LIVROS PUBLICADOS
SINOPSE
A MEDUSA DE AÇO – Os poemas captam purezas e impurezas da urbe, onde o passado é irrelevante e o futuro pode muito bem ser o imediato desdobramento do presente que se torna polimorfo, movediço, inseguro e, ao mesmo tempo, incomumente encantador.
FORTUNA CRÍTICA - OLGA CASTRILLON-MENDES
O AÇO QUE NOS HABITA
Olga Maria Castrillon-Mendes
“O poeta é semeador de cidade” (p. 47)
Costumo falar sobre a produção narrativa de Eduardo Mahon. Percorri todos os seus contos e romances, extraindo deles as condições de impotência e o quanto de humano resta em cada uma de suas personagens. Costumamos ver o nosso destino social e histórico na literatura, na poesia, na música e em outras artes iluminadoras do fenômeno humano. Na fronteira entre o lúdico e o sério, mas quase sempre jocosamente, residem as estapafúrdias situações da vida (e da morte) tão ao sabor das reflexões do autor.
Os poemas não fogem desse compasso rítmico de valsar ao som de bandolins ou sambar com vilancetes que mexem com a sensibilidade do leitor. Em gêneros distintos, mas não distantes, Mahon saboreia a tradição literária, que domina com passeios, tanto pelos clássicos europeus, entranhados na sua formação, quanto pelas fontes da modernidade literária. O resultado dessa simbiose é certa dimensão dos sentidos que adquirem os “rostos” da sociedade, misto de racionalidade e, paradoxalmente, irracionalidade. Entre o excesso e a falta a humanidade se expõe aos riscos e à autodestruição. Sem a noção de equilíbrio a cidade está marcada por toda sorte de infortúnios e desagregação. Nesse espaço, o mito continua a cumprir os desígnios do Olimpo, desta feita o homem como lobo do homem, como costumamos compreender o fenômeno social.
Depois das aventuras poéticas de livros feitos em linguagem imagética, como a trilogia Palavrazia, Meia palavra vasta e Palavra de amolar, todos de 2015, além da dupla de bolso Um certo cansaço do mundo e Quem quer ser assim sem querer? de 2017, Mahon mergulha no universo urbano sem receios de romper com os estigmas que envolvem a concretude das esquinas de um mundo de cimento e aço, representação do contemporâneo, em A medusa de aço (2021). É nas dobras do tecido esgarçado da urbs que a poesia brota conduzida por olhares em trânsito: da tradição à modernidade: “se fosse dono dessa terra/mandaria arrancar todo broto verde/e no lugar do horizonte modesto/plantaria prédios galerias cidades inteiras (p. 47).
Com Apollinaire e Baudelaire, nas duas primeiras partes em que se divide o livro, a tradição se mede pelo mito grego da medusa entre os silenciosos segmentos do tempo. O “silêncio abortado” da beleza e da sedução “solidamente convicta da sua teimosa ontologia de pedra” (p. 18). É o fado da medusa a fazer de tudo, pedra. No enleio poético, “prefiro viver sujo de asfalto/longe dos mosquitos/dos mugidos das fogueiras/e do cheiro desse estrume nostálgico” (p. 39), a medusa seduz para consumir os sedimentos do presente: “somos os fósseis de nós mesmos” (p. 20).
De Apollinaire, o poeta apreende o vazio que está fora da cidade; de Baudelaire, o fascínio da cidade que ora hipnotiza, ora escraviza. Sua nudez pétrea está fadada a transformar gentes em aço: “Vem cimento amado/apaga essa modorra da minha urbe desalmada” (p. 42).
Na última parte, o dueto se faz entre sons que brotam das ruas em forma de “rodas vivas”. O que antes era conduzido pelo mito, hoje se rodeia de crashes trazidos por vozes musicadas. A tragédia tem som das onomatopeias e por quem “ouve mas não vê”, de forma a ter a roda viva “carregando tudo pra lá”. A imagem não se prende ao espelho de ação retroflexa que petrifica a medusa, mas o tempo é o senhor, que apesar de tão bonito, não varre a inocência bucólica e o tempo presente. E tudo se transforma em absurdas contradições de um antifuturo que espreita dogmas petrificados. O que esperar de vidas anciãs em cidades formigantes com corpos estendidos no chão nas esquinas de concreto armado?!
A resposta, talvez, esteja no encantamento do mito que atravessa os tempos. Desde sua tomada como explicação para as coisas inexplicáveis, até hoje, quando sua carência deixa a humanidade sem rumos, o mito exerce o poder de falar. A medusa de aço é a confluência temporal em que podem emergir os sentidos da vida. O mito realiza o retorno no ciclo universal numa ameaçadora imagem do que aniquila tudo o que produz. No entrecruzar do mito com a história reside o ritual das variadas representações do tempo e do jogo poético das descobertas. É o grito silencioso visível no “chiaroscuro” dos contrastes entre luzes e sombras representados nas obras de Caravaggio. Pelo olhar do artista barroco as serpentes contorcionistas na cabeça da medusa são as vertentes da tragédia. Vistos hoje, traduzem a experiência por mecanismos linguísticos que constroem a realidade sobre si mesmos, subvertendo modelos realistas.
Em tempos sombrios, ao ser habitado pelo aço é possível, pela força da redundância, vislumbrar uma humanidade mais humana?!
Eduardo Mahon não dá respostas; pelo contrário, insiste na capacidade de serpentear a cabeça do leitor para também ele transformar paraíso em sertão; pedra em aço; tempo em nadas, “cancelando o amanhã para que a espera desencarne ainda hoje” (p. 32). Decepar a cabeça da medusa é o ato simbólico de engendrar outras vidas que habitam em cada um de nós.
Tarde em Cáceres, 21/10/2021
SINOPSE
GALILEU DANÇOU POR MUITO MENOS – É conto ou novela? O livro Galileu dançou por muito menos é o 2º da coleção Contos Estranhos. O escritor Eduardo Mahon nos apresenta a história de Adalberto, um carioca preso no cotidiano frenético de São Paulo. Tudo começa com o problema no espelho veneziano, herança da mãe do protagonista. A partir daí, Adalberto terá uma relação tão desafiadora quanto insólita com a própria imagem. Quem sairá vencedor?
MARTA COCCO
DIANTE DO ESPELHO, O QUE HAVERÍAMOS DE REFUTAR?
(Marta Helena Cocco)
MARTA COCCO é professora universitária, escritora e poeta (/RS). Mestre em Estudos da Linguagem (UFMT) e Doutora em Letras e Linguística (UFG) e Professora de Literaturas da Língua Portuguesa na Universidade do Estado de Mato Grosso, campus de Tangará da Serra. Em 2014, encontramo-la participando de grupos de pesquisa Cultura, Política e Sociedade (Unemat/CNPq) e Literatura infanto-juvenil: poesia e prosa (Unemat/CNPq). Nesse período também participava de projeto de extensão Poesia Corpo e Cordas, além de coordenar um subprojeto do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência. Escreveu os livros: Divisas (1991), Partido (1997), Meios (2001), O ensino da literatura produzida em Mato Grosso: regionalismo e identidades (2006), Sete Dias (2007), Sábado ou Cantos para um dia só (2011), Lé e o Elefante de Lata (2013), Doce de Formiga (2014) e Meu corpo é uma fabricazinha (2020). Também publicou vários artigos em revistas científicas sobre obras de autores da Literatura produzida em Mato Grosso. Em 31 de outubro de 2014, passou a ocupar a Cadeira nº 18, da AML.
Galileu dançou por muito menos é dos cinco livros da coleção “Contos Estranhos”, de Eduardo Mahon. O título suscita expectativas, uma vez que o nome Galileu evoca nossa memória acerca do cientista famoso que se opôs ao geocentrismo de Ptolomeu, mas teve de refutar sua teoria para não morrer na fogueira medieval. Quando iniciamos a leitura, entretanto, essa expectativa fica suspensa, pois o personagem principal da trama chama-se Adalberto e não há notícias, nas primeiras páginas, de nenhum Galileu.
A história é contada em terceira pessoa, por um narrador onisciente que focaliza seu ponto de vista predominantemente sobre Adalberto, um sujeito metódico que se muda do Rio de Janeiro para São Paulo, ao casar com Silvinha, e passa a trabalhar numa seguradora com o sogro. Está no trânsito com a esposa, quando esta recebe o telefonema da empregada contando que quebrou o espelho veneziano, herança da mãe dele. Esse é o motivo complicador da trama, num primeiro plano.
Desse momento até a chegada em casa, o narrador onisciente, em terceira pessoa, nos dá a conhecer a rotina que permeia a vida do personagem, pressionado pelas exigências burguesas de consumo da família, pelas exigências de alcance de metas no trabalho, pelas exigências, enfim, da vida contemporânea. Pelo narrador, ouve-se, de modo prevalente, a voz de Adalberto. Essas duas instâncias, em alguns trechos, parecem misturadas, insinuando uma situação assemelhada à de focalização interna, daquelas em que um narrador de terceira pessoa possa ser traduzido por um de primeira, mesmo nos momentos em que se refira a outros personagens como a filha Maria Clara, por exemplo, em que o olhar de Adalberto empresta coloração ao discurso do narrador: “O fato é que Maria Clara amarrou Adalberto de uma forma que ele não imaginava. Nasceu mirradinha[...] Parecia que tinha preguiça de viver.”
Se não nos apoiássemos no imenso arsenal teórico já produzido pela teoria da narrativa no Ocidente que nos possibilita auferir a onisciência, nos arriscaríamos a dizer que Mahon, escritor hábil em recursos expressivos da língua como o humor e a ironia, propositalmente ou não, cria um narrador ambíguo, espécie de ventríloquo do personagem, que se apresenta em terceira pessoa, mas é ele mesmo, o personagem, falando de si como se fosse outro e dos outros como se, em tom de julgamento, estando a par de alguns fatos, pudesse compreender diante de si – do espelho - o que conspira para a sucessão dos fatos na história, com exceção do desfecho, em que o narrador definitivamente toma as rédeas da situação sem qualquer interferência do personagem.
A primeira parte do conto se encerra com a empregada, nervosa, diante de Adalberto que verificara que o espelho estava intacto. Nesse ponto, estamos, senão diante de um expediente fantástico, no mínimo, muito estranho, e nos encaminhamos para a segunda parte do conto:
Quebrou sim, doutor Adalberto!, Ficou louca, mulher?, O espelho está perfeito, acabei de olhar. [...] E por acaso o senhor viu-se refletido? [...] Voltou ao quarto, enquanto o nervosismo de Rose diluía-se no fundo da caneca que tremia na mão direita. Ao posicionar-se diante do espelho veneziano, veio o choque. Hão havia nada além de uma superfície prateada, nem sinal do homem gordo que ele havia se tornado. [...] Não falei? O espelho está quebrado, doutor Adalberto, se não reflete a sua cara, é sinal que não funciona mais. (MAHON, 2021, p. 27)
Na segunda parte, enfurecido com a avaria no espelho, Adalberto dispensa a empregada, convence a mulher e a filha a passarem uma semana no Guarujá e fica sozinho no apartamento.
Acuado no quarto, em tom de lamento, Adalberto revisa sua vida, a saudade do futevôlei e da feijoada do Rio em contraponto com o presente de São Paulo: “é mesmo o túmulo do samba. Não consigo pescar um pé de porco, acredita? O povo daqui gosta mesmo é de pizza” (p. 46), diz à mãe num telefonema, seguido de inúmeras lamentações e da sentença do narrador: “Adalberto, cartesiano como poucos, não se acostumava. Nem com a situação do espelho, nem com o casamento, nem com o cimento paulistano que cobriu os olhos coloridos do carioca” (p.48). Como leitores, entretanto, ficamos intrigados: se o sujeito é cartesiano, virginiano, metódico, por que não se adapta à rotina paulistana, afinal, o esperado seria justamente o gosto pela vida ordenada?! Por que sente tanta falta do lazer carioca? Parece ambivalente essa lamentação e a própria descrição que esse narrador faz do personagem, até quando reclama das ações da empregada, tão diversas de um costume aristocratizado que ele aprendera não se sabe com quem, e que também não combina com o saudosismo descontraído do Rio de Janeiro que lhe arrebata muitas vezes:
[...] – comentava com a mãe pelo telefone. Abriu mão de tudo, do futevôlei na praia de Ipanema, do pingado na padaria da esquina onde pendurava a conta, da feijoada do Bola, da vida boêmia com os transviados da Lapa e do que mais gostava: da corrida de cavalos no Jockey Club.[...](MAHON, 2021, p.14)
Isso de, como leitores, estranharmos as contradições do personagem, talvez seja um dos motes intencionais da narrativa, afinal, a contradição é inerente à natureza humana e ao fim e ao cabo, quando lemos a experiência do outro – personagem – nada mais fazemos do que interpretar a nossa condição humana.
Seguindo adiante, no outro dia, Adalberto amanheceu com um espelho falante ao seu lado. A partir daí, o que poderia ser apenas estranho passa definitivamente para o território do fantástico. O espelho diz a Adalberto o que ele quer/precisa ouvir.
O espelho como atualização do mito de Narciso é um motivo muito frequente na literatura ocidental. Um dos casos mais conhecidos é o do romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde. Na contracapa do livro de Mahon, há uma referência a esse livro. O personagem Dorian, de beleza ímpar, faz um pedido e é atendido: não envelhece, ao passo que o retrato, feito por exímio pintor, sim. Desde o mito grego de Narciso e até mesmo em outras narrativas míticas, como por exemplo no gênesis bíblico, a assunção da individualidade, a assunção do ego/consciência é seguida de uma queda, de uma interdição, de uma maldição.
Poderíamos fazer uma investigação da relação que o personagem Adalberto possui com o objeto espelho, respaldada na psicanálise freudiana, a partir de algumas pistas que a narrativa nos dá sobre a relação do personagem com a mãe, por exemplo: “Assim que se mudou para São Paulo, a mãe insistiu que o espelho fosse junto. “Leva para a nova casa, meu filho. Não, Senhora!, Fique com ele [...] Mas e a Senhora?[...] Eu adoro esse espelho e é por isso que eu o quero com você”. (p. 35). A influência/ presença da mãe aparece em outros momentos e parece indicar uma transição do narcisismo primário para o secundário não muito bem resolvida. Segundo Freud (1974), as realizações pessoais têm por base o ego que foi forjado a partir das identificações parentais e que permitiu o surgimento do narcisismo secundário em substituição ao período do narcisismo primário, quando a criança era o seu próprio ideal. Daí em diante, o ego idealizado passará a ser objeto dos investimentos libidinais que nortearão o desenvolvimento e fortalecimento do ego. Por que Adalberto não consegue se desvencilhar das opiniões da mãe e dos desejos de consumo da esposa? Ou, ao contrário, por que manifesta desejo de se desvencilhar delas? Por que se sente oprimido diante da nova vida em São Paulo? No limite, uma vez que apontamos uma desconfiança sobre a possibilidade de a visão do narrador estar contaminada pela visão da personagem, seria sua esposa tão somente fútil e consumista? Não há outras informações sobre ela no conto. E há a hipótese de o personagem ainda estar centrado na referência do eu narcísico da infância e juventude, a ponto de não querer assumir as responsabilidades de uma vida de adulto.
É possível que Adalberto projete sua felicidade no passado da vida de solteiro no Rio de Janeiro, quando podia atender aos seus desejos pessoais, portanto, ainda centrado numa individualidade narcísica, conforme pode-se inferir dos estudos freudianos. Para não nos limitarmos ao campo subjetivo e às influências do passado, no presente, e na relação com a personagem Silvinha, podemos considerar, também, outra abordagem teórica, a que leva em conta o narcisismo no espectro social, imbricado neste mundo contemporâneo.
Nesse sentido, é preciso pensar como, a partir da modernidade, os personagens principais das narrativas se modificaram e, de heróis notáveis que triunfavam depois de uma jornada de obstáculos, passaram a representar o oposto, sujeitos comuns, que fracassam diante dos problemas que os poderes individuais não conseguem transpor, mesmo estando deles conscientes:
Foi logo depois das núpcias que tomaram o cruel financiamento de juros exorbitantes, muito mais para agiotagem.[...]passou a enfrentar o severo trânsito para ir e voltar todos os dias, sem direito a sentir a brisa da praia e ver as ondas rebentando na areia.[...] Sentada no banco do passageiro, Silvinha sentia pena por não estrear o chapéu de palha comprado especialmente para esnobar as amigas do Guarujá. Isso é roubo, comentou o marido ao ver a fatura do cartão de crédito [...] item a item, debatiam os gastos mensais que consumiam os gastos e o salário do comedido virginiano. [...] (MAHON, 2021, p.20)
Nesta hipermodernidade, conforme a define o pensador Giles Lipovetsky (2009), com o agravamento das pressões de produtividade e sucesso, temos uma proliferação de narrativas que expõem o oposto do triunfo, a decadência. Aliás, uma mirada panorâmica no conjunto de livros já publicados por Mahon, aponta a decadência da humanidade como seu tema obsediante.
O ser humano, diante do espelho, confronta-se com as suas frustrações e, para além da degradação do corpo físico (...despiu-se do pijama e foi à frente do espelho ver suas costelas que despontavam... p. 60) vê/ouve a decadência da vontade de potência (...És um palerma completo!, [...]A mulher te consome, não vês? Gasta o que tens, suga tua alma. Para quê? Responda a ti mesmo... p.52). Há outros momentos em que o espelho, denominado pelo narrador de Adalberto II, para evitar a confusão das vozes, desfere xingamentos contra a empregada que vai embora de vez, contra o sogro que bateu na porta à mando da esposa que tentou ligar e ficou preocupada, contra o consertador de ar condicionado. O segundo diz, sem filtros, o que o primeiro jamais se encorajaria a dizer.
Voltando à caracterização da hipermodernidade segundo Lipovetsky, seu signo é a temporalidade do presente, a efemeridade e o gosto pela novidade. O novo narciso quer o gozo próprio, com liberdade e autonomia. Nesse ponto, talvez, haja uma coincidência com o narcisismo primário descrito por Freud, considerando que o eu, no momento inaugural da vida, é indiferente ao mundo externo.
Depois de dias trancafiado no quarto, sem comer, Adalberto desmaia de sono e sonha com seu passado de praia e futevôlei, com a volta pra casa com dois quindins para tomar café com a mãe, até o momento em que se depara com o objeto de estimação na sala. E o que vê é o fim do sonho. O conto poderia terminar aí, mas há uma outra seção chamada de desfecho que poderia se chamar epílogo. É quando sabemos a quem é atribuído o nome de Galileu e porquê. E então cogitamos que o título da narrativa não é uma mera frase pinçada do discurso do personagem Adalberto, numa de suas elucubrações mentais. Como disse Gerard Genette (1979), “a narrativa diz sempre menos do que aquilo que sabe, mas faz muitas vezes saber mais do que aquilo que diz.” (p.196). Diz-se que Galileu teve de refutar sua teoria para continuar vivo e, vivo, desenvolvê-la melhor. Tratava-se, contudo, de estudo científico. De modo simbólico, a obra ficcional ora apresentada nos põe diante do espelho para estudo subjetivo: o que devemos refutar para continuarmos vivos ou, no limite, revivermos?
Referências:
FREUD, S. [1914]. Sobre o narcisismo: uma introdução. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV, p. 85-119.
GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Ensaio de método. Trad. de Fernando Cabral Martins. Lisboa-Portugal: Arcádia, 1979.
LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SINOPSE
INCLASSIFICÁVEIS – No 3º livro da coleção Contos Estranhos, o escritor Eduardo Mahon recupera toda a magia do circo. Na cidade de Cartesinos, quente e isolada, um circo de estranhas personagens chega para mudar o cotidiano dos céticos habitantes. O centro do enredo provoca o leitor a refletir sobre a importância da arte na vida humana, a despeito da racionalidade que pode ser prejudicial, se destruir o sonho, a magia e a sensibilidade.
MARLI WALKER
INCLASSIFICÁVEIS OU CARTESINOS DE BETO PRAJÁ
(Marli Walker)
A leitura do conto “Inclassificáveis”, de Eduardo Mahon, conduziu-me a antigas reflexões que reavivaram na memória o extraordinário texto “O direito à literatura”, do mestre Antônio Candido, ao qual me reporto para pensar a arte, de modo geral, e a literatura, de maneira específica. Cândido afirmou que “a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual”.
O conto me reportou a essa reflexão em função de alguns aspectos, que apontarei a seguir, pois é no correr das páginas das duas partes, cada uma com dez capítulos curtos, e no desfecho do conto que a afirmação de Candido se consolida mais uma vez. Não é possível manter nossa humanidade sem a arte.
O espaço, pequeno vilarejo onde se dá a epifania coletiva, traz no nome, Cartesinos, uma possível relação com o racionalismo cartesiano, de Descartes, o que imediatamente chama a atenção do leitor. Funciona mesmo como um alerta, despertar da razão logo no início do texto, pois não é um nome comum para uma corruptela no meio do sertão árido e pobre. A narrativa se encarrega de confirmar essa suspeita sob os ângulos filosófico, estrutural e temático. Mas eis que o pacato vilarejo vive uma reviravolta inimaginável que só ocorre em função da chegada do fantástico circo e seus tipos esquisitíssimos (inclassificáveis!), que parecem transitar entre o real e o irreal. Algumas descrições chegam mesmo a provocar certo desconforto, como é o caso das gêmeas de três pernas ou do homem que lia almas com um olho brilhante cravado na palma da mão.
Beto Prajá é a personagem que funciona como o elo entre a arte/emoção e a razão, pois é a partir dele que tudo se inicia e a partir de então a vila jamais será a mesma. Todos os demais inclassificáveis, dos tipos clichês, que em nada chocam, até as mais estranhas criaturas, sejam artistas ou animais do fantástico circo ou moradores da até então pacata Cartesinos, movimentam-se na trama entre o desejo de ceder à emoção, entregar-se ou resistir a ela. É Beto Prajá, o mesmo menino que primeiro avista o circo, que também protagoniza o fecho da narrativa e instaura uma nova era a partir do “extraordinário ovo de dragão da amazônia mato-grossense”.
Mahon traz um narrador astuto que perfila tipos eruditos e populares, reais ou irreais, entrecruzando as linhas filosóficas que conduzem a trama. O leitor será levado a encarar o caos e se reorganizar, a celebrar a alegria, o encantamento e ação transformadora da arte. Afinal, o que somos sem esta instância reparadora que nos reconcilia com o divino mais profundo? A propósito e em bom tempo, o que teria sido de nós no decorrer deste ano que passou e o que será de nós se daqui por diante não continuarmos contando com a arte, este alento, este bem que nos centra, conforta, redime e enleva? Basta de Cartesinos neste mundo duro, triste e enlutado que enfrentamos. Bendita arte que nos salva do mundo, de nós mesmos ou de ambos.
*** MARLI WALKER nasceu em Santa Catarina, de onde saiu aos dezoito anos para o sertão de Mato Grosso, região em que viveu por mais de vinte anos. Hoje reside em Cuiabá, onde escreve e leciona no Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). A autora publicou os livros de poemas Pó de serra (2006/2017); Águas de encantação (2009), selecionado pelo edital da prefeitura de Sinop; Apesar do amor (2016), contemplado pelo edital do MEC para o PNLD/2018 e pela Prefeitura de São Paulo (2019), Jardim de ossos, premiado em 2020 pelo edital da Biblioteca Estevão de Mendonça – MT e Coração Madeira (2020).
SINOPSE
O VIRUS DO IPIRANGA – Os contos de Eduardo Mahon estão ambientados no bairro do Ipiranga, em São Paulo, durante a pandemia do Covid-19. As situações inusitadas, os equívocos da percepção cotidiana e o realismo mágico são a tônica do 4º livro da coleção Contos Estranhos, lançado pela Carlini e Caniato Editorial. O último conto, intitulado Faxina Completa, oferece ao leitor uma cruel reflexão sobre os papeis sociais no contemporâneo.
HELVIO MORAES
O ESTRANHO VÍRUS DE EDUARDO MAHON
(Helvio Moraes)
O ficcionista e crítico literário Eduardo Mahon lançará, pela editora Carlini & Caniato, os cinco títulos que compõem a coleção Contos Estranhos: os contos mais extensos "Galileu Dançou por Muito Menos", "Inclassificáveis" e "Paraíso em Fuga", uma antologia de contos publicados anteriormente, sob o título de "Resumo da Ópera", e o livro de contos curtos "O Vírus do Ipiranga", objeto desta resenha. Em fase de incessante produção literária, o autor tem se mostrado cada vez mais seguro no domínio das técnicas da narrativa breve. Se os contos de "Resumo da Ópera" arrebatam o leitor pela riqueza metafórica das imagens de seu realismo mágico e pelos desfechos inusitados, as narrativas de "O Vírus do Ipiranga" transitam entre este mesmo realismo e a crítica de costumes, sem a veemência (ou o dogmatismo, se quisermos) de uma vertente nova da literatura engajada. O narrador de Mahon (pois parece que há uma única voz narrativa que observa e registra as várias situações vividas num mesmo espaço) mantém uma impassível distância daquilo que relata, elemento necessário à sátira, assim como o tom coloquial e despojado, objetivando, contudo, um efeito que choca ou surpreende.
Salvo engano, a pandemia de COVID-19 teve um impacto mais evidente – no sentido de provocar reflexões que culminem em criações artísticas – no campo das artes plásticas e visuais, assim como na música. Talvez a prosa literária demore um pouco mais a reagir inventivamente ao novo estado de coisas advindo da experiência de isolamento social. Mahon é um dos poucos autores a nos fornecer, até o momento, um mosaico de situações imaginadas a partir deste contexto. Quinze narrativas são apresentadas, tendo como espaço comum o bairro do Ipiranga. Aliás, “o vírus do Ipiranga” funciona como uma espécie de corruptela da primeira parte do verso que abre o Hino Nacional Brasileiro, já incorporada à cultura popular, mas que, no livro, prepara o leitor, logo de início, para o tom satírico que predomina nas narrativas, uma possível sugestão de que alguma coisa esteja contaminando, corroendo a aparente solidez daquela ordem instituída ‘pelo brado retumbante de um povo heroico’.
A longa tradição literária que relaciona peste e literatura tem possivelmente como um de seus pontos culminantes o "Decameron" de Giovanni Boccaccio, mas remonta a períodos anteriores ao autor italiano. De todo modo, tal relação frequentemente propicia o contraste entre concepções de mundo diversas ou o desmascaramento de determinadas práticas sociais, este também fundamentado sobre o contraste entre aparência versus realidade. Em Boccaccio, a ameaça da peste ajuda a compor a moldura narrativa, como o evento que fustiga os(as) jovens aristocratas a procurarem uma nova forma de convívio social, num espaço que se situa acima da cidade que agoniza. Nesta nova forma de vida, que resiste e supera a morte que assola a Florença medieval e que parece prenunciar o esplendor renascentista, são inseridas as célebres cem novelas, em que o humor prevalece. Como toda grande obra, o "Decameron" possibilita várias leituras. Porém, parece-me evidente o contraste entre um mundo que morre (os valores e costumes que lhe dão base) e outro mundo que dele renasce. Ao longo dos últimos séculos, outros autores se defrontaram com o tema de diferentes maneiras, o que não é possível ilustrar aqui. Contudo, cremos que, em todos eles, a ideia de contraste está presente.
Em Mahon, o contexto pandêmico serve como pano de fundo dos contos e, a partir dele, os modos de ser e as convenções sociais da pequena classe média urbana brasileira passam pelo escrutínio impiedoso do narrador. Uma das ironias do livro reside no fato de as personagens, no momento em que se veem obrigadas a usar máscaras de prevenção contra a doença, acabarem sendo elas mesmas, assim como suas relações sociais e afetivas, desmascaradas, como acontece justamente no conto “Máscaras”, em que, num supermercado, a esposa perde-se de seu marido sem saber, confunde-o com outro mascarado e com ele vai para casa: “Chegaram finalmente. Subiram o elevador, ambos de máscara, regras da autoridade condominial. Ele mirava o chão enquanto ela apertou o botão do 6º andar. Entraram no apartamento e, somente depois de retirarem as máscaras do rosto, perceberam que não eram quem esperavam que fossem”.
Em “Boa Noite”, temos o caso do motorista de ônibus que, num gesto de “patriotismo contagioso” - sinal de que a praga que se alastra também tem uma ressonância política –, como forma de contestar e infringir as medidas preventivas e os decretos oficiais da quarentena, “usou uma camiseta da seleção brasileira e fez questão de tirar a máscara e saudar os passageiros, sublinhando que todos eram essenciais para o país”.
Há também o caso em que tirar a máscara, ou “enfiá-la no bolso do short” para dar início a uma caminhada, possibilita uma reflexão sobre a vida, dando lugar a uma narrativa de cunho mais existencial, como em “As Voltas do Tempo”, em que a personagem consegue ver-se desde seu passado mais remoto à sua velhice, podendo, no fim, ‘acertar as contas’ com o que vive e o que é no presente. Neste caso, assim como em outros contos, como “Cúmplices” e “Bem-Vindo”, a presença mais acentuada do realismo maravilhoso tende a conferir às narrativas algo que extrapola a mera crítica de costumes (ainda que não deixe de sê-lo), ao mimetizar os sonhos e os anseios de uma pequena burguesia por melhores condições materiais de vida. As personagens terminam por perder-se neste mundo onírico? Seria isto, ou uma leitura diversa também é possível? Creio que sim, e talvez seja mais interessante seguir numa outra direção. Tais contos podem ser lidos como um contraste entre a estreiteza espiritual e a frustração em que vivem algumas personagens e a forma como ostentam uma vida de relativo luxo, numa hábil manipulação, por parte do autor, da temática da “aparência x realidade”. Com o advento da pandemia, as personagens tomam consciência do que realmente são, e é a vida a que estavam acostumadas a viver o que lhes acaba surpreendendo. Em “Bem-Vindo”, Moacir passa a ter plena consciência de seu fracasso pessoal ao fazer uma compra de supermercado: “Moravam juntos na casa do Ipiranga: ele, a mulher, a sogra e a filha adolescente, mantendo ali um relacionamento tempestuoso onde sua tradicional posição de chefe de família era subjugada pela maioria feminina. Moacir não tinha direito de assistir ao futebol na televisão da sala, […] não levava os amigos do escritório para um banho de piscina, […] abriu mão do churrasco de fim de semana porque a filha tornara-se vegetariana”. No retorno à casa, tudo o que é e tudo o que possui passam a ser percebidos sob uma nova luz.
O livro conclui-se com “Faxina Completa”, conto que se difere não só por ser bem mais extenso que os demais, como também por sua estrutura. O autor faz uma curiosa apresentação das personagens e de suas ações na narrativa, algo que se coloca entre a didascália do texto dramático e a ficha policial. As personagens são reiteradamente apresentadas pelos seus papéis sociais e por determinadas características (como idade, cor, constituição física, etc.) que acabam frustrando, ao longo do relato, as ideias preconcebidas que tais retratos redutores costumam gerar. Este é um caso em que resumir o enredo acaba por simplificar demais o alcance de sentidos que a narrativa proporciona. Mas vale dizer que, em consonância com os contos que o precedem, mantém-se o olhar distanciado e frio do autor satírico, assim como a crítica cortante da sociedade contemporânea. No fim, ninguém se salva, seja “Paulo Renato, 36, branco, magro, pós-graduado, cirurgião-dentista”, seja “Maria José, preta, gorda, analfabeta, empregada doméstica”, ou “Doutor Felipe, 32, branco, solteiro, defensor público”.
Mahon não é adepto das utopias. Ao contrário daqueles que acreditam ser possível extrairmos lições da experiência trágica deste momento pandêmico e criarmos formas novas e melhores de convívio social, ele prefere expor, diante da praga que se difunde e ameaça, a hipocrisia das convenções sociais, a intolerância ao modo de vida alheio que, ironicamente, se agrava na situação de isolamento e, por fim, a consciência crua que suas personagens passam a ter de si mesmas, ao se defrontarem com o espelho de suas aparências.
*** HELVIO MORAES possui Mestrado (2005) e Doutorado (2010) em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Realizou estágio de doutorado na Università di Bologna. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, credenciado (docente permanente) no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL, com sede em Tangará da Serra. De fevereiro de 2015 a fevereiro de 2016, foi visiting professor junto ao Dipartimento di Scienze Politiche e Sociali da Università degli Studi di Firenze, Itália. Desenvolve estudos relacionados com os seguintes temas: utopia literária; literaturas de línguas inglesa e italiana dos séculos XVI e XVII; literatura pré-modernista e modernista inglesa. É membro do U-Topos - Centro de Pesquisa sobre Utopia (IEL/Unicamp). É co-editor da revista Morus - Utopia e Renascimento. É coordenador do Projeto de Pesquisa "A Razão, a Vontade, a Ação: um estudo da Utopia Inglesa no século XVII" (com apoio financeiro do CNPq). Publicou o livro A Cidade Feliz (Ed. da Unicamp, 2011), que compreende o estudo e a tradução comentada da utopia de Francesco Patrizi da Cherso.
LUCINDA PERSONA
DISTENSÕES DA REALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA
(Lucinda Persona)
O vírus do Ipiranga, de Eduardo Mahon (Carlini & Caniato, 2020) é o quarto livro da Coleção “Contos estranhos” que totaliza cinco volumes.
No conjunto de quinze contos, o autor, seduzido por temas urbanos, retorna em uma perspectiva realista, mas distendida por algum elemento anômalo, às vezes de modo tão sutil que não se nota. As narrativas são construídas a partir da vida trivial tomada de súbito pelas sombras e assombros da pandemia. São relatos vazados em uma linguagem cheia de fôlego, objetiva, enxuta e dentro do território imprevisível onde reinam a fantasia, o inesperado e a extravagância. E tudo é realizado de um modo que a experiência de leitura resulta muito marcante.
Assim, a quarentena imposta constitui o eixo ficcional que sustenta os relatos, explorando a natureza das relações humanas e os personagens em seus limites emocionais, tão diversos em suas ocupações enquanto funcionários públicos, operários, donas de casa, havendo até um protagonista que não faz absolutamente nada, gerando um desfecho assustador.
Há, entre os vários destaques, o fato de “O vírus do Ipiranga” não ser posterior aos acontecimentos opressivos e conturbados da epidemia, mas sim o de ocupar o “olho do furacão” em plena vigência, percorrendo as vias secretas de uma metrópole e flagrando vidas que habitam um mesmo espaço geográfico, parecendo às vezes nossos vizinhos.
É inegável a pertinência dessa proposta ficcional em apresentar, com boa dose realista, os processos existenciais vividos pelo mundo em face da pandemia e dos impactos decorrentes do distanciamento e do isolamento, ao mesmo tempo em que o autor recorre a estruturações insólitas para expressar o grau dos danos produzidos e o quanto a pandemia tem deixado as pessoas fora do normal.
Ademais, chama muito a atenção o último e ótimo conto “Faxina completa”, estruturado e disposto a partir da citação dos personagens, em pequenas notas que reprisam algumas de suas características físicas, civis e profissionais, a cada ação ou acontecimento. Uma estratégia que provoca curiosidade crescente, em clima novelístico.
Os relatos, na justa medida, são marcados por um ritmo célere, frases pontuais, breve extensão e certa dose de humor a temperar, por outro lado, o clima trágico. Os desfechos são invariavelmente surpreendentes, a exemplo: “A gripe”, “As voltas do tempo”, “Olhos nos olhos”, “Máscaras” “Bem-vindo”. Talvez até se possa propor uma loucura mansa atravessando o universo mahoniano.
Em suma, O vírus do Ipiranga, espelha toda a habilidade do escritor na narrativa curta e também o poder de causar suspense, levando o leitor seduzido a imaginar como nascem essas histórias incríveis que saltam o muro da realidade e invadem o terreno baldio dos sonhos e pesadelos.
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