Entrevista com Marília Beatriz de Figueiredo Leite com a participação de Cristina Campos.

 

Mahon: Há algum constrangimento em dizer a idade?

Marília: Nenhum constrangimento, pelo contrário. Tenho o maior orgulho de dizer que tenho 76 anos.

Cristina: Uma das coisas que gosto de você é a alegria. O seu negócio é curtir. Eu acho muito interessante o seu modo de ser.

Mahon: De onde vem essa sua mania de falar de pé?

Marília: É que eu sofro de delírio deambulatório.

Cristina: Pra mim, é bicho carpinteiro, como diriam os cuiabanos.

Marília: Isso é uma característica que papai tinha. Costumo pensar de pé. Detesto falar sentada em público. Você sabe que quando a gente vai defender uma causa nas câmaras cíveis ou criminais, falamos de pé e também no Tribunal do Júri. Como participei muito disso, aprendi a falar de pé. Mas aprendi com meu pai que, por respeito ao público, é preciso falar de pé. Mas também acho que é uma questão de ebulição pessoal.

Cristina: Acho que é uma questão teatral. Você é teatral, performática.

Marília: Isso é o Júri, minha amiga. Antigamente, o Tribunal de Júri era assim, puro teatro. Eu faço cena mesmo. Tanto faço cena que, quando criei Os Crônicos, eles faziam inserções cênicas.

Mahon: Sente-se mais nova?

Marília: As vezes, me sinto envergonhada. Eu tenho a sensação de que, realmente, não estou vivendo a minha época de 76 anos. Eu gosto mesmo de sorrir e de ir a umas festas esquisitas. Gosto muito de curtir a vida e nem sempre isso combina com certo tipo de gente. Por exemplo, a minha paixão atual por um guri é um pouco sério para outras pessoas. Quando comparo as duas personalidades, acho que ele é mais velho que eu.

Mahon: Qual a limitação da idade e qual a beleza da idade?

Marília: Não sei do que você está falando. A vida tem gosto. É preciso degustar. A vida é meio antropofágica. Então, não há limitação.

Cristina: Mas a Matrix parece que delimita demais. Acho ótimo que você não vista essa ideia, porque tem gente que fica muito mal com a idade, fica invisível.

Marília: O que me incomoda é essa coisa padronizada. Isso detesto. Não sei como aguentei estar à frente da Academia por quase dois anos. Achei que você (Mahon) iria cair em cima de mim, toda a vez que eu falava de pé.

Cristina: Mahon não! Outras pessoas poderiam cair de pau.

Mahon: Sempre faço a comparação da sua personalidade com Gertrude Stein. A intelectual era a primeira crítica dos próprios amigos, um grupo que bebeu da mesma fonte vanguardista de Paris. Procede a comparação ou é apenas bondade minha?

Marília: Eu acho que é um sublinhar excessivo seu. Você está dando uma conotação que eu não sei se é exatamente essa. É muito difícil dizer com quem eu pareço, nesse nível tão alto. Há, na verdade, alguns traços em comum. Eu gosto de ajudar os outros. Essa minha relação com o Caio é isso. Quero que as pessoas sigam pra frente, deem certo. Gosto muito de estimular, escrever sobre a pessoa, provocar.

Mahon: Você acha que, de alguma forma, você se coloca como patronesse?

Cristina: Essa é uma palavra careta, hein? Coisa velha!

Marília: Como é que se chama aquele povo que ajudava? Uma palavra antiga... Bem não sei, não vou lembrar. Patronesse não combina comigo. Eu gosto de um ajutório. Eu sou uma “adjutória cultural”, chamemos assim.

Mahon: É verdade esse seu affaire com Caio Ribeiro?

Marília: Bom, o affaire existe sim, é um sentimento de ordem poética. Realmente podemos dizer que existe uma carnadura poética. Uma relação de antropofagia criativa.

Mahon: Vamos ser francos: tem beijo nisso?

Marília: Tem carinho nisso.

Cristina: Marília é que nem muçum. Ela não responde!

Mahon: Quantos anos ele tem?

Marília: 21 anos. Isso é sedução de menores?

Mahon: Não.

Cristina: Ele já é maior de idade, ora.

Marília: Depende do tipo de idade.

Cristina: Mas a Marília gosta de umas travessuras amorosas.

Mahon: vai dar casamento ou é marmelada? Ele me falou que iria casar contigo no Copacabana Palace.

Marília: Ele é maluco. Juntar escova de dente e pente só dá serpente. Pra mim, isso não dá mais certo. Olha, tive algumas experiências. Casamento depende de qualidade. Num certo sentido, é um desligamento da própria natureza, há renúncias. Hoje acho difícil para a Marília atual, embora há determinados momentos em que me encontro em casa, sozinha, e sinto falta de uma companhia que eu não quero. Essa é uma incoerência minha. Não quero nenhum tipo de chateação. Não gosto de manias dos outros. As minhas me incomodam, sabe? Por exemplo: agora estou com uma mania de dançar à noite. Saí dançando debaixo do limoeiro. Me dá muito prazer e vejo o quão jovem eu sou ainda. Quanta alegria e uma certa sensualidade que não depende de ninguém.

Mahon: Você entrou na Academia. E a Academia entrou em você?

Marília: Eu entrei por causa do Avelino que se lembrava do Gervásio, meu pai. Eu morro de paixão pela Academia, sinto uma tristeza porque ela não é o que ela deveria ser.

Cristina: Isso nós todos sentimos. São tantas possibilidades que ficam nas reticências.

Marília: O fato de ter entrado me mudou, principalmente como presidente. Eu vi como era difícil lidar com diferenças. Foi legal quando a Casa voltou às nossas mãos. As poucas realizações foram excelentes. Eu sinto que podemos fazer muito mais coisas. A Academia entrou em mim, mas do meu jeito. Um afeto cultural, digamos assim. Eu sou afetada pela Academia. Eu não posso pensar em fazer uma besteira, porque não quero afetar a imagem da Academia, nesse sentido, entende?

Mahon: Esse é um ponto de vista é censor, de autocensura?

Marília: Não é assim não, cara! Quando você tem amor a uma coisa, você tem responsabilidade. É uma questão de respeito.

Cristina: O que ele disse é verdade, mas é uma espécie de censura que você passa a se impor. Não fazer algo com base na imagem da Academia.

Marília: O que eu estou dizendo, volto a sublinhar, é que sou afetada – tenho uma fé e um afeto. Não gostaria de fazer algo que maculasse a imagem da Academia. Talvez uma limitação minha por ser da Academia, não sei exatamente. Se eu não estivesse na Academia, provavelmente me sentiria mais livre para fazer outras coisas.

Mahon: Na sua opinião, para quê serve uma Academia de Letras?

Cristina: Não serve pra nada! É como a poesia, como disse Manoel de Barros.

Marília: A Academia serve para desestruturar os oficialismos literários, os culturetes e os encômios da burguesia.

Cristina: Não é uma contradição isso? Historicamente, a Academia serviu para legitimar essa ordem.

Marília: Nós somos afinados com outras coisas, com outra linhagem, saca? Essa imagem torcida da Academia de oficializar a literatura, uma imagem plantada, desgastada, precisa ser refeita. Fico chateada ao observar que o talento do Wlademir Dias-Pino não é aceito por alguns de lá dentro, por exemplo.

Cristina: Acho que isso é um pouco de inveja. Negar o valor que o cara tem, reconhecido internacionalmente, é besteira.

Mahon: O que você quer falar com culturetes?

Marília: Quero falar de gente que tem uma empáfia. Gente que usa a erudição para cuspir na verdadeira literatura. De gente que dá aula de literatura que não escreve uma única palavra, um único livro e, na hora de criticar, erra na mão e incomoda quem sabe ler de verdade. Gente chata. Culturete fica apenas na crítica. São pessoas que têm um desprezo, uma arrogância, soberba. Fui questionada, certa vez, porque eu estava publicando determinada pessoa. Era uma culturete falando. São críticos falando um monte de bobeira. Impossível discutir cultura com esses níveis dede burocracia.

Mahon: Você vai lançar dois livros ao mesmo tempo. Tive acesso a um deles, intitulado “Viver de Véspera”. Morri de inveja do título. O livro trata sobre a morte, de modo geral. Em que medida você mesma vive de véspera?

Marília: Rindo. Primeiro, rindo. Segundo, porque realmente estou num momento mais próximo da morte do que estava há vinte anos atrás. Eu preciso deixar um testemunho dessa minha visão, do ritual e de uma certa ironia. O viver de véspera é só em relação à morte, mas em celebração. Eu não estou recuando diante de nada, estou avançando cheia de alegria neste tempo e neste chão.

Cristina: E fica mais saboroso viver quando se está perto do fim?

Marília: Vejo que tem gente em volta de mim que fica preocupada por causa da morte. Eu não estou pensando nela. Mas a morte está próxima e é impossível negar isso.

Mahon: Qual é o outro livro e no que se diferencia do “Viver de Véspera”?

Marília: Agudas ou Crônicas é o título. Agudas são fatos da vida. É um livro de jogo, de brincadeira, costuro alguns pensamentos meus com a ludicidade. Poder brincar e fazer chiste, uma coisa meio freudiana. Crônicas são pessoas que eu homenageio. Os fatos são aqueles que eu vejo e os amigos estão de certa forma estão dentro dos fatos.

Mahon: É difícil ser culto em Mato Grosso? Como foi a sua vida intelectual?

Marília: Eu vim de uma trajetória muito próxima de gente de peso na área da literatura. Convivi, trabalhei e tive uma agenda com gente excelente, vanguardistas como Wlademir. No Rio, frequentei a Academia Brasileira de Letras, minha vida foi muito intensa, trabalhei no Jornal do Brasil, conheci Carlos Lacerda, fui até sócia de uma boate no Beco das Garrafas. Me tornei uma boêmia e achei mais gostoso ser boêmia. Passei a ser vagabunda, descompromissada. Mas quando fui presa pela ditadura e minha vida na noite fracassou (meus amigos não pagavam), resolvi que viria para Mato Grosso com 30 anos de idade. Cheguei aqui, fiquei estarrecida, não tinha nada do que eu gostava. Convive então com Eugênia Paredes que tinha um programa que eu ajudava a fazer. Em seguida, entrei na Universidade Federal e aí comecei a me realizar. Retomei tudo o que havia deixado no Rio. Renovei minhas amizades antigas, convivi com outras pessoas, consegui fazer uma ponte Rio-Cuiabá, mas foi um pouco difícil me acostumar com coisas que via aqui, por exemplo, umas maldades. A maldade está que Cuiabá cobra uma atitude. Isso é um saco e, ao mesmo tempo, uma maravilha. Aqui você é obrigada a produzir, senão caímos no limbo. A geografia, o espaço, o calor, tudo me empurra a fazer alguma coisa a mais.

Mahon: Cultura dá tesão ou brocha?

Marília: dá tesão. Muita tesão. Tesão quase de orgasmo. É um orgasmo a cultura bem lançada. Cristina que está do seu lado, por exemplo, que tem um ar assim de flanar. O Marchetti é outro exemplo, bem parecido com a gente. Tem essa coisa de querer experimentar.

Mahon: Diga uma saudade dispensável.

Cristina: essa pergunta é uma arapuca.

Marília: Eu tenho saudade de um cavalo que dançava Stravinsky. O cavalo que morava perto de casa. Toda vez que tocava Stravinsky, ele dançava. Fiquei assustava e acabei doando o cavalo. Ele se chamava Sunshine.

Mahon: E uma vaidade besta.

Marília: Não tenho esse tipo de vaidade, nem sei o que é isso.

Mahon: E uma vaidade grande?

Marília: É achar que sei um monte de coisa que muita gente não sabe.

Mahon: Um poeta mato-grossense.

Marília: Lucinda Persona.

Mahon: Faça aqui um epitáfio provisório.

Marília: Que pena, ela já se foi.