A peça teatral, No domingo ele vem nos visitar, escrita por Eduardo Mahon, poeta, escritor e advogado, foi construída a partir dos poemas de Lucinda Persona, na leitura interpretativa do poema, o autor busca a reflexão em torno do cotidiano de uma senhora e seu marido que no domingo sempre espera o filho chegar para almoçar.
É dentro desse espaço de múltiplas facetas que a ação é construída, a casa começa a se movimentar em torno da cozinha, entre o café e o jantar, o casal vai fazendo reflexões de suas histórias, apesar dos anos, ainda há vida, como diz Mahon: “A cozinha é um templo onde o ritual mais antigo da humanidade é celebrado diariamente.
FORTUNA CRÍTICA
HOJE É DOMINGO E QUERO VOS VISITAR
Marli Walker
Passei a semana pensando numa forma de dividir com vocês a experiência que vivi assistindo à peça “No domingo ele vem nos visitar”, escrita por Eduardo Mahon a partir da obra poética de Lucinda Persona, com direção de Luiz Marchetti e direção de cena de Caio Augusto Ribeiro. Como veem, com esse time, eu não poderia vir aqui fazer um relato superficial, muito menos uma resenha rígida, escandindo versos ou teorizando sobre o drama, gênero que sequer domino. O que a experiência provocou em mim foi uma espécie de encantamento que deita memória em minha infância, quando pela primeira vez senti o mais genuíno enlevo diante de um grupo de jovens missionários que encenava num pequeno palco improvisado, na vila onde nasci.
De lá para cá, entre mais algumas experiências, pude sentir novamente o mesmo arrebatamento poucas semanas antes da pandemia, ao assistir ao monólogo interpretado por Cássia Kis, “Meu quintal é maior do que o mundo”, com textos extraídos do livro “Memórias inventadas”, de Manoel de Barros. Eis que dois anos depois, no Cine Teatro Cuiabá, revivo a sensação de estar diante do palco, em companhia da poeta, o que acentuou muito a experiência. De alguma forma, senti aquela mesma menina me capturando como expectadora e espectadora de algo inédito.
Pois bem. Conhecedora que sou da obra de Lucinda, minha curiosidade residia em viver a experiência da transposição de uma arte em outra. A poesia seria preservada? De que modo o cenário funcionaria para compor quadros que tantas vezes criei no ato solitário da leitura? E os atores? Teriam mergulhado no universo imagético de obra tão peculiar e potente? Teriam sido, autor do texto e diretores, sensíveis a todas as camadas de uma poesia que me é tão cara? Estava apreensiva e ansiosa.
Uma casa com paredes e telhado transparentes no centro do palco. Um casal inicia seu dia de domingo e começo a ver e ouvir aquilo que tantas vezes imaginei durante as leituras. A atriz, Claudete Jaudy, incorporou a voz lírica calma, complacente e resignada em meio aos afazeres dominicais. O ator, Ilto Silva, encarnou uma espécie de pilar, ou centro gravitacional em torno do qual toda a ação poética girava. Ou seria todo o amor dispendido em tanta poesia que pairava sobre todas as cenas, gestos e falas? Ou seria o amor atravessando o tempo e se mantendo firme, calmo e terno por entre cacos de louça e jornais espalhados pelo chão? Seriam as palavras sem memória a recusa em ceder ao avançar do tempo diante de tantos domingos e adiadas esperas?
Eu fruía o evoluir da trama e não me furtava a falar baixinho trechos de poemas, acompanhando algumas falas. Quando, enfim, respirei aliviada, a certa altura da peça, já satisfeita e feliz e embebida em catarse, surgiu um efeito surpresa, mágico, uma espécie de subversão do tempo. A jovem atriz Sarah Emily foi portadora de uma inversão temporal. Uma cena tocante, forte, sensível e potente a partir da qual eu cedi e, obviamente, chorei. Sim, eu sou dessas. Choro fácil diante da arte bem executada. Soube, depois, ter sido essa uma alteração de cena sugerida por Caio Augusto Ribeiro. Belo acerto.
A peça fala de amor e sobre como o tempo pouco ou nada pode diante de um casal que divide a vida e passa o domingo à espera da visita do filho. Eu digo que fala sobre amor porque vi o amor acima e ao redor da espera e no meio da vida daquele casal. Aliás, a trama urdida em torno da espera chegou até mim como um pretexto perfeito para costurar o texto extraído de poemas pontuais da obra de Persona. Num período de mais de duas décadas de criação, a poesia de Lucinda trata do tempo, da sua passagem sutil por entre as lidas cotidianas e, sobretudo, trata do cuidado, o cuidado com o outro, com o modo de dizer cada imagem, vislumbre, grão, fatia, gomo, talo, maço, folha. Em cada partícula de vida e a cada uma delas, o enorme amor e cuidado desta mulher que, compenetrada e paciente, cuida de cada refeição como quem escreve um verso, um poema, um livro inteiro. Ela o faz como forma possível de transitar solene por entre espelhos e paredes, até o telefone ou a porta da vizinha, até o sofá onde o outro lê ou repousa. Ele repousa porque sabe do amor e do cuidado, sem o que esse outro não resistiria ou sequer lembraria do jantar, do prato de sopa, das vagens, dos ovos, do chá, dos figos esquartejados ou do ramalhete de couve-flor.
Amor, em suas mais variadas facetas, foi o que vi na transmutação da poesia para o drama. É o que assegura a espera, entre uma noite e outra e em todos os dias da vida. Pretendia ser breve nesta visita, mas, como viram, fui arrebatada pelo conjunto da obra, ou pelo tempo, esse senhor incontornável que se personificou diante dos meus olhos e me lançou ao centro da poesia, num dia de domingo.
Marli Walker é escritora e professora. Ocupa a cadeira 02 da AML.