A poeta e artista plástica Regina Pouchain é a entrevistada da semana. Eduardo Mahon aproveitou a breve estada de Regina em Cuiabá para conversar sobre a produção dela e de Wlademir Dias-Pino.
Mahon: A obra de arte precisa de legenda?
Regina: Não necessariamente. Porque depende muito do background de cada pessoa. Cada um pode fazer a sua leitura. Se for colocada uma direção de leitura, limita-se o público, a menor que o artista queira explicitar a intencionalidade.
Mahon: Mas falar em background cultural no Brasil não é uma piada?
Regina: Eis aí o problema. Você aponta duas questões sérias, o contexto social e o meio artístico. Entre pessoas do meio acadêmico, é preciso tirar as legendas para que a leitura seja absolutamente livre. Outra situação é no público brasileiro em geral, uma escola pública etc. Eu respondi anteriormente de acordo com o meu próprio background, com a minha própria vivência artística. Não posso impor a minha régua para uma criança, um adolescente do ensino fundamental. Mas é preciso provocá-los: o que é uma obra de arte? De qualquer forma, é preciso substituir os críticos que envelhecem. Devemos discutir a arte desde a escola, formando público e os próprios artistas e críticos.
Mahon: O observador de arte entende primeiro e sente depois ou vice-versa?
Regina: Não compete ao artista fazer um trabalho didático, quero deixar claro. Há uma exceção que o Wlademir (Dias-Pino) sempre me dizia: se o produtor cria uma arte nova, de ruptura completa com a tradição, é preciso dizer ao que veio. Porque o público não tem obrigação de adivinhar o que nunca viu.
Mahon: É por isso que fiz a pergunta. Quando temos uma instalação interativa, uma performance em loop, o uso de materiais biodegradável, tudo isso é uma arte efêmera. A tendência da arte é cerebral ou mais coronária?
Regina: É mais coração. Em geral, o que importa é o ego, é fazer o próprio trabalho sem se importar com mais nada. O que vejo é um empobrecimento técnico ao longo do tempo. Se compararmos os materiais usados pela arte moderna e pela arte contemporânea, é uma tristeza. Eu mesma que tenho uma tendência bem experimental reconheço que, no modernismo, havia uma preocupação especial com materiais, por exemplo. Fico impressionada com o cuidado do artista da modernidade e a falta de trato, de amor, de carinho dos contemporâneos. Quero que uma arte significativa dure. É preciso ter preocupação com os materiais, com o papel, com a gramatura. No Rio de Janeiro (que virou uma província), não se encontra um bom papel.
Mahon: Faz-se arte para a elite ou para o povo?
Regina: Acho que se faz arte para o ego, para a elite e para o povo. As coisas são bem compartimentalizadas.
Mahon: O observador completa, integra-se ou apenas observa uma obra de arte? Evidentemente estou te provocando sobre a sua leitura da teoria da recepção, coisa que sempre faço com os escritores... até que ponto o observador interfere na obra de arte?
Regina: Se for um trabalho integrativo, o leitor contracena. O Wlademir dizia isso também: a momentos em que inscrever é mais importante do que ler e vice-versa. Mas quando estamos diante de uma obra contemplativa, o observador só faz observar. Ele não completa e não integra nada.
Mahon: A crítica virou lobby ou ainda há uma crítica legítima no Brasil?
Regina: A crítica é muito restrita ao mundo acadêmico. É possível encontrar uma análise profunda de uma obra de arte. Mas nos jornais, isso acabou.
Mahon: Para quem o crítico fala num país como o Brasil?
Regina: Esse diálogo acabou. Não há livros novos de crítica. Vejo relançamentos do que já se escreveu como é o caso do Frederico Moraes. A crítica inexiste. Digo mais: acho péssimo e empobrecedor para a arte brasileira. Nós mesmos, os artistas, não encontramos espaço para dialogar entre os outros artísticas. Parece que não há mais interesse na discussão.
Mahon: A crítica é um espaço de poder. Só que a crítica se arrogou um discurso tão elitista que perdeu o público, aquele conjunto de pessoas que lia e considerava o crítico como interlocutor. O que sinto é um certo alheamento... esse discurso de transformação social é uma belíssima ilusão com esse tipo de diálogo profundamente elitista do meio artístico.
Regina: Me incomoda tremendamente essa falta de sintonia. Eu mesma, no Rio, já quis fazer um grupo de estudo sobre a arte contemporânea, promovendo textos inclusive. Não consegui, infelizmente.
Mahon: E não conseguiu no Rio que é a segunda cidade do país!
Regina: Ninguém se dispõe. Não há um registro consistente do que está se fazendo em arte. Recentemente, fui a uma exposição de um amigo que faz performance. Ele tem a consciência de dialogar com o público, explicando a intencionalidade. Não gostei da exposição, levantei, fui embora e ficou por isso mesmo. Sem comentários, o que ficará como registro? Nada. O que haverá é um enorme hiato e um empobrecimento teórico do artista.
Mahon: O artista lê pouco?
Regina: Muito pouco. Ele está preocupado em colocar pra fora as coisas do afeto dele e fim de papo. Não temos condição de debate com os artistas contemporâneos, nem com os críticos.
Mahon: Vou propor uma surpresa para a crítica literária daqui a alguns anos, mas não vou revelar agora, no Diário de Cuiabá. (falo in off o projeto...), Mas vamos continuar... Quando você não gosta de uma obra de arte, não gostou porque não entendeu ou porque não sentiu nada?
Regina: Tem relação com a minha estética pessoal. É impossível explicar essa subjetividade. No entanto, tem a questão objetiva que são os materiais e o cuidado na manipulação deles. Tem gente que monta uma instalação de lixo e acha que está fazendo arte. Eu respeito, mas não levaria aquilo comigo.
Mahon: A arte depende do esforço? É preciso ter uma transformação de materiais?
Regina: Sim. Sim. Mas claro que depende do artista. O Wlademir rabiscou uma figura sem nenhum esforço e fez algo que o Hans Ulrich Obrist achou surpreendente.
Mahon: Mas vamos e venhamos: aquele rabisco é o resultado de mais de 60 anos pensando e fazendo arte... O dadaísmo questiona o próprio conceito tradicional de arte. A desconstrução chegou ao ponto do deboche. A coisa toda está tão relatividade que ficou fácil ser artista.
Regina: Eu sou niilista, em termos de filosofia. Mas, artisticamente, faço a discussão teórica sobre essas questões. Esquecer um óculos dentro de uma galeria e ser interpretado como arte? Frederico Moraes que é um grande crítico diz que sim, é arte, ele adota esse pensamento. Mas eu tenho sérias dúvidas.
Mahon: Eu morro de medo de ficar classificando porque penso muito em Monteiro Lobato que deu aquela derrapada no artigo Paranoia ou Mistificação. Um escritor maravilhoso foi crucificado a vida toda por causa dessa bola fora. Fico com medo de criticar o resto de lixo, uma cadeira no meio da sala, um quadro em branco etc. Será que sou conservador ou são eles que são preguiçosos e não têm qualquer talento para nos emocionar plasticamente?
Regina: Será que teríamos que continuar com a preocupação com os materiais? Ou isso não importa mais. Fico preocupada, mas não tenho respostas. Como intelectuais, cabe a nós promover esse tipo de discussão: o óculos seria uma obra de arte? Por que sim? Por que não? Será que o que vale é o contexto do artista? Tudo isso teríamos que conversar, questionar, discutir.
Mahon: Como disse, morro de medo de me tornar uma pessoa conservadora em termos estéticos. Quando vejo uma performance de Marina Abramovic, por exemplo, percebo claramente a proposta dela, em se colocar passivamente diante de uma série de situações que provocam o observador. Ela quer despertar o ódio, a compaixão, ela quer trocar de lugar, girar a ótica de observado para observador. Isso é profundamente inteligente. Mas, francamente, diante de um entulho de lixo no canto de uma galeria? Do óculos caído? De um toco isolado? Ainda não consigo...
Regina: O Frans Krajcberg trazia aquela avalanche de queimaduras de árvore. Gerava um grande impacto. Isso sim! Mas esse tipo de exposição que você citou também não me emociona em nada.
Mahon: A reação tormentosa a um corpo nu em performances num museu ou galeria: não é um sintoma de conservadorismo?
Regina: Isso é ingenuidade, desinformação, provincianismo, tudo isso. Não se engane! O Rio de Janeiro virou uma província. Gente desinformada, grosseira, violência em todos os lugares. Não há uma única loja especializadas em papel. As livrarias estão fechando. As areias da orla estão imundas, tenho repulsa de entrar no mar. Enfim, tenho medo de viver no Rio de Janeiro. O Wlademir me dizia que o sonho do cuiabano era viver em Copacabana. Era um luxo morar ali. Hoje está podre!
Mahon: O Wlademir Dias-Pino, vindo do Rio de Janeiro, loirinho de olhos claros, sofreu muito em Cuiabá?
Regina: Sim, sofreu muitíssimo. Ele tinha uma relação de amor e ódio com essa cidade. As mágoas dele eram muito profundas. Pare e pense: uma família sem o pai que morreu prematuramente, com irmãos vindos de fora, a mãe costurando para fora. Eles eram estrangeiros nessa cidade. Eles trouxeram calças de veludo, vestiam-se muito bem. Mas era interpretado como um alienígena pelas pessoas da sociedade tradicional de Cuiabá.
Mahon: Isso marcou o Wlademir?
Regina: Muito. Acho que o Wlademir se tornou muito reativo. Ele não era aceito, faziam uma espécie de bullying.
Mahon: Isso aconteceu comigo também. Mas hoje amadureci e compreendi as razões dos cuiabanos: o fluxo migratório que desintegrou a cultura tradicional, o deboche que faziam ao linguajar, a desconsideração com as coisas da terra duramente conquistadas.
Regina: O Wlademir chegou ao D. Aquino e disse – a nossa literatura é um blefe! Claro que foi expulso dos salesianos, do colégio dos padres. Foi um escândalo. Mas ele continuava a reafirmar que a literatura mato-grossense era um blefe. A salvação dele foi por meio do jornalismo e da literatura. A família dele ajudou muito. A mãe o alfabetizou e o pai o influenciou com a tipografia. Ainda pequenininho, o pai dele o apresentou a Manoel de Barros e o Wlademir ficou encantado. Tanto é assim que quem começou a divulgar o Manoel de Barros no Rio de Janeiro foi Wlademir. Em seguida, ele começou a fazer revisão textual de petições jurídicas e trabalhar no jornal.
Mahon: O Wlademir e o Freire propuseram o último projeto literário de Mato Grosso. Digo projeto por ser ele consciente, planejado, baseado em bases consistentes, tanto estéticas quanto temáticas. O que pretendia esse projeto?
Regina: Eles dois literalmente planejaram dividir o trabalho: o Silva Freire ficava com a questão tradicional da cuiabania, enquanto o Wlademir ficaria com a imagem. Começaram a fazer os jornais para divulgar as ideias de modernização literária. O Rubens de Mendonça, que era da tradição cuiabana, foi parceiro. Ocorre que ele oscilava. Quando o Wlademir ia passar férias no Rio, o Rubens ficava administrando o Sarã de forma mais tradicional. Quanto voltava, brigavam pra burro. Daí o jornal voltava com a verve moderna. Quem estava preocupado com vanguarda era mesmo o Wlademir, mas compartilhou essa visão para esse grupo de amigos. Ele achava que Cuiabá não tinha nada moderno, era preciso criar aqui uma cultura, além da indigenista. É espantoso que tão cedo ele criasse uma literatura de vanguarda! Tem mais: como não havia papel além do cartão, eles roubavam os tacos do chão dos hotéis, porque os tacos eram de madeira boa e com eles ilustravam as xilogravuras de Japa, por exemplo.
Mahon: O que era a “literatura nova” para o Wlademir?
Regina: Ele dizia que o modernismo daqui era uma coisa muito dispersa. Wlademir achava que aquela história de soneto era muito atrasada, coisa do século XIX. Ele e o Freire fizeram um pacto: o Freire iria cuidar do imaginário da cuiabania, linguajar, tradições, personagens etc, enquanto ele trazia a vanguarda – era essa a preocupação do Wlademir. O trabalho do Freire é muito diferente do Wlademir, mas isso foi combinado que fosse assim. A vanguarda veio com A Ave, com Wlademir de 21 anos. Surgiu o Intensivismo em Mato Grosso, um movimento contra a fórmula de sonetos. Para ele, o poeta mais importante da época era Lobivar de Mattos.
Mahon: No último discurso que fiz, ao receber o Lorenzo na Academia de Letras, lembrei muito do Lobivar de Mattos.
Regina: Wlademir admirava demais a obra do Lobivar. Queria, junto com o Freire, modernizar a literatura daqui. De um lado, o subjacente à terra e, por outro, a imagem. Praticamente toda a obra do Wlademir foi extraída do Intensivismo: usou a pedra canga, seixos rolados, etc.
Mahon: A literatura daqui mudou completamente. Temos aqui gente com qualidade internacional. O que não temos é a distribuição que fure a bolha do eixo Rio-São Paulo.
Regina: O Wlademir fez muito por Mato Grosso, a começar pela Universidade Federal de Mato Grosso. Certa vez, cheguei aqui de forma anônima. Ninguém me reconheceu na UFMT na inauguração da galeria dos ex-reitores. Abordei o Gabriel, me apresentei como companheira do Wlademir Dias-Pino. Queriam tirar o símbolo dele, a logomarca para substituir por uma brasão. Na biblioteca, não havia nenhuma obra do Wlademir. Ele ficou puto! Como já disse, ele vivia numa relação de amor e ódio com Cuiabá. É impressionante como um poeta daqui é reconhecido internacionalmente e desconhecido aqui.
Mahon: Qual a diferença entre poesia e poema?
Regina: A poesia tem compromisso com a palavra, a subjetividade, o afeto, a metafísica. O poema não tem compromisso com nada disso. O poema é material. É possível rasgar e até comer como foi o caso do pão coletivo que foi partilhado entre poetas em Natal. Pra Wlademir, se colocarmos o Solida em bronze e espalhar aqui nesta sala, ele se torna um poema. Não há sentimento e sim forma.
Mahon: E você? É mais poeta ou artista plástica?
Regina: Eu sou poeta, me considero poeta. Embora também lide com artes plásticas, sou poeta.
Mahon: O que virou o museu?
Regina: Uma construção ultrapassada. Praticamente, virou um guardador de memória, muito insignificante. Um depósito. O caminho da arte é a internet. Com o tempo, os museus vão faturar com a cobrança pelos acessos remotos. Por outro lado, consumir arte se tornou proibitivo. Qualquer peça do Waltércio Caldas é 200 a 300 mil reais. Se o futuro é virtual, como é que se compra uma obra com esse valor? O museu não vai existir mais, esse tipo de local onde se reúna tudo. Mas essas perguntas são complicadas, hein?
Mahon: É por isso que eu estou fazendo!
Regina: Outra questão que fico refletindo é sobre as instalações. Depois da exposição, para onde vão essas instalações enormes? Ficam entulhados. Se não houver espaços gigantescos, o caminho é o depósito. Isso precisa mudar. Talvez o caminho seja o mundo virtual, não sei.
Mahon: Mas o que você me diz da obra do Wlademir? Muita coisa em livros muito caros. Como é que se populariza um escritor com essas características?
Regina: Wlademir dizia que não era escritor de obra icônica. Fazer uma edição de 500 livros não o levava a nada. Queríamos imprimir 1 livro por semana, 10 a 30 volumes de cada.
Mahon: Se houver mais de 30 interessados, então, fodeu tudo?
Regina: Fodeu tudo! (risos) O problema do Wlademir era produzir. O resto não era com ele. Problema dos colecionadores! Ele queria produzir o novo e ponto final. Wlademir trabalhou demais na internet com fórmulas matemáticas. Já deixamos as pranchar e caixas prontas para montarmos os livros que viriam. Você precisa ver a composição de cores, uma delicadeza, uma sensibilidade...
Mahon: Até que ponto você deixou de compreender Wlademir?
Regina: Muitas vezes eu não o entendia. Era ele a pessoa mais complexa e genial que conheci na minha vida. Com relação à obra, acredito que entendo a maior parte, porque ele me elegeu como parceira de trabalho. É um orgulho para mim ter sido escolhida e influenciada por ele. Tem gente que fica escondendo as influências, eu não.
Mahon: Quando Wlademir olhava os seus trabalhos, o que achava?
Regina: Se sentia orgulhoso. Emocionado. Fizemos juntos os Contrapoemas & Anfipoemas e só posso me orgulhar. Há uma revista na internet chamada Concinnitas com uma longa entrevista com Wlademir. No lançamento, perguntaram sobre o meu trabalho e a relação com ele. Nunca entendi uma coisa: se o Wlademir me escolheu pra fazer vários trabalhos com ele, como é que os críticos, curadores etc não têm curiosidade sobre o meu trabalho? Estamos vivendo um período complicado para a arte...
Mahon: Você acha que o Wlademir não é valorizado aqui em Cuiabá?
Regina: Acho que sim. Ninguém sabe todo o poder de criação do Wlademir. Ninguém aqui conhece nem 40% da obra dele.