A beleza de ler um livro ainda não publicado é que, depois que encarna no papel parece ser algo completamente diferente. Exilado no Manso, há mais de 1 ano, li o copião do atual Domicílio (Gesto, 2021). Senti um gosto meio amargo de balanço, fim de festa, noves fora, trocando em miúdos. Talvez fosse a pandemia, o sol escaldante, o cenário do cerrado bruto. Li várias vezes como se, na poesia de Marta, houvesse alguma salvação. Nunca há. Quem sabe, dê-se justamente o contrário. Agora, devidamente vestido de capa e contracapa, o livro confirma a minha sensação inicial. A maturidade cobra uma espécie de retrospecto, antologia ou exposição do que se aprendeu até aqui. Não poderia mesmo ser um livro esperançoso em meio ao nosso contemporâneo desesperançado.

 

Domicílio abre-se em cômodos, cada qual dedicado a um estilo e/ou tema, prato cheio para os estruturalistas que babarão de gula com a “antiga decoração” proposta. Essa referência ao passadismo me impressionou. É que a problematização realizada pela autora é justamente essa: demonstrar que a questão central não é a metrificação em si, mas o trato do tema – se passado ou se atual. Daí que a poesia não precisa do quebra-quebra da vanguarda para se renovar. Pode conviver com o tapete gobelin pregado na parede da sala e, ainda assim, ser moderna. Apenas essa referência à antiga decoração já renderia tanto pano para a manga que não me permitiria avançar. Deixemos os bibelôs de lado para ir além.

Marta tem 55 anos. E daí? Daí tudo. São 30 anos de carreira literária. A vida passa a ver vista em perspectiva. Há vários poemas que metaforizam a morte: “Vida é lugar de penar e folgar/ e seus círculos só cedem ao corte/ no justo momento de se enquadrar”. Da primeira vez que li, voltei ao tempo das moiras Cloto, Láquesis e Átropos. Algo de cruel há nelas, algo de triste, algo de fatal. Evidentemente, a tônica de “Domicílio” não escapa ao fatalismo e, por isso, em variados momentos a poeta chega a ser prescritiva: “Entrem sonhos, correndo/ que a vida passa – avisem:/ olhem mais por onde sentem/ e menos por onde pisam”. Sentir o passar do tempo e divisar a finitude do ser invariavelmente expressam uma certa maturidade de observador.

Marta observadora, um tanto distante: “e olhos não sentem/ o velho presente”. Esse presente em que estamos, passadíssimo de tão velho, só pode ser percebido por quem está à frente. Os poetas estão em crise e essa crise permanente é a única possibilidade de perceber com mais clareza o nosso próprio tempo. Feliz ou infelizmente, vivemos no presente, inclusive a escritora. Daí o inevitável incômodo: “Por fim/cavamos/ com pá e máscaras/ o túmulo cotidiano:/ cofre de acúmulos./ E já cabemos nele./ E dele já não nos livramos/ como se desatam sapatos/ e dele só nos falta a chave/ de uma inscrição lapidar”. Não seremos nós a encontrar a “chave” e ditar o que será inscrito na lápide. Isso é um problema do futuro e de quem vem com ele.

De qualquer forma, o clima de balanço geral é bastante intimista e, como não poderia deixar de ser, desencantado: “E eu/ um dia hei de ir também/ na mesma viagem/ sem qualquer bagagem/ nem o que de mais preciso:/ o pulso destes versos/ que, pelo visto,/ pouco servem de aviso”. São poucos poemas que resistem a esse estado melancólico: “e ia dizendo sem cessar:/ conte outra/ morrer pode esperar”. Mesmo negando a morte e celebrando a vida, a simples menção não deixa de gerar uma relação indissolúvel com a perspectiva de fim.

Felizmente, tudo indica que Marta Cocco não irá se entregar ao silêncio. Um dos últimos poemas do livro é um saboroso diálogo com Drummond e com as fábulas populares. O anjo drummoniano já estava “suspenso” quando Marta nasceu. Essa colocação é de um refinamento bem característico da autora. Diz o eu-lírico que a mãe, antipoética por falta de alternativa, vaticinou um destino de formiga. No entanto, a poeta preferiu cantar como cigarra. Resistiu à condenação mais cruel das desinteligências passadas e atuais – o silêncio. Portanto, resiste ao destino anônimo e calado das formigas: “e canto até/ o último pedido/ que venho de longe carregando:/ quero/ o supremo êxtase/ de estourar cantando”.

O novo livro de Marta Cocco tem mais de Marta Cocco que os anteriores. É provável que o tom confessional, a retrospectiva amadurecida, o inventário do que já leu, tudo isso tenha construído esse domicílio de muitos retratados na parede. Caberá ao leitor perceber os vários antepassados poéticos da autora pregados às paredes da casa. Da estrutura literária, a poesia é o cômodo mais incômodo. O domicílio de Marta é, sim, difícil de habitar. Preparem-se para entrar na ponta dos pés. Imaginem quanto rangido fará o “assoalho do tempo” do último poema do livro.

Eduardo Mahon é escritor, advogado e pesquisador.