LIVROS PUBLICADOS
SINOPSE
AZUL DE FEVEREIRO – Contos. Nova reunião de contos breves. O autor aprofunda-se no gênero do fantástico, utilizando-se de imagens absurdas e de linguagem mordaz. O livro está inserido numa coletânea de 9 outros autores, escolhidos pela editora pela grande contribuição para a literatura contemporânea brasileira realizada em Mato Grosso.
OLGA MARIA
NARRATIVA DAS IMPERMANÊNCIAS
Olga Maria Castrillon-Mendes
In: Azul de fevereiro. Coleção Carandá. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2018
O livro Azul de fevereiro, de Eduardo Mahon, faz parte da Coleção Carandá composta de dez livros que representam, basicamente, parte da produção literária brasileira contemporânea produzida em Mato Grosso. A Coleção traz o selo da Editora Carlini & Caniato, cuja proposta editorial tem se voltado à formação do jovem leitor a partir do investimento no fecundo trabalho de produção e difusão dos escritores do Estado. Nos títulos desta Coleção o leitor encontrará alguns dos mais destacados escritores brasileiros, bem como jovens escritores que têm despontado nas artes e na cultura do Estado. Todos veiculam expressivos textos que rompem as barreiras da obviedade e da linguagem, renovando estruturas e temas. Um misto de narrativas curtas e poemas, a coleção é um aperitivo literário que encontrará solo fértil nos mais diversos nichos escolares, desde que olhados com especial atenção pelos professores e disponibilizados pelas escolas.
Azul de fevereiro é um convite aos diferentes gestos de leitura que meu “olhar superlativo”, diria, lacunar, apaga o autor, aguarda a ouverture da ópera e o prazer (incômodo) da surpresa de cada ato. Mahon escreve para incomodar, desassossegar, fazer do sonho, pesadelo e subverter a realidade cartesiana. O estilo, influenciado por um conjunto substancial de leituras, já era antevisto em Doutor Funéreo, conjunto de contos sobre a morte, mas não a morte propriamente física, mas sobre a finitude. A visão patética e irônica forja a tônica literária em Contos Estranhos, perfil que foi aprimorado até chegar em Azul de Fevereiro. O autor estimula a tensão no riso e afasta o afeto romântico clássico, não deixando, porém, o lirismo de lado, o que torna a escrita ainda mais instável e provocadora.
Algumas leituras são absorvidas pelas cativantes histórias envazadas em narrativas curtas, fluidas e com o ingrediente básico do conto maravilhoso; outras movem sentimentos de irritação, absorvidos pelos variados momentos de tensão entre o espaço e o tempo, as vozes narrativas e o estilo. Isso implica cavar os subterrâneos da mente e atingir as tonalidades dadas pelo narrador. A escolha recai sobre um sistema de coordenadas essenciais que expressam as variadas relações com o mundo. Não há nos contos elementos gratuitos ou decorativos, mas a exploração concisa do acontecimento, garantindo o valor estético. A temática é variada e apreendida pelos efeitos do espanto e pela condição existencial das personagens. Tudo perpassado por fina ironia que atinge de imediato o leitor, na exata dose de diversão que só a literatura é capaz de oferecer.
Entre a fantasia e o jogo, os sentidos são arrebatados pelo que lê/observa, pelas surpresas finais e pela forma como o insólito se cola a um real rejeitado como ponto de partida. As leis físicas não o atingem e nem tampouco parecem comprometer a verossimilhança da própria narrativa. O trato entre o possível e o impossível é o mesmo, desmanchando no ar o liame do que entendemos como fantasia. A brevidade de cada conto é estrutura e essência. Funciona como mecanismo de sobreposição de planos e de expressão poética, muito dentro da inventividade do escritor afeito aos influxos de expressivos narradores da literatura mundial.
É nesse cenário de espelhos identitários, empalidecidos como a formação do arco-íris, que os contos de Eduardo Mahon convidam o leitor a se aproximar do literário, se perder e se achar, mesmo que em pequenos instantes improváveis de sua conturbada vida.
Ao leitor de fruição, aquele que se compraz com o livro, sem compromissos acadêmicos, aproveite o bom humor para rir de chorar. Ao estudioso, um alerta: os contos são como cebola. É preciso vencer camada a camada de significado, para atingir o núcleo, a intencionalidade escondida nas entrelinhas. Este último vai rir, mas também chorar.
No mais, é ler para crer!
GISELLI e SANDRA
Espelho, espelho meu: a condição existencial do homem em Azul de Fevereiro, de Eduardo Mahon[1]
Giselli Liliani Martins[2] - (UNEMAT/SINOP) - CAPES[3]
Sandra Maria Alves de Souza[4] - (UNEMAT/SINOP)
O fantástico é uma lente de aumento que
serve para ver melhor a realidade.
(MAHON, 2020, p. 57).
Desde que chegam a esse mundo os seres humanos são construídos, desconstruídos e reconstruídos pelas descobertas que fazem ao longo da vida. Nesse processo formativo do ser, ao qual todos, inevitavelmente, são expostos, a imaginação é trabalhada, lapidada, para contribuir com essa formação. Nesse sentido, entre o real e o imaginário, os sujeitos vão se constituindo, ora questionando acontecimentos humanamente inexplicáveis, ora resignando-se a aceitá-los.
Partindo do princípio de que a existência humana se equilibra no limiar entre realidade e imaginação, percebe-se uma linha bastante tênue a demarcar essa fronteira, na qual a literatura se mostra um instrumento de referência, ou até mesmo de encontro, entre o sujeito e as múltiplas faces que o constitui, e o ajuda a compreender-se enquanto ser humano frente às dualidades da natureza humana e do mundo. Nesse duelo, a narrativa fantástica se coloca como um importante instrumento, inclusive, de reconhecimento e transformação do homem e do meio no qual vai sendo inserido ao longo do tempo.
SINOPSE
A GENTE ERA OBRIGADA A SER FELIZ – Romance histórico. O leitor é provocado a mergulhar na História do Brasil de uma forma inovadora. São cerca de 50 anos de agitação, com eleições e golpes, narrados por um homem singular – Aurélio Espírito Santo. O negro favelado que consegue um emprego de cavalariço num quartel próximo vai conviver com sentimentos contraditórios e guiar os leitores por percepções tão particulares que o Brasil não vai parecer o mesmo país que conhecemos.
SINOPSE
ALEGRIA – Romance. Um médico inominado separa-se da mulher e vê no jornal oportunidade de emprego no interior do país. Uma vez aceito o convite, muda-se para uma pequena ilha chamada Alegria e lá constata um estranho morticínio de peixes e uma gravíssima epidemia de suicídios. A missão do protagonista é uma só: saber o que está acontecendo com as pessoas, antes da extinção total.
FORTUNA CRÍTICA - VERA MAQUÊA
A intangível conciliação
Por Vera MAQUÊA
Que tipo de narrativa se iniciaria com uma citação de A peste, de Albert Camus, de onde sugere-se que foi retirado o título Alegria, se não fosse para tratar do absurdo presente em tudo, desde situações do cotidiano até grandes fatos que marcam a vida?
Na encruzilhada em que seres de diferentes procedências se encontram para um acerto de contas muito simples: a vida como ato, como teatro, com aquele necessário e vital elemento de tragédia que dá aos espíritos, dos mais simples aos mais complexos, o gozo da dor e da alegria.
Dividida em três partes, o escritor Eduardo Mahon nos apresenta uma cidade chamada Alegria, metáfora de um isolamento, na ilha que a suporta e num encadeamento de acontecimentos com ares de romance polar, com mistérios plantados pelo narrador desde as primeiras páginas. Fenômenos anunciados e fatos estranhos, por meio de estratégias desconcertantes, fazem da cidade um espaço-tempo de eventos inusitados, acompanhados de comentários despretensiosos do narrador que, sendo em primeira pessoa, deveria saber bem menos.
A sequência de mortes, das explicadas às mais mal explicadas, dá um tom de recherche às pegadas das personagens e de seu interlocutor, oscilando entre o mistério do trágico e o mistério dos romances policiais, na sua forma clássica do tipo Umberto Eco, do que se alimentam casamentos infelizes, frustrações cotidianas para tocar com fineza o autoritarismo que manda matar quando as pessoas não põem, elas mesmas, fim às suas vidas.
Nessa novela vibrante e nervosa, que não pode nos impedir de lembrar de Um copo de cólera, de Raduan Nassar, há no entanto um aspecto de relevo que segue na linha sutil da organização narrativa: os problemas da cidade como uma doença social, cujo narrador médico é de fato o melhor para abordar e analisar a sociedade. Num desses momentos, na parte 2, o narrador médico e sociólogo se confluem com precisão: “Aqui em Alegria, o caso é patológico, uma epidemia, aliás. Alguma coisa estava causando novo desastre, contaminando as pessoas que não tinham nenhuma alternativa, ainda mais isoladas no meio do nada (p.43)”.
Nesse sentido, podemos incluir essa novela na linhagem daquelas obras iconográficas de grandes alegorias contemporâneas, como Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago; Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez ou mesmo um conto de Jorge Luis Borges como Funes, el memorioso, pois são todos efeitos de uma doença social, cujo maior mal está na ignorância e no isolamento, cujos governos autoritários sempre fizeram questão de manter. O narrador de Alegria bem sabe disso. Já na parte 3 dessa novela, entrevemos, às vezes, um filósofo, um tipo sartriano, que se revela numa espécie de epifania sem moderação:
Fosse como fosse, era mentira o que o prefeito dizia no autofalante todos os dias. Nem os peixes, nem as pessoas pararam de morrer. A situação estava igual. Mas eu estava proibido de dizer algo a alguém. No fundo, acreditava mesmo que os índices de mortandade iriam melhorar com o pacote de felicidade proposto pelo governo. Donato organizou shows de palhaços na praça central, contratou mímicos para percorrer os bairros mais distantes, além de aumentar o cachê os músicos que tocavam tarantela ininterruptamente. O pianista Tomazzo Ferri que perdera seu piano para a fogueira foi nomeado maestro. Negócio de ouro. Ganhou o que queria e o que nem mesmo ele acreditava. Bastavam os músicos tocarem o ritmo do prefeito (p.55)
A vida (e a morte) assim passa a fazer parte de um acorde, de um movimento, de uma onda, de um som, orquestrada por alguém, que não Deus, posto que o narrador diz-se ateu. Uma espécie de música humana, cujos timbres nascem da própria condição existencial, aquela que ultrapassa toda miséria material como podemos ler em A peste, epígrafe de Camus que costura essa narrativa.
Parece ser na consciência nublada do narrador que flamejam os limites do conhecimento de si e dos outros. O narrador, em vários momentos, afirma que é difícil conhecer realmente o outro, mesmo sendo alguém com quem vivemos. Nesse diapasão, o fato de ser médico faz dele um sujeito cínico, muitas vezes. Toma distância e analisa com frieza os sentidos (ou a falta) da morte, das vontades de morrer, desde a dúbia morte de sua esposa, Elisa, até a de Isabela, de 19 anos, filha de Vincenzo Rosano. O suicídio do prefeito, o de Maria do Rosário já no início da narrativa, cujo bilhete é também um mote para construir uma possibilidade ao seu modo, se acumulam em sobreposições de eventos, repetindo-se, como um desenlace natural da vida. Mas é a frieza que triunfa no gesto de contar desse narrador que evidencia o ritmo de suas escolhas:
As pessoas morriam como moscas. Que eu saiba, as moscas têm vinte e oito dias de vida, mais ou menos. Entre o mês de dezembro e o janeiro seguinte, começaram a chegar os corpos dos mais ricos. A família Rosano foi-se toda, sem exceção, assim como os Trova, Basilli, Amadio, Fassoni, Mazzetti, Andreoli, Rosso e toda a gente do extremo norte de Alegria. Não houve Natal, nem festa de réveillon. Nem lugar, nem circunstância propícia (p. 59).
Da mesma maneira, o narrador tenta reconstituir o que diria a Elisa ao mostrar-lhe o prejuízo de tê-lo perdido, apresentando-se como um velho feliz, brincando com seus fictícios netos. Mas num movimento semelhante de avanços e recuos o leitor é surpreendido no final ao topar com o Epílogo. O absurdo constitui as filigranas da ação narrada e arremata o segredo que o narrador prende até o final, ao modo do desfecho de Grande sertão: veredas. Que arte seria melhor que contar “sabendo”, como se, igual ao leitor, não soubesse. Essa resposta só poderia ser dada se, efetivamente, escrever não fosse um modo de escavação do próprio eu, nessa encruzilhada que dissemos no início: um encontro para acertos de contas. Com quem? Quantos poros existem na linguagem? Quanta distância pode haver entre o escritor, o autor, o narrador? Nos limites da estrangeiridade, escrever ficção seria a melhor maneira de filosofar, diria Camus.
E não serei eu a tirar do leitor essa descoberta.
Um brinde ao nosso narrador!
Alegria!
DIVANISE
A CORROSÃO EM ALEGRIA DE EDUARDO MAHON, UMA RESENHA
CORROSION IN ALEGRIA BY EDUARDO MAHON, A REVIEW
MAHON, Eduardo. Alegria. Cuiabá; Porto Alegre: Carlini & Caniato; Editora Sulina, 2018.
Alegria (2018) de Eduardo Mahon é, num certo sentido, uma história do Brasil profundo, distante dos grandes centros metropolitanos. A narrativa principal se passa na fictícia cidade de Alegria e, embora o estado ao qual pertence jamais seja nomeado, o deslocamento do narrador-protagonista revela o seu caráter longínquo, encravado no coração do país: “eu iria parar de oito em oito horas para dormir nos hotéis de beira de estrada. Dois dias de viagem seriam suficientes para chegar à rodovia federal e, de lá, seguir pela vicinal até meu novo emprego” (p. 11). O personagem, que também não tem nome, é um médico residente na capital (qual delas?) que se muda para Alegria após ser contratado, com um alto salário, pela prefeitura local.
O isolamento desse espaço é ainda reforçado pela sua qualidade de ilha, “curiosamente fincada no meio do maior rio da região” (p. 11). Os grupos sociais da cidade também vivem numa espécie de apartação bem delimitada: mestiços de indígenas ou caboclos de um lado e brancos descendentes de italianos de outro. Para se referir a ambas as coletividades, o narrador utiliza os termos “bugres” e “carcamanos”, de uso corrente comumente pejorativo, mas que, em sua fala, adquirem uma espécie de neutralidade ou pelo menos equivalência, já que não se identifica de fato com nenhum deles. Ao contrário, o médico parece pairar acima dessas distinções, não se envolvendo intimamente nem tomando partido em suas disputas.
A história de Alegria não é muito diferente daquela de outros territórios localizados no centro do país. Habitada originalmente por etnias indígenas que a chamavam de Inquirim (“morro do sossego”), foi um dia alcançada pelas máquinas do governo federal, que abriram caminho até ali, derrubando, com grossas correntes, milhares de árvores centenárias. A via aberta deu passagem aos primeiros brancos, basicamente militares e garimpeiros, que trouxeram doenças responsáveis por dizimar grande parte da população nativa. Metais preciosos não foram encontrados, mas logo se descobriu que o morro era um importante depósito de calcário, despertando, assim, o interesse dos italianos, que assumiram a extração do minério e o poder político e econômico da região. Dessa história comum de desigualdade surge um elemento mágico que talvez explique os estranhos acontecimentos testemunhados dali em diante pelo narrador. Conforme explica o historiador da localidade, “os italianos foram amaldiçoados pelo povo retirante por bulirem com o 'morro do sossego'” (p. 33-34).
Além dessa camada histórica mais profunda, o presente da narrativa não é precisamente delimitado. Porém, tem-se a impressão de que a história ocorra em algum momento dos anos 50 ou 60, já que não há menção à televisão (nem muito menos à internet), mas sim às novelas do rádio. O protagonista alterna, em sua narração, os eventos ocorridos em Alegria com aqueles correspondentes ao término de seu casamento com Elisa, depois do qual decidiu se transferir da capital. Não faz referência a divórcio, legalmente instituído no Brasil somente em 1977, mas a desquite, que já era anteriormente previsto no Código Civil. E, para falar com sua mãe, por exemplo, ele conta apenas com o único posto telefônico da cidade, operado por uma telefonista. Esses detalhes temporais ajudam a compor a ambientação do Centro-Oeste, num período em que atraía cada vez mais interesse das outras regiões e do governo federal.
Sem ser exatamente rico, o narrador pertence ao mesmo grupo dos privilegiados que já foi examinado de forma irônica, na literatura brasileira, por autores como Machado de Assis e Graciliano Ramos, entre outros. Afinal, ele é um homem branco heterossexual que exerce uma das profissões mais prestigiadas do país, a medicina. As características que ele compartilha com protagonistas anteriores, como Bentinho, Brás Cubas e Paulo Honório, são exatamente o cinismo, a ausência de empatia e uma grande dificuldade de estabelecer vínculos sólidos com outras pessoas. Nem mesmo em relação à mãe ele nutre sentimentos profundos, sem esboçar grande sofrimento ao ser avisado de sua perda: “[s]ua mãe morreu, meu filho. Faz duas semanas já. [...] Bati o telefone no gancho. Não era preciso alongar a conversa” (p. 113). Ele também é acusado por Elisa de ser “desatento”, um dos motivos para o fim do relacionamento.
Essas características da personalidade do médico estranhamente refletem o insulamento de Alegria, e nisso se esconde uma pista relevante para o entendimento do desfecho da história. Antes disso, a cidade é acometida por uma mortandade inexplicável de peixes e por uma epidemia de suicídios, chegando gradualmente ao número de milhares de mortes. Diversamente dos suicídios comuns, que de forma geral são o último ato de pessoas deprimidas, os ocorridos em Alegria são atitudes inesperadas de homens, mulheres e crianças que antes pareciam normais e até bastante alegres, fazendo jus ao nome da cidade. O médico, então, faz uma descoberta fundamental: “uma membrana opaca envolvendo todo o globo ocular” (p. 64) dos suicidas defuntos, aproximadamente como o que acontece com peixes mortos.
A relação entre os suicídios e a morte dos peixes da cidade, ao que tudo indica também voluntária, não chega a ser explicada. Contudo, por meio de uma escrita instigante e bem construída, Mahon oferece uma série de peças que um leitor atento perceberá formarem um amplo mosaico. Não existem pontas soltas nessa narrativa, desde a epígrafe retirada de A peste de Albert Camus, até cada uma das cenas rememoradas pelo narrador. Inúmeros paralelos são aos poucos traçados entre o que se passa em Alegria e a vida pregressa do protagonista, o que permite o desenho de um padrão relativo à morte, às perdas e ao consequente embotamento da capacidade de sentir - e mais do que um tropo recorrente, os peixes funcionam como um símbolo desse processo. Quase sem perceber, o leitor será conduzido a uma investigação da vida interior do personagem, em que a homologia entre interno e externo se torna cada vez mais evidente.
Ainda assim, mesmo o leitor mais atencioso provavelmente irá se surpreender com a conclusão presente no Epílogo. Após a leitura, porém, é inevitável a impressão de que ela faz todo o sentido e que já vinha sendo preparada desde a primeira linha. Além desse domínio admirável da construção narrativa, Mahon também estabelece um produtivo diálogo com a tradição da literatura brasileira, colocando em xeque-mate o grupo que costuma protagonizar essas narrativas. Não se trata de uma ruptura, já que outros autores já haviam demonstrado como os privilégios são capazes de corroer moral e psicologicamente essa camada social. Mas em Alegria tal corrosão se aprofunda radicalmente, tornando a vida de seu protagonista praticamente uma irrealidade. Nenhum homem é, afinal, uma ilha, por mais que construa barreiras entre sua vida e a de outros seres humanos.
LUIZ GONZAGA
A TRISTEZA FANTÁSTICA DE ALEGRIA!
Entrevista com o escritor Eduardo Mahon
Por Luiz Gonzaga Lopes Porto Alegre
O advogado, professor e escritor carioca, radicado em Cuiabá (MT), Eduardo Mahon, estreou em texto no RS com a publicação de um conto no Caderno de Sábado em março, “Manual de Instruções”, no qual um pai compra um arco-íris para o filho, mas não lê o manual de instruções e o brinquedo pifa. Pois este escritor com mais de uma dezena de obras lançadas, terá lançamento em Porto Alegre do seu novo romance “Alegria”, nesta sexta-feira, dia 20, às 18h30min, na Letras & Cia Livraria, do Shoping Paseo Zona Sul (Wenceslau Escobar, 1823, loja 14), no bairro Tristeza. O romance conduzido à maneira de Albert Camus (do qual Mahon epigrafa trecho de ‘A Peste’) trata de uma cidade fictícia com o nome Alegria, mas que convive com a tristeza de uma espécie de praga que leva as pessoas e até os peixes a cometerem o suicídio. O livro é um lançamento conjunto da gaúcha Editora Sulina e da editora Tanta Tinta, do Mato Grosso. Mahon é autor de obras de contos como “Contos Estranhos”, “Doutor Funéreo e Outros Contos de Morte”; de poesia como “Palavrazia” e “Meia Palavra Vasta” e de romances como “O Cambista” e “O Homem Binário e Outras Memórias da senhora Bertha Kowalski”.
O blog Livros A+ resolveu dar dois dedos de prosa via whatsapp com este autor que estará em Porto Alegre nesta sexta para falar do romance Alegria, das suas influências de Camus a Saramago e outros papos literários.
Livros A+ – Como tiveste a ideia de “Alegria”?
Eduardo Mahon – Alegria é um livro que é essencialmente Camusiano. Ao contrário do Gabriel García Márquez e do Juan Rulfo, a minha principal influência para o Alegria talvez tenha sido o Albert Camus em A Peste. Tanto que o último parágrafo de A Peste dá início ao Alegria, na página preta como a epígrafe. Ele diz que a peste pode voltar. Eu pensei numa peste absolutamente incompreensível, que é a dos suicídios em Alegra. Uma peste que não depende do outro, de contágio, depende muito mais dos nossos infernos pessoais. Depois de acabar o livro, você pode traçar uma série de paralelos. Um deles poderia ser o Ensaio Sobre a Cegueira, do José Saramago. Não me passou nada além do que a influência do Albert Camus.
Livros A+ – De onde vem tuas influências, tuas referências literárias?
Eduardo Mahon – é claro que eu li García Márquez, o Saramago, o Rulfo, o Ernesto Sábato, enfim todos os grandes escritores que flertam com o fantástico, mas acho que o fantástico foi despertado em mim quando era bem mais jovem e li o Nikolai Gogól. Ter lido O Capote, o Nariz, isto me influenciou mais do que com Cem Anos de Solidão, Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada, O Amor nos Tempos de Cólera, Memórias de Minhas Putas Tristes, os livros do Gabo em geral. Acho que já mais maduro eu li bastante coisa do Saramago e me interessei pelo Saramago mais pela técnica e pela estética do que pela história. Comecei a lê-lo com Todos os Nomes, depois O Evangelho Segundo Jesus Cristo, O Cerco, Jangada de Pedra, Ensaio sobre a Cegueira, o Elefante. Dele, a inovação estética é absolutamente incrível. A maneira dele escrever me influenciou muito, na supressão de sinais gráficos do texto, como travessão, aspas, a utilização do parágrafo monobloco, isto é muito Saramago. Acho, por exemplo, que o parágrafo está com seus dias contados.
Livros A+ – Como pensas que deve ser a boa literatura nos dias de hoje?
Eduardo Mahon – A questão da boa literatura é muito subjetiva. Eu acho que nós temos que partir de algum lugar. Como é impossível se ler tudo o que temos disponível hoje, nós precisamos priorizar, ir por algum caminho. O meu caminho foi ler os clássicos primeiro. Eu li os clássicos russos. Me lembro bem disso. Depois, os europeus em geral e finalmente eu comecei a ler a teatrologia grega, que no final das contas é a raiz comum dos ícones ocidentais. Este é o meu caminho. Tem gente que começa por um autor, que começa a se seduzir por um estilo. Em função de uma proximidade que eu tinha com pessoas que tinham coleções de clássicos. Comecei a ler o cânone primeiro. O meu padrão de avaliação eu confesso que é muito alto, canônico. Depois li o anticanônicos, leio os contemporâneos, leio os lançamentos, os prêmios Pulitzer, os Book Prime, os Nobel. A boa literatura cuida do ser humano. Para mim, ela é aquela que daqui a cem anos continuará instigante, falando do ser humano. Ela não é circunstancial, ela é universal. O sujeito que está produzindo no Crato (CE) ou na Sibéria está falando do ser humano. Ele não está contanto uma história circunstancial. Ele está expressando um dilema do ser humano. É claro que há questões estéticas e uma maneira brasileira de fazer literatura, pois aí é a nossa personalidade em ação.
Livros A+ – E as novidades da tua carreira, além de “Alegria”?
Eduardo Mahon – Está sendo traduzido este ano o livro “Contos Estranhos” para a Bélgica e para a Holanda. Este ano ainda, eu lanço “O Homem Binário” e “Alegria”, em Portugal. E no ano que vem, eu lançarei “Contos Estranhos” na Primavera Literária, em Paris, além de Bélgica e Holanda. Eu fico satisfeito de encontrar outras pessoas que embarquem na minha maluquice. A estética do conto é muito diferente da do romance. Há muita coisa implícita no conto. O bonito é estar implícito. No romance é preciso explicitar mais. A estética do conto é de uma escrita frenética, mais agudamente fantástica e insólita. Então, entrar em outros países é fenomenal. Mandando um abraço aos gaúchos e querendo encontrar pessoas que amem e falem de literatura, além da gastronomia aí do Sul que é fantástica.
SÉRGIO GUIMARÃES
Mahon, Eduardo (2018). Alegria. Cuiabá: Carlini & Caniato; Porto
Alegre: Editora Sulina, 2018, pp. 175.
Sérgio Guimarães de Sousa
Universidade do Minho
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No contexto de uma atenção editorial cada vez mais dependente em larga escala de sofisticadas estratégias de marketing, todo o crítico literário ter-se-á já confrontado com essa experiência, sempre surpreendente e feliz, que é a de se cruzar com um livro praticamente anónimo, porque assinado por um escritor pouco menos do que desconhecido, e descobrir, afinal, no seu interior um texto magnífico.
Um livro, por outras palavras, cujo virtuosismo estético-literário saltaria de tal modo à vista que, sem grandes despesismos hermenêuticos, merecesse o direito imediato à preservação.
No meu caso, o escritor chama-se Eduardo Mahon, e o livro intitula-se Alegria. Em bom rigor, o autor não me era de todo incógnito.
Dele tinha previamente lido Contos Estranhos (2017), textos assaz exemplificativos da sua estupenda perícia técnico-narrativa e do seu não menos impressivo poder imaginativo. Em todo o caso, esta introdução prévia ao romancista pela mão segura do contista não podia por si só antecipar a excecionalidade do romance. Como é sabido, bons contistas não desembocam forçosamente em romancistas de primeira linha.
Que dizer, então, no curto espaço desta recensão, de Alegria?
Antes de mais, que não será necessária particular sagacidade hermenêutico-exegética para filiar esta obra numa ascendência literária facilmente reconhecível. A narrativa, com efeito, apresenta-se sem custo como possível filha pródiga d’O Alienista, sem prejuízo, como é claro, de outras referências intertextuais maiores (Rhinocéros, de Ionesco, por exemplo; ou mesmo, consinta-se, por flagrante contraposição temática, Intermitências da Morte, de Saramago).
Assumido herdeiro ou não de Machado de Assis, o certo é que Mahon nos oferece, nesta fábula, tintada de realismo mágico, uma poderosa alegoria em torno da condição humana. A traços largos, a intriga resume-se em poucas palavras. Divorciado e sem grandes estados de alma, um médico, em tudo banal, exila-se numa pequena
cidade do interior, sugestivamente denominada Alegria. É então que, muito estranhamente, irrompe um fenómeno inimaginável: um virulento surto de suicídios, antecipado, como se de um sinal profético se tratasse, pela morte de todos os peixes do rio. Dir-se-ia que o jovem clínico, contrariando a incumbência profissional, trouxe, sem que ninguém alguma vez o venha a suspeitar, a morte por contaminação.
Ou seja, como se a ontologia do vazio que parece transparecer na sua personalidade, um tanto descomprometida com a realidade (desde logo, pela sua manifesta incapacidade, ou quase, de estabelecer laços sólidos com quem quer que seja), se traduzisse na morte de todos aqueles que com ele privassem. Tanto mais que antes de chegar a Alegria, o médico, em boa verdade, já trazia no seu encalço os óbitos, razoavelmente inexplicáveis, da ex-mulher e, antes disso, do pai. A situação, sem paralelo, torna-se tão crítica que o poder político, alarmado com a incessante proliferação de cadáveres, se vê constrangido a adotar, procurando deste modo evitar o extremo abismo, medidas drásticas e muito típicas dos regimes totalitário-burocráticos. Razão pela qual a pacatez de Alegria se converte bem depressa no seu reverso obsceno. O ponto mais alto desse reverso ocorre quando tudo passa a funcionar num horizonte despótico, que é como quem diz, ao serviço de uma estratégia de perseguição obsessiva.
Ao nível do estilo e da linguagem, convirá assinalar que o romance se pauta por um léxico desprovido de ornamentações e todo o tipo de efeitos rebarbativos. O que isto significa é que, visto a partir de que ângulo for, o estilo é elegante e eficaz, não se perdendo na eloquência de uma retórica vácua e empastelada. O mesmo é dizer, a excelência fraseológica de Mahon, não há como negá-lo, decorre daquela aptidão pela qual a inteligência ficcional de um escritor se mede pela sua desenvoltura em condensar muito em poucas palavras.
Acresce o facto de as frases, pouco extensas, se concatenarem, de um modo geral, e a bem da legibilidade, em regime de parataxe. Como diria, n’O Paraíso e Outros Infernos, com inteira sensatez, José Eduardo Agualusa: «Escritores muito jovens tendem ao artifício fácil. A híperadjetivação, por exemplo, é uma doença infantil da literatura. Mais tarde, à medida que cresce, um escritor aprende a cortar. A partir de certa altura compreendemos que o mais importante é a simplicidade. O
mesmo quanto à vida. Cortando tudo quanto é artifício ficamos mais livres e, talvez, mais próximos da felicidade» (Lisboa, Quetzal, 2018, pp. 21-22.). Não é custoso perceber que a prosa de Mahon configura esta maturidade literária de que nos fala o autor de Milagrário Pessoal.
Despojamento estilístico só alcançável na dicção de quem, qual joalheiro a aperfeiçoar filigrana, dispõe de um domínio magistral da linguagem e das cadências do estilo. Leia-se, a título de exemplo, esta esclarecedora passagem (e repare-se, já agora, na incrível atitude fleumática, melhor dizendo, alheada do protagonista perante a tragédia de que padece Alegria): «Era questão de tempo. Eu imaginava – ou sentia – que as mortes não iriam acabar naquelas três. Suicídio é como bocejo. Quando alguém começa, a tendência é se espalhar. Pode ser desumana a comparação, mas foi o que me ocorreu no momento, observação sem nenhum rigor científico. Não tardou para se confirmar minha teoria. À noite, por volta das dez horas, quando ainda todos estavam acordados, ouviu-se uma gritaria de um canto a outro de Alegria. Do alto da ponte, jogara-se Gentil Mattos e, do outro lado, da cidade, Carlos Bianchi cortara os pulsos na bandeira de casa. Naquele momento, eu não precisava ser comunicado de nada. Os gritos me chegaram à varanda onde tomava a terceira dose de whisky da garrafa que estava no final. Lamentei o fato de me esquecer de fazer o gelo. Ao virar o resto do líquido, vi no fundo do copo de cristal vários homens que entravam na minha casa pelo portão de ferro. Foram me pegar para o primeiro plantão do que, enfim, foi diagnosticado formalmente: epidemia» (pp. 59-60).
Na pluralidade de itinerários que neste romance se podem trilhar, a desafiarem a cada passo a perspicácia do leitor, não é ocioso prestar demorada atenção ao investimento alegórico do texto e, por extensão, à sátira civilizacional. Sátira especialmente visível nas críticas tecidas à ordem política e às relações burguesas. Assim, este notável romance atinge não raro, pode dizer-se, a condição documental. Através dele se expõe, com as suas hierarquias, toda uma estratificação sociocultural e respetivas sociabilidades conviviais. Daqui decorre uma representação válida, é de crer, para todas as pequenas, e esquecidas, povoações do interior desse território sem fim que é o Brasil. E nesta examinação do aparelho social em formato pequeno não é menor o lugar reservado ao rastreio das enfermidades do corpo político. Revelando acentuado pessimismo político, Mahon não se inibe, pois, de enfatizar a perfeita (e, deveras, chocante) inoperância do poder instituído, seja ele nacional ou local.
Se há uma lição a extrair de Alegria, essa lição poderá ser, entre outras possíveis, a de a clivagem entre a boa convivência democrática e a moldura autocrática se afigurar, na realidade, bem frágil. Sobretudo se o contexto for (e não é difícil imaginar cenários suscetíveis de o preencher: alterações climáticas ferozes, pandemias, hecatombes tecno-digitais, etc.) o de uma situação radical e incontrolável.
Quanto ao (surpreendente) final do livro, que resisto à tentação de desvendar, diria somente isto: é o final astuto de uma narrativa, digamos, de interrogação, na medida em que se suspende um sentido definitivo em favor de um final algo aberto e inconclusivo. Não é essa, ao fim e ao resto, a missão por excelência da (grande) literatura?
SINOPSE
O HOMEM BINÁRIO E OUTRAS MEMÓRIAS DA SENHORA BERTHA KOWALSKI – Romance. O programador Josef Platek, padecendo de uma doença terminal, une-se com outros dois especialistas em computação para tentar a imortalidade por meio da transmissão de todos os dados do cérebro para um software especial. O problema é saber se as pessoas serão as mesmas depois de ultrapassarem a barreira digital.
FORTUNA CRÍTICA - ANA LÚCIA RABECCHI
Auditório de Cáceres lotado com alunos e professores de literatura.
O MUNDO BINÁRIO DE EDUARDO MAHON
Profª. Drª Ana Lúcia G. S. Rabecchi
As histórias de Eduardo Mahon, além de serem nutridas pela experiência de leitura que reconhecemos num grande repertório, elas oferecem e tiram a ilusão de compreensão. O romance O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski é uma alegoria das atitudes que o homem toma, ou se entrega, diante da perspectiva da morte, daí a narrativa ter como conteúdo a busca incansável por aquilo que ele, até então, não podia comprar: a imortalidade. Naturalmente essa busca é permeada pela discussão do conceito de humanidade de “forma mais radical”, como diz o autor, que termina por nos levar a uma reflexão do que seja humano versus desumano e da vida versus a morte. Vejamos a reflexão da psiquiatra Justyna Klos:
Não é preciso nem mesmo estar num consultório médico, senhora Kowalski. Basta recorrer aos arquivos de história. Homens podem não ter humanidade alguma. O que chamamos de humanidade é, na verdade, uma construção tão rebuscada quanto fictícia. A humanidade, enfim, não é uma propriedade inata. E, se esse conjunto de atributos que apelidamos de humanidade não é partilhado por todos os seres humanos, é verdade que pode ser observado noutros seres, até mesmo nos virtuais. Basta não ter preconceito e levar a proposta do senhor Platek às últimas consequências (p.143, grifo meu).
É exatamente discutir esse “e se...” que o romance faz ao nos deixar sufocados não pela morte em si, mas pela clausura da vida num software, que pode encarnar também a metáfora dolorosa do mito de Prometeu Acorrentado. Essas reflexões justificam a boa trama de O homem binário, onde vida e morte são verso e reverso da mesma moeda. A fragilidade e finitude da vida na realidade realçam o medo e a angústia da morte.
A vontade de se perpetuar mesmo numa vida diferente faz com que a empresa Continuum Co alcance sucesso com sua fórmula de prolongar a vida e vender a felicidade ao homem através da visão de eternidade. A morte, então, perde o “caráter monstruoso” e passa a ser um estado de mudança de existência, uma migração deste lugar para outro como diz a epígrafe Apologia de Sócrates, com a qual o romance mantém diálogo, dentre outras obras.
Mahon, porém, vai além, banaliza a morte ao exaltar ironicamente a ciência e a tecnologia que conseguem guardar a personalidade, mas não abrandar seus medos, pois Josef Platek se ressente de ser um homem torturado ao “virar uma alma sem corpo, penando sem espaço e sem tempo”, o que a personagem diz ser uma condenação “não dormir, não acordar, não envelhecer e não morrer”, ou seja, uma cópia desumana do homem.
Em Alegria a questão da aparência e da realidade que permeiam toda boa ficção continua em pauta. Assim como Macondo em Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, Alegria é uma ilha da imaginação. A narrativa passa da criação ao apocalipse cumprindo um ciclo de vida e morte, onde esta mostra suas múltiplas faces. A cidade é vitimada por uma epidemia de suicídio em massa de peixes que desencadeia o medo, a angústia, a tristeza, o desespero, a solidão e, consequentemente, o suicídio dos homens, que vai se transformar em epidemia por impotência diante de um fato inexplicável, onde “a morte alcança até quem não havia nascido” (p.107).
Assim como A peste, de Albert Camus, que serve de epígrafe em Alegria, a iminência da morte relembra ao homem a sua pequenez diante da finitude e o faz querer agarrar com todas as forças à vida, que teme perder a qualquer momento. O desespero das pessoas é narrado por um dos médicos da cidade que tenta amenizar os males sem sucesso, restando-lhe apenas a solidariedade e a compaixão.
A morte neste romance de Mahon é recorrente e faz com que o narrador vá refletindo sobre a postura do homem perante o mundo e a si próprio. Com seu senso de humanidade e/ou desumanidade vive toda tragédia e reflete: “Há solidão em qualquer lugar, não é preciso buscá-la, com tanto afinco. Na ilha estive nessas condições sem buscar por elas” (p.160). A ilha, então, vem ser a clausura do homem abandonado à própria sorte.
Nessa contação de história, cujo final nos desestabiliza, valemo-nos de Garcia Márquez em O amor no tempo do cólera, para também afirmar a suspeita de que em Alegria “é a vida, mais que a morte, a que não tem limites”.
Profª. Drª Ana Lúcia G. S. Rabecchi
UNEMAT - Cáceres
DIVANIZE CARBONIERI
Narrativa distópica e conscientização em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski
MAHON, Eduardo. O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017.
O romance O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski (2017) de Eduardo Mahon, escritor carioca radicado em Cuiabá, é uma distopia futurista. Depois de uma grande guerra, o que sobrou das partes terrestres do planeta Terra foi dividido em continentes com nomes de constelações. A história se centra no Continente de Áries, no 43o ano da nova República, espécie de sociedade altamente controlada por intricados mecanismos de biopoder, que dividem a população entre os geneticamente aptos, com autorização para procriar, e os cidadãos novos sem tantos direitos. Aqueles que habitam os demais continentes em coletividades com menos regulações são chamados de selvagens.
A narrativa, conduzida por uma voz impessoal de terceira pessoa, não parece ter um único protagonista. Inúmeras sequências de fragmentos se interconectam, entrelaçando a história de diversos personagens, a maioria batizada com nomes originários do que é hoje o Leste Europeu. Josef Platek é um programador que tenta vencer a morte, criando a transferência de memórias pessoais para computadores. Ele é ajudado em sua empreitada por sua madrasta Bertha Kowalski, uma imigrante que aprendeu a sobreviver na ordem instituída e fazer o que é mais vantajoso, contrariando muitas vezes seus próprios afetos. Jan Zamoski é o advogado contratado para garantir o verniz de legalidade aos experimentos de Platek. Tamara Voik é a jovem e brilhante cientista encarregada de criar um algoritmo capaz de dar às memórias transferidas a singularidade dos seres humanos. E Magdalena Górecki é uma das funcionárias empregadas para conversar com os clientes da empresa de Platek que já foram transferidos e transformados em arquivos digitais. É em torno desse grupo, ladeado por outras figuras secundárias, que se desenrola a trama ficcional.
Com tantas fragmentações, era de se esperar que a ordem cronológica fosse quebrada, o que de fato ocorre. São três os principais tempos da narrativa: o início das pesquisas de Platek ainda em solo firme, o período em que ele e sua equipe têm que desenvolver seus trabalhos a bordo da Nau Continuum em alto-mar, tentando escapar das regras em torno do uso do sinal digital, e o momento em que, após terem concluído com êxito todas as etapas necessárias ao invento, desembarcam novamente no Continente e fundam uma companhia com o mesmo nome do navio. O efeito conseguido pela interposição constante de cenas com protagonistas e tempos diferentes é um certo atordoamento inicial nos leitores, que podem demorar um pouco para apreender o que se passa e qual é o todo da situação que está sendo narrada. Talvez seja algo semelhante ao que acontece com as pessoas que passam pela neuromigração, termo adotado pela Continuum Co. para o procedimento que realiza. Dessa forma, existe uma correspondência entre a técnica narrativa e o conteúdo do enredo, contribuindo para a coerência interna do romance.
A principal temática envolve a discussão a respeito dos limites entre vida e morte no contexto das novas tecnologias. Platek deseja evitar a mesma moléstia degenerativa que acometeu seu pai, uma demência devoradora de memórias e do controle de músculos e órgãos que os apurados métodos de diagnóstico já rastrearam em seu relatório médico. Portanto, o primeiro arquivo, nomeado de A01PLK, é aquele preenchido com suas próprias memórias, sendo que Platek “passava dezoito horas por dia com a mente plugada aos cabos que conduziam os impulsos elétricos ao biodisco. Para abastecer o sistema, ele se obrigava a produzir lembranças verdadeiras” (MAHON, 2017, p. 39). Contudo, apenas o registro das imagens que já existem na mente não tornaria o computador tão humano quanto a pessoa de carne e osso.
Tamara Voik é, então, a responsável por introduzir no software um modo operacional autônomo, algo que permite que o computador faça escolhas, não levando em conta a economicidade ou a eficiência, mas critérios pessoais, como as preferências de cada indivíduo. Depois de digitar os comandos para que o algoritmo da singularidade se integre ao sistema, a programadora estabelece com ele o seguinte diálogo: “Podemos saber o que está diferente? AGORA NÃO SOU MAIS A01PLK. VOCÊS ME CONHECEM. SOU JOSEPH PLATEK” (MAHON, 2017, p. 118). Para registrar a fala de todos os neuromigrados, é utilizada uma fonte diferente, exatamente como ocorre nesse trecho, marcando visualmente a diferença da voz metálica produzida pela máquina. A seguir, a transmissão completa de Platek para o software é realizada diante das câmeras e televisionada para todo o Continente. Seu corpo finalmente perece enquanto sua mente é transferida para o computador. O procedimento é considerado um sucesso pelos membros da equipe porque a figura holográfica que se projeta da tela se apresenta como Platek e responde às perguntas, levando em conta seu arsenal de experiências. Mas até que ponto se pode saber se o experimento foi realmente bem-sucedido? Como ter certeza absoluta de que o software é mesmo a mente da pessoa que antes vivia num corpo composto por células?
Bertha Kowalski, embora seja a sócia mais empenhada na manutenção da empresa, sente um mal-estar quase indisfarçável diante do aparelho: “Por isso, todas as vezes que saía da cabine 001 [na qual o software de Platek era projetado], parava ao lado da porta e, por alguns segundos, tomava fôlego suficiente para seguir adiante na ronda sem que a borda do olho fosse vazada por nenhuma lágrima” (MAHON, 2017, p. 75). Não demora, e o incômodo também é sentido por clientes e funcionários. A Continuum Co. é chamada de clube dos mortos. Seus contratantes, os neuromigrados, não podem deixar suas cabines e se submetem a um rígido protocolo, estando à mercê das atualizações (e decisões) dos diretores da companhia. Nesse sentido, mesmo que o software represente a continuação do organismo que cessou de existir, valeria a pena permanecer vivo num ambiente tão restrito e controlado? A autonomia inerente à vida humana não teria sido sacrificada em vão?
Na verdade, a sociedade fora da Continuum Co. também é rigidamente controlada, o que permite a afirmação de que há um paralelo entre o macrocosmo e o microcosmo da narrativa. Os que ainda estão em seus corpos também têm uma vida restringida por códigos e severas ordenações. Mas não parece haver uma conscientização a esse respeito. Ao contrário, todos os habitantes do Continente de Áries se esforçam por se integrar o máximo possível nas engrenagens do corpo social, mesmo que isso implique assumir atitudes extremamente penosas. Nisso se assemelham às suas contrapartes encerradas nas cabines da Continuum Co., que, tentando se desvencilhar da morte, acabam determinando, para si mesmos, um destino bem mais terrível. Talvez os selvagens dos outros continentes vivam de uma forma melhor, e o fato de não apresentarem uma genética considerada perfeita não impeça que sejam mais felizes do que os arianos.
Dessa forma, também se imiscui no livro a discussão a respeito da alteridade e das hierarquizações entre grupos humanos. É possível que o desenvolvimento das super tecnologias realmente conduza algumas sociedades a se julgarem superiores a outras. Existe amiúde uma articulação entre a tecnologia e a colonialidade do conhecimento, na medida em que o domínio de uma técnica implica frequentemente a dominação ou, pelo menos, a inferiorização de outras sociedades que não a conhecem. Mas essas narrativas distópicas questionam a pertinência desse modo de pensamento, já que um elevado avanço científico pode não trazer benefícios reais para as pessoas, servindo inclusive para limitar ainda mais as suas vidas.
O surpreendente, em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski, é que a conscientização começa a surgir justamente nos neuromigrados. São eles que passam logo a questionar a experiência que tornou possível a continuidade de suas vidas na forma de softwares. Platek, por exemplo, faz uma confissão a Magdalena, depois de se apaixonar por ela: “Não sou a mesma coisa de antes, garanto. Eu me lembro de correr pelo campo ainda muito novo, mas não sei como é correr, entende? […] Eu sou um espelho do que fui, uma cópia imperfeita, que nunca deveria ter existido” (MAHON, 2017, p. 190). Ele também demove Jan Zamoski e sua esposa de realizarem a migração de seu filho Adam, há anos em estado vegetativo, para uma máquina, convencendo-os de que seria uma condição ainda pior para o menino. Percebendo que sua existência atual é bastante insatisfatória, para dizer o mínimo, Platek, então, pede a Bertha que destrua o seu software, algo que o protocolo lhe garante. Porém, o título do livro indica de quem é a decisão final nesse romance. É a perspectiva pragmática de Bertha que acaba prevalecendo, são as suas memórias que realmente contam, imprimindo a perspectiva de alguém que fez de tudo para se adequar ao sistema e às suas maquinações.
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“Narrativa distópica e conscientização em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski” é uma resenha de Divanize Carbonieri sobre o romance de Eduardo Mahon. O texto foi originalmente publicado na Revista Sociopóetica, v. 2, n. 20, 2018 (http://revista.uepb.edu.br/index.php/REVISOCIOPOETICA/article/view/4355/2758).
JOSÉ CÂNDIDO
O Homem Binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski
José Cândido de Oliveira Martins
As revolucionárias transformações que as tecnologias da informação e da comunicação, incluindo a poderosa internet, e sobretudo no domínio específico da programação da Inteligência Artificial (IA), introduziram no mundo contemporâneo, mudaram radicalmente o nosso modo de comunicar, de trabalhar e até das nossas relações interpessoais. Um dos capítulos mais vanguardistas e que mais questões axiais levanta, desde logo de natureza ética, é justamente o da IA. Este tema a IA tem preocupado intensamente as mais diversas e influentes instituições a nível internacional, bem como reputados neurocientistas (António Damásio, v.g.). Além de imensas incertezas, as inumeráveis promessas desse mundo novo podem também desencadear uma terrível caixa de Pandora.
Ora, é justamente esta temática complexa que o escritor Eduardo Mahon aborda de forma cativante e sugestiva na sua narrativa ficcional, O Homem Binário, perfeitamente consciente de algumas das mais relevantes interrogações que se levantam a estes novos e preocupantes rumos da ciência actual, especialmente no capítulo de vanguarda da programação tecno-neurológica. Contrariando um estereótipo que olha a criação literária como algo supérfluo e desligado da realidade, quem ainda tem dúvida de que a literatura pode constituir uma das formas mais fecundas e reflexivas de pensar o mundo e o homem contemporâneo? Todos nós já alguma vez meditamos sobre o inevitável confronto entre a humanidade e a tecnologia, sobretudo acerca das consequências imprevisíveis de algumas tendências da pesquisa actual.
Com este propósito de enorme actualidade, o escritor Eduardo Mahon cria um universo romanesco que potencia o pensamento sobre tão relevante temática. O título escolhido representa bem a essência da linguagem informática – “coleção de números monotonia que variam entre 0 e 1” – , ao mesmo tempo que já remete para a dualidade da existência alcançada através da IA, após a morte física. Não poderiam faltar ecos intertextuais de clássicos do pensamento ocidental, como Platão (Apologia de Sócrates), na epígrafe inicial. A questão nuclear que esta narrativa encena diante do leitor pode ser assim enunciada – após a morte física, e com o auxílio dos enormes avanços da IA, pode o ser humano almejar uma outra existência?
Consoante a sua enciclopédia cultural e literária, o leitor de O Homem Binário pode convocar outras criações diversas que, no mundo ocidental, se foram debruçando sobre os desafios das novas tecnologias, desde logo com duas narrativas clássicas – de Aldoux Huxley, Admirável Mundo Novo; ou de George Orwell e o memorável romance 1984 – entre outras distopias literárias que a nossa memória conserva, notáveis pela sua capacidade profética. No cinema, entre imensos filmes equacionaram esta temática, o leitor também pode evocar Transcendence: a nova inteligência (de 2014, realizado por Wally Pfister), protagonizado por Johnny Depp. Após a morte de um cientista notável, a sua esposa integra o seu cérebro num super computador que ele concebera, sendo assim possível os dois comunicarem post mortem. Porém, em lugar de criar uma IA, o cientista criara mesmo uma inteligência alternativa, com um alcance tirânico e inimaginável.
Há, aliás, na narrativa de Eduardo Mahon referências simbólicas a vários clássicos da literatura e do cinema. O autor e os seus leitores não desconhecem esta tradição criativa e reflexiva; e em O Homem Binário estamos num tempo futuro da nova República Continental. E o inventor de um revolucionário sistema na poderosa Continuum Co., Josef Platek (cientista de génio ou genocida?) propunha-se inaugurar uma nova e radical concepção da história da humanidade. Como? Prolongando a vida humana para além da morte física, conquistando assim um dos mais velhos sonhos do ser humano – a imortalidade.
Pela primeira vez na história mundial, quando se atingir a possibilidade de o computador pensar sozinho, anuncia-se a possibilidade prometaica de vencer a morte, através de sofisticadíssimos processos de neuromigração definitiva para uma máquina, no pressuposto de que a eventual réplica da memória equivale a uma “vida” humana, uma pessoa integral, assim prolongada para sempre. Nesse novo patamar da evolução humana, a partir da neuro-engenharia e da nanotecnologia, ergue-se a utopia científica da resolução de todos os problemas da humanidade, da medicina à ciber-segurança, em que a IA se estenderia a todas as áreas da vida humana.
Seria assim possível para a ciência criar um cérebro artificial, autossuficiente e com consciência de si, com conhecimentos ilimitados e até capaz de expressão emocional. Por outras palavras, máquinas supremamente inteligentes vencerão a morte, podem curar o ser humano em qualquer doença e salvar o próprio planeta. Neste visão (exequível ou utópica?) é possível o ser humano conservar-se “vivo” para sempre, face aos avanços inimagináveis da ciência e da programação informática. Para os defensores deste sistema, era “possível traduzir o ser humano para o código binário”. Porém, não devemos ceder à tentação ingénua da paráfrase da narrativa, mas apenas desvendar os rumos da história narrada, mas tão só apontar alguns aspectos estruturantes deste universo diegético, enunciando o cerne desta criação ficcional.
A inteligência desta escrita convida o leitor a ter uma postura filosófica, formulando perguntas essenciais. Neste contexto de ruptura, entre outras magnas questões, destacavam-se algumas, absolutamente cruciais, não para todos, apenas para alguns, mais ponderados ou mais cépticos perante esta prometaica revolução: as pessoas têm mesmo de morrer? Como lidar com a migração da memória individual e os seus processos de construção e de identidade? Seria mesmo possível, através de um software, capturar o abismo volátil da memória, da consciência ou do espírito de uma pessoa, como se fosse um simples arquivo? Tudo poderia ser redutível a um algoritmo? Ao mesmo tempo, como evitar vírus e falhas de programação em todo esse processo? Poderiam fazer-se cópias iguais da mesma a “vida”? Em último caso, quem tem o poder de controlar e de desativar o sistema e o seu software?
Ao mesmo tempo, pode-se carregar para uma máquina a consciência humana, sendo essa IA capaz de distinguir entre o Bem e o Mal? Poderia essa nova “vida” ser sensível à subtileza das artes? Como seriam essas experiências autorizadas para cada ser humano? Onde se encontraria neste processo a personalidade e a própria alma humana, o “chip de Deus”, como aqui é designado? Poderia alguma vez olhar-se para esse poderosíssimo algoritmo como a chamada “partícula de Deus”? Afinal, como migrar uma pessoa para o meio virtual? Pode existir um diálogo inteligente e, mais ainda, uma relação afectiva entre um ser humano (senhora Kowalski e a jovem Madalena, respectivamente) e um “ser” totalmente online (J. Platek), através da sua holograma? Em suma, seria este o futuro da humanidade, em que a pessoa é uma mera coleção de dados, um arquivo capturável?
É justamente este o núcleo fascinante da história de O Homem Binário, sobre uma das temáticas mais complexas e actuais do nosso tempo. É preciso ler este livro para reflectir sobre a possibilidade de o ser humano poder (ou não) ser traduzível para um código binário digital. Perante a finitude da existência, sempre se manifestou o desejo humano de auto-preservação ou de aspiração a uma vida eterna. Porém, nessa senda erguem-se poderosos argumentos ético-morais: pode um software captar a essência da humanidade?
Inquestionavelmente, com todas as suas congeniais imperfeições, a humanidade não pode ser comparável à artificial perfeição utópica da mais avançada tecnologia. Por tudo o que se deixa sugerido, se aceitar o desafio, o leitor contemporâneo tem sobejas razões para ler com gosto e proveito intelectual esta bem articulada e desafiante narrativa de Eduardo Mahon.
José Cândido de Oliveira Martins
(Universidade Católica Portuguesa)
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