ter entrado pessoas do povo como a Luciene Carvalho. Transformou completamente a Casa. Não vou chegar ao ponto de dizer que a AML rejeitava o pobre. Mas conseguimos quebrar esse gesso, essa imagem.

Mahon: Da produção contemporânea, quem chama a sua atenção?

Moisés: Esse homem que era da Academia Brasileira de Letras – o João Cabral de Mello Neto – era muito bom. Outro nome é o Mário Quintana e a Clarice Lispector. Não lembro mais por causa dos 77 anos. (risos). É preciso anotar tudo!

Mahon: Tendo chamar atenção das pessoas para o boom editorial em Mato Grosso, algo nunca visto. Livros novos, autores novos, convivendo e se influenciando. Acho que, pelas características genéricas, temos um movimento. A Cristina Campos chama de movimentação. Na sua longa trajetória, o que diria?

Moisés: Essa efervescência vai progredir. Nós devemos muito aos que vieram de fora, aos que estimularam a intelectualidade mato-grossense. Ninguém lia nada, nem sabia nada de cultura. Até mesmo na escola, a grande maioria não tem o menor interesse. Mas falou de futebol e samba, é o que basta. Acredito que futuramente, principalmente com a chegada das universidades, aglutinadoras de ideias, a produção cultural vá crescer muito. Mato Grosso em função do histórico, da posição geográfica, do desenvolvimento, das pessoas que vieram de fora, enfim, é um grande campo para a produção cultural. Eu vi colonos com livros debaixo do braço, um hábito que nem mesmo os intelectuais daqui tinham. A técnica trazida pelos gaúchos, os catarinenses, é fantástica. Víamos o cerrado como uma coisa desprezível, sem aproveitamento. Quando os colonos chegaram, revolucionaram a terra, removendo a “cabeleira” do cerrado. O movimento literário de hoje é resultado dessa chegada. O cuiabano sempre foi vidrado nas próprias coisas e os migrantes mudaram essa concepção. Tem mais uma: eu acredito que, dentro pouco tempo, a cultura cuiabana estará soterrada, não por culta dos outros. Trata-se da velocidade. A cultura cuiabana anda em ritmo aritmético e as demais, em progressão geométrica. Mas não tenho medo e não lamento. Essa miscigenação do velho com o novo vai dar um ótimo resultado.

Mahon: Mas há algum ressentimento da cuiabania? Você sente isso?

Moisés: O maior ranço que existiu e ainda existe, não sejamos hipócritas, é entre Cuiabá e Campo Grande, porque o sul não aceitava Cuiabá como capital de Mato Grosso. Era como água e azeite – não se misturam. A questão do pau-rodado, alguns podem ter essa xenofobia, mas hoje em dia não há mais esse sentimento. O cuiabano foi maltratado, escanteado, sofreu gozação etc. A sociedade cuiabana foi esfacelada por culpa de si própria. Pessoas que andavam com o nariz arrebitado estão vendendo os próprios pertences. Esse modelo não funciona mais. Cuiabá é uma cidade agarrativa como diria D. Aquino e Gervásio Leite. Mas a mistura vai acontecendo e mudam os pontos de vista. Até 1958, os contemporâneos nossos que iam para o Rio e São Paulo se formar advogados e médicos, vinham de lá casados com cariocas, paulistas. Quando chegavam, estranhavam o convívio social. Lentamente, as pessoas foram se unificando, se misturando.

Mahon: O que é cuiabania?

Moisés: No meu entender, há uma duplicidade: de um lado, a elite cuiabana; e, de modo geral, trata-se do cuiabano que nasceu, cresceu e está aqui em Cuiabá. Mas tudo na vida tem duas faces. Quando se diz “cuiabania tradicional”, já se trata de uma casta. A cuiabanidade é diferente – aceita-se o cuiabano como é, um núcleo popular, de pé no chão. Acredito até que Silva Freire não tenha dito “cuiabania” no sentido de elite, mas o termo tem esse sentido. Cuiabanidade não. No Clube Feminino, não se admitia tocar o rasqueado, por exemplo. Eram só boleros, tangos, baladas em geral. Ali os negros não entravam para se ter uma ideia. Eu sempre faço a opção por usar cuiabanidade, porque na palavra está o genes da simplicidade, sem exuberância, sem arrogância.

Mahon: Nós – digo nós da Academia de Letras – temos uma plataforma institucional de demandar o Estado de Mato Grosso para implantar o ensino de história, geografia e literatura mato-grossense. Fico pensando se estamos certos ou seria isso uma espécie de reserva de mercado. O que você pensa disso?

Moisés: Como já disse: tudo na vida tem duas faces. Há os que exploram comercialmente essa intenção e outros que querem o ensino como forma de transformar a vida das crianças. Quando tomei posse na AML, eu disse que no piso do Meki (ladrilho hidráulico), dançaria o siriri, o cururu e o rasqueado. Dona Domingas compareceu e assim foi.

Mahon: Cuiabá sofreu uma enorme descaracterização entre 50 e 60, até que em 68 caiu o símbolo que era a matriz. Até que, em 80, veio o grande movimento Muxirum Cuiabano. Alguns valores que eram essencialmente populares e ribeirinhos foram ressignificados para o seio cuiabano.

Moisés: Veja o seguinte: houve muita adulteração da cultura ribeirinha. Esse grupo de D. Domingas é completamente diferente do que era, estão imitando Parintins. O siriri que é a dança com mulheres tinha uma vestimenta que não era seda: era algodoim, chita e pé no chão. Wilson Santos dizia que tinha que colocar seda. Mas não adianta. É como comparar uma taça de vinho português com outro, popular. O Sangue de Boi tem o seu valor, ora! O que nós vemos nessa explosão que houve é muita miscigenação, muita mistura. Lembro do Cine Tropical, quem ficava no hall era um rapaz chamado Jacildo com o violão elétrico (inclusive o Bolinha e Neurozito são remanescentes). Ele era muito centrado nas nossas coisas. Foi um dos primeiros que saiu daqui para fazer uma gravação com o Rabelo Leite. O primeiro mesmo foi o Conjunto Serenata com o Nilson Constantino. Mas essa mistura, até certo ponto, é salutar. Porque, senão, fica engessando a cultura.

Mahon: Mas você concorda comigo que, no centro, ninguém dançava siriri, com ganzá e viola de cocho. Acredito ter havido um transplante da cultura ribeirinha para a cultura do centro e isso é que foi o mais interessante do movimento.

Moisés: Ou melhor, tinha o siriri e o cururu, mas não era usual. Eu mesmo usava calça de brim e camisa de linho. Depois que apareceu a calça “far West” e começou a mudar. Quem trouxe essa influência foi, principalmente, o cinema. James Jean trouxe o jeans. Eu vi tudo no cinema, de Spielberg até o Mazzaropi. Foi o cinema o grande transformador da cidade.

Mahon: Há vários intelectuais que criticam o conceito de “resgate cultural” porque veem na cultura uma fluidez onde não cabe a palavra “resgate”. Tem sentido?

Moisés: Não, no meu entender, não tem sentido falar resgate. Falar sobre mutação sim, concordo. Desde o Império Romano, os símbolos mudam. Até na formação do advogado com o direito romano, mudou. São as adequações da vida. É o momento quem faz a mudança. Então, eu não diria que houve resgate cultural, primeiro porque o popular aqui em Cuiabá não era bem aceito. Nunca foi. Outro dia, conversando com um seresteiro daqui que me disse “não suporto esse siriri e cururu”. Veja o seguinte: quase não havia cururu, siriri e rasqueado tocando no centro da cidade. Isso não existia!

Mahon: Volto a perguntar: a partir de quando o cuiabano começou a ter uma relação de pertencimento com a cultura popular? Quando o cuiabano começou a falar “isso é meu”, “isso me pertence”?

Moisés: Isso aí é como uma faca que vai chegando na barriga. O migrante que veio é essa faca. Ele deu um susto na cuiabanidade, principalmente ao sertanejo. Na musicalidade, sem dúvida alguma, verificamos que aos poucos sumiu e, de repente, reapareceu com força. Nos clubes, principalmente da elite, nem se falava em rasqueado, mas houve depois um “despertamento”, pela presença de outra cultura alienígena. Foi uma atitude de reação, como quem diz: se você toca o bolero, nós tocamos o rasqueado. Outro dia dei uma entrevista sobre Mestre Inácio, líder da primeira banda de Cuiabá. Saía tocando em festa de santo, despertando a banda militar. O homem de hoje não é o mesmo de 1950, as coisas mudam, se desdobram. Houve uma mutação, nós sofremos influências até internacional norte-americana.

Mahon: Nas décadas de 70 e 80, quem foi o grande expoente do rasqueado?

Moisés: O Tote Garcia, com a sua rabeca, o Zé Agnelo que compôs o Quilombinho. Simaringo também foi um dos grandes do rasqueado mato-grossense. O Conjunto Serenata era craque no ritmo. O ser humano é um mutante. O rasqueado tem uma influência enorme da fronteira do Paraguai. Já o cururu tem uma formação mais campesina, rigorosamente rural. O rasqueado não interessa ao mercado, não é vendável. Com outros estilos musicais, o rasqueado ficou cercado.

Mahon: qual a diferença entre rasqueado e lambadão?

Moisés: a trilogia cultural musical de Cuiabá é siriri, cururu e rasqueado. O lambadão é outra coisa que é a esfregação. É um rasqueado acelerado. Apareceu com Chico Gil que morreu num acidente de carro. O ritmo veio do Pará. A coisa foi crescendo e hoje abafou o rasqueado. Por quê? Porque o lambadão é eminentemente muscular. Por ser acelerado, propicia a animação do baile.

Mahon: Qual a diferença entre escrever poesia e música?

Moisés: São coisas diferentes. Eu sempre faço a música, no assobio ou na gaita. Depois de fazer, coloco a letra. Exatamente como fiz o “Pixé”

Mahon: Você vai ser imortalizado pelo povo por causa do “Pixé”!

Moisés: Estava numa Kombi com o Pescuma e tivemos a ideia. Descemos até o Porto, vizinho do Sesc Arsenal para ver minha tia, filha de João Pedro Dias. Daí ela sempre fazia um pixé num pilãozinho. Quando nós vínhamos da Secretaria, na porta da Trescinco, vi uma mulher idêntica à minha tia. Pedi ao Pescuma que pegasse minha pasta, peguei minha agenda. Assobiei a música e ele, dentro de uma semana, com a letra. Fez sucesso na hora. Fizemos a “Noite Cultural” no 16º Batalhão (hoje é 44º), e o Comandante não conhecia. Eles ficaram maravilhados.

Mahon: O Pixé não tem um ritmo mais acelerado do que as outras músicas?

Moisés: Algumas bandas tocam mais acelerada, o ritmo original não. No original, veio com viola de cocho e mocho. Fiz com Habel dy Anjos, um craque, um doutor em música. O ritmo é sincopado, não acelerado.

Mahon: É uma tendência. Aceleraram o samba, inclusive!

Moisés: Eu acredito, para finalizar a nossa conversa, eu fiquei magoado com uma rádio daqui. Pela lei, 25% das músicas devem ser nacionais ou regionais. Fui lá exigir o cumprimento da lei. O cara disse “se me der mil reais, eu toco”. Eu respondi “te dou dois mil reais para nunca tocar a minha música”. Não aceito jabá.

Moisés: Nem uma coisa, nem outra. Comemoração não há por quê. A lamentação também não, porque há esperança. Li uma entrevista do Carlos Rosa que falou uma coisa muito séria da qual eu concordo: a data da fundação de Cuiabá não é aquela que nós usamos, de 08 de abril de 1719. Enquanto era Secretário de Cultura, briguei com alguns prefeitos (Wilson, Meirelles, etc) para arrumar a nossa bandeira, a heráldica. É Bom Jesus “do” Cuiabá e não “de” Cuiabá. Considero que as instituições, e a Academia de Letras entre elas, deve dar ciência desses ensinamentos. É uma obrigação nossa. Sempre fiz isso nas escolas. Íamos em três ou quatro para levar o conhecimento às escolas. Ninguém sabe quem compôs o hino de Cuiabá. Ninguém sabe cantar. O acadêmico não deve apenas escrever. A obrigação do acadêmico é democratizar a cultura. Só se faz a democratização chamando o povo para trabalhar dentro do processo. Eu penso assim, não sei se estou certo, mas não abro mão de estar no meio do povo.