Os modelos quando se enfeixam para um centro, como se obedecessem alguma forma especial de gravidade chamam-se de arquétipos. O arquétipo é uma forma consagrada que induz ao mimetismo. De certa forma, consciente ou inconscientemente, estão tão entranhados no imaginário de um povo que servem de amálgama identitário. Do berço grego que urdiu a cultura ocidental há vários arquétipos. Destaco a rivalidade entre dois irmãos que chegou ao maior cânone literário ocidental, Shakespeare como o seu Hamlet.
Que o diga Zelos, o deus grego da rivalidade, que assumiu posição no séquito de Zeus após a titanomaquia. Os próprios habitantes do Olimpo conviviam no caldo da hostilidade, da inveja, da competição e da vingança – sentimentos que fazem dos homens imagem e semelhança dos deuses. Mesmo antes da teatrologia grega, era conhecida a rivalidade entre os irmãos Seth e Osíris, este último traído à emboscada, castrado e desmembrado para assegurar ao malfeitor a morte definitiva. O fratricídio também se observa noutras culturas como a nórdica, com a conhecida disputa entre Loki e Heimdall, onde ambos irão sucumbir.
Portanto, o ódio entre irmãos – no mais das vezes, gêmeos – é um arquétipo que se repete na história (com Rômulo e Remo) e na literatura ocidental, privilegiada pela difusão da Bíblia. Nela, vários casos de desafeto fraterno são recorrentes, destacando-se o quarteto Caim e Abel, Esaú e Jacó. O irmão bom, justo, austero e pacífico é vitimado pelo irmão mau, invejoso, indolente e voluptuoso. Não por coincidência que o arquétipo persistiu e continua atual no mundo pós-contemporâneo.
Ocorre que, na literatura contemporânea, o arquétipo é usado conscientemente por cada autor para exprimir o seu ponto de vista em contraposição ao contrário. Tal evidência está clara ao compararmos quatro obras literárias: Esaú e Jacó, de Machado de Assis, Os Dois Irmãos de Germano Almeida e, finalmente, Dois Irmãos de Milton Hatoum. A par de todos os outros elementos que enriquecem os textos, suas identidades próprias no tempo e no espaço, seus conflitos paralelos que individualizam os livros, meu recorte trata prioritariamente do conflito entre dois irmãos, suas características, a forma pela qual o atrito se desenrola e qual o desiderato de cada caso.
A proposta do presente ensaio é não só verificar o arquétipo dos gêmeos sendo reforçado como também perceber o quão distante pode chegar o desvio autoral. Em que medida os irmãos dos diferentes romances coincidem? Em que ponto, discrepam? Conseguem chegar ao ponto de inverter a lógica do arquétipo? E, sobretudo: quais são os conflitos escolhidos pelos autores a ser projetados nos irmãos? O sucesso de um dos irmãos pode significar a preferência consciente ou inconsciente do autor?
Inicialmente, aponto Esaú e Jacó, de Machado de Assis. No destino, o autor apoiou-se para urdir a trama que já é sabida, desde as primeiras páginas. Do ventre da mãe, da consulta à vidente, extrai-se uma espécie de vaticínio. Haverão de, mesmo idênticos os gêmeos Pedro e Paulo, odiarem-se. No romance machadiano não há, entretanto, a costumeira contraposição do bem contra o mal; cada qual tem um defeito: “Paulo era mais agressivo, Pedro mais dissimulado”. Ainda crianças, “cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros”. Já adultos, como não podiam distinguir-se fisicamente um do outro, preferiram adotar convicções políticas diametralmente diferentes: Pedro, um monarquista aguerrido, enquanto Paulo apoiava a revolução republicana. Lentamente, portanto, o leitor sente que a luta no ventre da mãe vai descambar para uma vida inconciliável, talvez com violência.
Estamos aqui num período de transição política, forte tensão no Rio de Janeiro, então capital. De um lado, o decadente império de D. Pedro II que não conseguiu se manter no poder após a abolição da escravidão em 1888, representado pelo irmão Pedro e, de outro, o ideário republicano (ainda que radical), estampado no irmão Paulo que dorme com uma ilustração de Robespierre por sobre a cama. As formas aristocráticas não são capazes de conter a virada de um regime para outro, conforme Machado insinua: “Natividade confiava na educação, mas a educação por mais que ela a apurasse, apenas quebrava as arestas ao caráter dos pequenos, o essencial ficava; as paixões embrionárias trabalhavam por viver, crescer, romper, tais quais ela sentira os dois no próprio seio, durante a gestação...”.
Aqui está fixado o olhar de Machado de Assis, transpondo a crise da monarquia para a crise doméstica, dois regimes, dois irmãos. No mais das vezes, o autor se usa claramente de Aires para exprimir sua incredulidade com a mudança constitucional: “Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele”. Discretamente, porém, Machado concede a última palavra a Paulo, o republicano: “Quando Paulo acabou (de ler o artigo), Pedro disse com ar de mofa – Conheço tudo isso, são ideias paulistas. – As tuas são ideias coloniais, replicou Paulo”. A reposta sem tréplica foi por mim interpretada como a posição do escritor, um republicano sem muita convicção ou, no mínimo, já convicto de que o sistema monárquico ia “cair de podre”.
O remate do romance Esaú e Jacó encaminha-se para a surpreendente reconciliação dos irmãos, primeiro em razão da morte de Flora – a amada em comum – e, depois, pela morte de Natividade, a mãe. No entanto, cumpre-se o arquétipo da inimizade irreconciliável. É que “Paulo entrou a fazer oposição ao governo, ao passo que Pedro moderava o tom e o sentido, e acabava aceitando o regímen republicano, objeto de tantas desavenças”. Devemos lembrar que, nos primeiros anos, a República viu-se nas mãos de marechais e, logo em seguida, cedeu às oligarquias. Enquanto o público estranha as mudanças repentinas nas ações dos gêmeos, o conselheiro Aires encerra a obra com a frase: “eles eram os mesmos, desde o útero”.
Novamente, Machado usará o sábio Aires para resumir as expectativas futuras: “A razão parece-me ser que o espírito de inquietação reside em Paulo, e o de conservação em Pedro. Um já se contenta do que está, outro acha que é pouco e pouquíssimo, e quisera ir ao ponto a que não foram os homens. Em suma, não lhes importa a forma de governo, contanto que a sociedade fique firme ou se atire para diante”. Machado revela-se, então, mais uma vez dividido entre o passado e o futuro, entre a vanguarda e o conservadorismo, entre o que é e o que será.
A tensão entre o conservadorismo e costumes liberais é a tônica de “Os Dois Irmãos”, do cabo-verdiano Germano Almeida. O romance se desenvolve também numa época de transição, qual seja, a independência de Cabo Verde. O desligamento metropolitano gerou problemas de adaptação, de geração, de identidade. O escritor usa-se do fratricídio – anunciado no primeiro capítulo – para desenvolver a questão central: com que leis hão de julgar costumes? Evidentemente, a questão legal perde-se para a amplitude sociológica e política do mesmo problema. É dizer: privilegia-se a visão “civilizada” metropolitana, decantada no juiz e no promotor do caso ou assume-se a identidade e, portanto, o costume comunitário cabo-verdiano? A questão, embora não seja nova, é fundamental em períodos de transição política radical, mormente em casos de independência. Mantém-se, inclusive, na atualidade para o choque cultural em tempos pós-contemporâneos.
Em resumo: um dos irmãos emigra para Portugal, deixando na ilha de Santiago a família formada por pai, mãe e o irmão gêmeo, João. Deixa lá também a mulher porque julga que não se acostumaria ela com o quotidiano da cidade grande. Até que recebe uma carta dando conta da traição entre mulher e irmão, flagrados ambos por um tio. André retorna à ilha, entorpecido com a notícia, sem planos de vingança. Ao longo do tempo, ainda que acolha as reiteradas negativas do irmão, vai sentindo o ostracismo imposto pela pequena vila, tornando-se socialmente transparente e desimportante. Essa espécie de “deserdação” dá-se, inclusive, na própria família.
Vejamos, antes, como Germano Almeida caracteriza cada um dos irmãos. De início, “Pedro Miguel viria a descrever André como um indivíduo brincalhão e conversador, sempre bem-humorado e sempre com uma piada pronta para qualquer situação, ninguém conseguindo aguentar com os dentes fechados quando ele estava perto”. Ainda: “André tinha sido sempre um grande apego à mãe”. Já João é descrito pelo próprio pai como um “desnaturado”. Mais adiante, é esclarecido que “aos doze anos de idade, o pai tinha decidido que não voltaria a bater-lhe porque tinha chegado à conclusão de que João era ingovernável e todo o esforço no sentido de o melhorar seria pura perda de tempo”. Finalmente, o autor põe em causa a questão central do romance: “Ora em todo o povoado João era o único filho que abertamente punha em causa esses princípios sagrados e, embora André nem sempre o aprovasse, sentia que lhe invejava a coragem. Porém, nunca tinha visto o irmão enfrentar o pai com tanto desaforo e tanta violência na voz e nas palavras, e houve mesmo um momento em que chegou a recear que o pai se levantasse donde estava para o agredir com qualquer coisa, sobretudo porque, chamando abertamente o pai de endemoniado, João sabia que propositalmente o estava gravemente atingindo em sua honra”.
Portanto, novamente, temos a descrição arquetípica dos irmãos: André sendo bom, obediente, respeitoso, ponderado, “manso, pacífico e meigo”, e principalmente fiel, enquanto João representa a libertinagem (femeeiro), a desordem, a ruptura com as tradições. Temos aqui um Caim e Abel às avessas: o bem sendo forçado a matar o mal a fim de conservar o modus vivendi da comunidade sendo, por isso, recompensado pela comunidade que o acolhe e pelo pai que o abençoa. Aliás, as marcas do nomos estão tão profundamente tatuadas em André que, mesmo emigrado, e “livre da aldeia e da sua pequenez”, volta para cumprir o ritual. As representações de Germano Almeida são, de certa forma, os mesmos em Machado – o conservadorismo versus vanguarda, a modernidade contra a tradição. Em certo momento, aproximam-se ainda mais quando Germano escreve: “ninguém consegue escapar do destino que traz escrito de dentro da barriga da sua mãe”.
De fato, logo no início do romance, Germano Almeida escreve: “o Réu não tinha sido senão um mero instrumento de execução de um irrevogável mandato popular, não ínsito na consciência daquele povo que o seu desrespeito teria sido um escandaloso ultraje a valores que estão muito acima e muito para além da consciência individual”. No quarto final do livro, o juiz (um alienígena) confessa: “Estou com a estranha sensação de que afinal das contas muito pouco conheço o meu povo”. Esse pensamento reflete ser o magistrado um neófito nos ritos da aldeia e, portanto, representa uma lei estranha e inaplicável à comunidade, uma norma que não traz solidariedade, tema tão querido por Émile Durkheim e sua nascente disciplina dos fatos sociais.
Eis aí as peças que o autor se usa para contrapor valores, optando claramente pela comunidade e suas idiossincrasias. André (o agressor) é retratado como vítima, não só da traição do irmão, como também da consciência coletiva. É no advogado de defesa que Germano pretende defender os valores cabo-verdianos, em contraposição à hermenêutica europeia. A lei apresenta-se como forma de reforço na colonização, dominando mentalidades e as instâncias de poder e vocalização sobre os fatos, embora completamente alheia à vivência provinciana.
No romance de Milton Hatoum não há o fratricídio, muito embora a tensão entre os irmãos Yaqub e Omar, chamado insistentemente de “o caçula”. O arquétipo é mais uma vez observado com a presença de dois irmãos completamente diferentes. Ocorre que o autor alcança uma profundidade psicológica bem mais ampla do que nos dois outros romances comentados. Já na infância, via-se um Yaqub mais responsável e temeroso, enquanto Omar era destemido e brigão: “Ele e o irmão entravam correndo em casa, ziguezagueavam pelo quintal, caçavam calangos com uma baladeira. Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto, se arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da árvore, escondido na folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de medo, temendo perder o equilíbrio”.
Em razão das brigas constantes e de um atentado de Omar, o irmão mais velho foi enviado para o Líbano. Quando voltou, a semelhança com Omar era notória, mas a diferença de gênio acentuara-se: “Era um tímido e, talvez por isso, passasse por covarde. Tinha vergonha de falar: trocava o pê pelo bê, e era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o tinham mesmo como rapaz rude, esquisito: vaso mal moldado. Mas era também alvo de olhares femininos. E olhar Yaqub sabia. De frente, como um destemido, arqueando a sobrancelha esquerda: um tímido que podia passar por conquistador”.
Sobre a personalidade do Caçula, seleciono: “Já Omar era presente demais: seu corpo estava ali, dormindo no alpendre. O corpo participava de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia da farra noturna. Durante a manhã, ele se esquecia do mundo, era um ser imóvel, embrulhado na rede. No começo da tarde, rugia, faminto, bom vivant, em tempo de penúria. Era, na aparência, indiferente ao êxito do irmão”.
Curiosamente, o mesmo olhar sobre a “província” de Germano Almeida é o de Milton Hatoum. Se o primeiro escreveu que um dos gêmeos estava “livre da aldeia e de suas pequenezas”, o segundo alertou o irmão mais velho através do padre Bonislau: “Vá embora de Manaus, dissera o professor de matemática. Se ficares aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo teu irmão”. Ambos os trechos, como é claro, guardam uma simetria extraordinária. A aldeia tem suas regras próprias e, tudo indica, só é completamente conquistada por destemidos ou, no mínimo, quem se entrega de forma autêntica e aceita os ônus e bônus do povoado. O lugar dos metódicos, dos organizados, dos estudiosos é longe da mentalidade provinciana. Daí que André emigrou para Portugal e Yaqub mudou-se para São Paulo.
Numa palavra, Yaqub representa o a ordem e o progresso e Omar, a liberdade e a tradição. Hatoum escreve sobre uma Manaus em transformação, exatamente como as outras transições de Machado (império-república) e Almeida (colônia-nação). O crescimento da capital desfavorece a figura do Caçula, a espontaneidade, o ritmo próprio de vida, a languidez e o sexo fácil e aventureiro. Talvez por essa razão, Yaqub formou-se em arquitetura e voltava para a cidade natal com projetos de desenvolvimento. Deu-se o esperado choque, presente nos outros dois romances, o choque de realidades, de tempo e de espaço: “ (...) Omar deu um salto, ergueu a rede e começou a socar Yaqub no rosto, nas costas, no corpo todo. Corri para cima do Caçula, tentando segurá-lo. Ele chutava e esmurrava o irmão, xingando-o de traidor, de covarde. Alguns moradores do cortiço encheram o quintal e se aproximaram do alpendre. Com um gesto brusco eu agarrei a mão de Omar. Ele conseguiu se livrar de mim. Percebeu que estava cercado de vários homens e foi se afastando devagar, de olho na rede vermelha. Ainda o vi correr até a sala e rasgar com fúria as folhas do projeto: rasgou todos os desenhos, jogou a louça no assoalho e desabalou pelo corredor”.
Por que Omar chamava o irmão de “traidor”? Yaqub sempre se comportou. Nunca pediu, nem aceitou dinheiro dos pais, jamais roubou qualquer coisa que fosse verdadeiramente do irmão ou da família. Em que sentido Omar acusava o irmão de traição? A resposta está no último ato de Omar, após desferir as agressões – rasgou os projetos de arquitetura. Aí Hatoum desenha a resistência nativa ao desenvolvimento, esclarece perfeitamente em que sentido um homem exemplar pode ser chamado pelo próprio irmão de “traidor”. De certa forma, Yaqub traía o modo de vida da província ao distanciar-se e viver na metrópole paulistana.
O fim é importante em todas as obras analisadas, sobretudo a de Hatoum. Explico-me: Omar cumpriu pena e foi libertado pela intervenção da irmã que juntou os tostões para pagar o advogado. O casarão da família foi transformado em shopping de bugigangas. Parece que a atenção do autor volta-se exclusivamente para o irmão Omar que prossegue de bar em bar uma vida noturna e marginal. Hatoum conclui: “Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão. Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora”.
A despeito de dezenas de outras questões que se pode pinçar da obra de Milton Hatoum, resolvi isolar a questão do espaço e do tempo para efeito de compreender os irmãos como símbolos do binômio atraso/desenvolvimento. Dá-se aqui, em conclusão, o contrário do que afirmava o marxista Lukács em sua teoria do reflexo. O teórico entendia que o autor banha-se nos componentes sociais para trazê-los para o interior de si, gerando a matéria-prima do escritor. Do meu ponto de vista, tanto Machado quando Germano e Hatoum usam-se sim do contexto social, mas de forma consciente, fabulando em cada irmão a própria intencionalidade.
Meu recorte particular dos romances comentados não impossibilita novas leituras por meio de ângulos diversos, mas acredito que reforça a proposta inicial deste ensaio – o arquétipo é usado largamente na literatura para contrapor mentalidades e formas de organização social e política. O autor contrapõe dois modelos em personalidades diferentes, causando conscientemente simpatia ou antipatia em conformidade com as próprias inclinações. Em comum, no entanto, em todos os romances sugeridos, será a mesma arguta conclusão: o passado acaba sendo vencido, feliz ou infelizmente.
Eduardo Mahon é escritor e estudioso de literatura.