
SINOPSE
MEA CULPA – Ramalho é um escrivão em fim de carreira quando se depara com o caso mais difícil de sua vida: o caso da mulher que matou a mãe. O enredo do sexto romance de Eduardo Mahon problematiza a obsessão moderna pela busca pela verdade na qual o ser humano pode despedaçar suas certezas. O protagonista compartilha com o leitor o julgamento ético da personagem que chegou ao limite da existência.
OLGA MARIA
MAHON, Eduardo. Mea culpa. 1 ed. Cuiabá: Carlini & Caniato Editorial, 2020
CULPA IMPUTADA OU ASSUMIDA?!
Mea culpa, de Eduardo Mahon, é um romance ardilosamente construído por sobreposição de histórias. Uma, a que parece ser a mais relevante, é da mulher que matou a mãe; as outras surgem ao longo da narrativa entre lances de memória.
Intercalada pela história de Heloísa Maciel, emerge a de Abelardo Ramalho, o narrador-personagem. A marcação textual dos parênteses possibilita uma leitura paralela em que se desenrola a vida nada fácil do funcionário de uma Delegacia de Homicídios instalada “entre a Matriz e os puteiros”. Em fim de carreira, já apresentando sinais de debilidade física, o narrador-personagem é fruto de perdas, inclusive a do cargo de delegado. Ao assumir um determinado campo de ação cultural, e penso nesse sentido com Pierre Bourdieu (1996)[1], a personagem assume práticas específicas, oriundas de sua atuação profissional, que determinam os códigos de valores pelos quais observa, registra e/ou julga os acusados. Ao lidar cotidianamente com a dúvida, que é também a do leitor, Ramalho estrutura um campo simbólico de ação legitimadora das representações da própria memória.
O desabafo inicial do narrador incide sobre certa necessidade de relatar o acontecido “com o máximo de verossimilhança, pois na verdade, matricídio não é fato corriqueiro. Até mesmo na DHPP, um caso daqueles era uma raridade; “A gente aprende que mãe é um ente quase sagrado, intocável” (p. 7-15).
Eis os impulsos mobilizadores das histórias: o crime e o local da confissão, ou seja, as duas geografias que serão motivadoras das transformações, tanto da narrativa quanto dos envolvidos nos fatos:
Afinal de contas foram 30 anos na Delegacia. Ver o que vi nesse tempo todo metido o dia inteiro na DHPP, plantão atrás de plantão, pode, sim, deixar qualquer pessoa comum de parafuso solto, sem dúvida alguma. No entanto, por mais que eu sofresse com meu joelho ruim, minha cabeça sempre esteve boa (p. 187).
Uma vida toda se resume no resultado do ambiente a que o indivíduo está exposto. Cria uma reunião de influências construídas na coexistência das instâncias produtoras de valores culturais. Na ótica de Bourdieu (op. cit.), é o conceito de habitus. Uma subjetividade socializada, apropriada e posta em prática num determinado campo de estímulo. Nesse comportamento reside a relação entre o indivíduo e a sociedade, cujas bases se colocam, dialeticamente, entre as tensões externas e os comportamentos humanos, propícios para pensar o mundo contemporâneo.
Por isso, a história de Heloísa Maciel é formadora da tensão que detona o mecanismo da memória do narrador desde os medos adolescentes das doenças venéreas, desencadeadas pelo histórico da doença da mãe, a sífilis, ou a homossexualidade da acusada que faz emergir a tragédia com o filho gay do delegado Bibiano: “Aos 16 anos começou a se vestir de mulher. Sabe-se lá o motivo, ele gostava de colocar os sapatos da mãe” (p. 153-164).
Pelos parênteses, então, surgem outras histórias que superam a história da mulher que matou a mãe. A marcação textual serve, também, para desabafo do narrador: “acho oportuno abrir esse parêntese para desabafar uma sacanagem que a DHPP sofria muito no meu tempo e, pelo jeito, continua sofrendo” (p. 100); ou para falar de política: “Grande merda a democracia”; “Esses políticos são todos malandros” (p. 102). Ou, ainda, para observações livres. Funcionam, assim, como elemento de interrupção para julgamentos: “A investigação policial é um jogo de xadrez” (p. 258); “Vou aproveitar o finalzinho do intervalo para contar um fato curioso antes que a história acabe” (p. 262). Esse dinamismo narrativo, próprio do jogo, conduz o leitor a constantes julgamentos das personagens, muitas vezes permeados por critérios de valores morais.
A história dentro das histórias desloca o foco da indiciada para o narrador. Ao escrever/registrar os depoimentos da mulher, o escrivão narra sobre si mesmo. O que ele conta? As memórias da DHPP que são suas memórias, iniciadas pela forma como conseguiu o emprego de escrivão por conta da falência do pai: “escrivão era o máximo que eu seria na vida. Pelo menos sustentei os velhos até fecharem os olhos” (p. 86), numa espécie de auto-comiseração específica do processo de construção da identidade da personagem.
Desta forma conduzida a leitura, tanto pelas atitudes pessoais como pelos resultados destas sobre o indivíduo, é possível observar quatro momentos em que o leitor adentra nas histórias, enfrentando os desafios propostos pela narrativa.
O primeiro momento de inserção se resume nos impactos causados pelo frio depoimento de uma mulher que diz ter matado a mãe. No clima de perplexidade, a atitude tranquila da mulher causa o primeiro choque no ambiente policial: “Eu gostaria de comunicar que acabei de cometer um crime”. [...]. “Eu matei a minha mãe” (p. 8-9). As ações oriundas do relato fornecem os detalhes, tanto dos resultados dos variados depoimentos das testemunhas arroladas, quanto dos fatos que fazem aflorar as lembranças do escrivão-narrador. Nesse caso, a memória, como analisa Maurice Halbwachs (1990)[2], faz parte de um processo psicológico básico reconhecido pelo já visto e reconstruído pelo resgate dos acontecimentos e vivencias em contextos atualizados. Localiza-se, portanto, num determinado espaço e no conjunto das relações sociais, como acontece com o encadeamento das histórias recriadas pelo narrador: o caso do rapaz que estripou o irmão gêmeo com uma chave de fenda; a policial que matou o companheiro com uma bala no peito e foi ter o filho na prisão; o homem traído que faz picadinho da mulher; o agiota encontrado no freezer; o marido que matou a mulher por conta de sexo selvagem; o matador que virou pastor; o casal que matou o próprio filho porque chorava demais; a criança de 6 anos entalada com o bolinho chinês; as apostas que se faziam na Delegacia sobre os presos; o cara que matou o pai e casou com a mãe e por aí afora. Constrói-se, assim, o lastro dos depoimentos e dos relatos da memória de Abelardo Ramalho.
O segundo momento, é o perturbador espaço da Delegacia marcado pela predominância dos sentidos: “O cheiro que tenho na memória, fedor insuportável para quem nunca pisou numa delegacia de polícia, entranhava na pele e saía somente com a aposentadoria, talvez apenas com a morte” (p. 95-6). O odor permeia o campo das lembranças e determina as atitudes da personagem. O uso do imperfeito é o tempo da memória do narrador, denotando um passado não completamente terminado. Então, a continuidade da ação se presentifica, impulsionada pelos depoimentos. Nessa temporalidade, a vida se tece à medida que episódios se desenrolam e a pessoa se transforma: “meu paladar foi desaparecendo. Era estranho não saber a diferença entre peixe e frango [...[. O fato é que a comida não tinha o mesmo gosto de antes, não sentia nem o cheiro. Ao completar dez anos de serviço, eu parecia mais um zumbi: não sentia a minha pele”. [...].
O espaço constrangedor/aniquilador faz da personagem um ser duplo, alguém que não mais se reconhece:
O escrivão Ramalho estava lá, datilografando depoimentos, preso aos formulários, enquanto eu estava num cinema comendo pipoca. Passados outros quinze anos deixei de escutar aquilo que não interessava e de ver o que não queria [...].
Eu desligava da tomada, digamos assim. Era a forma que encontrei para me afastar daquilo tudo. Cheguei ao limite no interrogatório do casal que matou o próprio filho [...].
Depois daquele interrogatório, fiquei sem dormir direito por duas semanas, um inferno” (p. 67-8).
Éramos peça de museu” (p. 143).
O que sobraria de um ser além de fragmentos de outras vidas, também elas em frangalhos? Apenas estranhos sonhos datilografados e em palavras que fugiam do papel para compor o substrato das vidas expostas e a artesania do romance.
No terceiro momento predomina o hábito adquirido pelas ações cotidianas que embasa o mote das histórias, alinhado pela epígrafe inicial do romance, retirada Memórias da casa dos mortos (The house of dead or prison life in Siberia), de Fiódor Dostoiévski (1860). Da mesma forma que as imagens da prisão subsistem na narrativa do escritor russo, o narrador de Mea culpa também ele é fruto das memórias do subsolo que geram atitudes paradoxais do ser humano. Daí a atmosfera sombria, até certo ponto sorrateira do narrador ao se aproveitar da história da mulher para contar a sua própria história. Entre os exaustivos depoimentos que sustentam a hipótese da culpa, o narrador puxa para si o foco da história. Suspende a narrativa da culpada para narrar outras em que se sobreeleva a sua “biografia”.
Ao registrar os depoimentos, Abelardo Ramalho se inscreve na narrativa através do deslocamento da ótica do crime que aumenta a dramaticidade da narrativa pelos variados lances, nervosamente, acompanhados pelo leitor. Assim, a cada capítulo, o clímax é adiado por dois impulsos: o da previsibilidade, cujos indícios estão nos depoimentos e nas notícias jornalísticas, e o da estranheza, causada pelos retalhos da memória do escrivão. Entre o visível e o ocultado, a história do crime serve de pretexto para detonar os dramas humanos das personagens que gravitam no romance, notadamente, os delegados do DHPP, cujos detalhes contribuem para aumentar a dramaticidade e costurar o clímax que recairá no desfecho aberto a variadas interpretações.
O epílogo enfeixa o último momento de entrada no texto. Ao fazer o depoimento conclusivo, a acusada mobiliza as atitudes dos funcionários da Delegacia. Que processo psicológico é acionado a partir do momento em que todo um sistema de funcionamento da estrutura penal é colocado em xeque? Dostoiévski creditava ao ser humano uma tendência ao caos aqui simbolizado pela tensão latente causada pelo retardamento do depoimento da mulher que matou a mãe. Ela confessa o crime na primeira ação do romance, mas só consegue concluí-lo no último capítulo. É a metáfora que rege as histórias. Enquanto o depoimento fica inconcluso, o narrador metaforiza a própria sociedade através do alinhavo dos fatos vivenciados como funcionário da Delegacia. Ou seja, entre o sentido da vida diante da morte está a busca de um sentido para a própria vida. Talvez por isso no subsolo da memória resida a luta constante entre os códigos de conduta e de ética do sistema e aqueles criados pelo habitus.
Ao final, a narrativa retorna à iluminadora epígrafe, de Memórias do escritor russo. Os narradores se assemelham. Ao mesmo tempo em que se moldam ao meio, cultuam um lado oculto capaz de ações incalculáveis, o que pode explicar a preocupação inicial do narrador em preparar o leitor para as possibilidades de ler para além do visível ou para o que não se vê a olho nu.
De certa forma, escrever é para o narrador-personagem de Mea Culpa, fonte de prazer, talvez um dos poucos em tão parca vida, apesar de ser um pesado ônus do ofício. A linguagem é a expressão da sua dura realidade. Talvez, por isso, à medida que o processo vai se avolumando, a memória é acionada. Por sua vez, a suposta criminosa Heloísa, tem o desejo de rever o passado e de aprender para além dos cansativos cuidados com a mãe. Por ela deixou de viver. São então, dois modos de pensar que se entrecruzam e a tensão sobressai no momento de sinceridade que se alterna com a auto-justificação, busca da legitimidade e até do sentimento de elevação.
No jogo marcado por variadas nuances, os dramas pessoais começam e terminam com os toques da máquina de escrever na sensação de alívio do dever cumprido e na imagem intermitente do movimento das mãos da acusada, sempre “descansando em paz”. Entre o silencio mortal e as teclas da máquina, o narrador finaliza o relato da depoente e o seu próprio.
É o espaço lacunar em que pensamentos vagam entre as lembranças e a incorporação delas no corpo e na mente. De tão fortes, não é possível retirá-los mesmo se lavados com água quente e bucha vegetal num movimento de “esfregar até que da [minha] pele saíssem não só a memória, mas também o odor de remorso que se somava ao conhecido cheiro da Delegacia” (p. 339).
De quem seria a culpa maior? De quem julga ou de quem assume? Como no “ambiente de ressaca de uma quarta-feira de cinzas” em que se dá a confissão da mulher que matou a mãe, fica o leitor em busca de respostas, ou imerso em reflexões causadas pelas duas pontas do novelo: a visível, pelo qual se puxa o fio, ou a não-dita em que se embaralham as histórias?!
Nem mãos, nem olhos acusam alguém: “As partes não dizem absolutamente nada sobre alguém, pois na vida não importa exatamente quem fala, mas quem escuta e passa adiante”. “É preciso, sim, escutar melhor” (p. 343, grifo meu). O fato da escuta pode ser a prova maior de que a verdade é móvel e está, talvez, nas chagas do próprio sistema e dos acontecimentos. Um inquérito pode se concluir pela dúvida. E quem se liberta de uma?!
Em, Cáceres-MT, quarentena de 2020
[1] Bourdieu, P. As regras da arte: gênese e estruturação do campo literário. Trad. Maria Lúcia Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[2] HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Léon Schaffer. São Paulo: Vértice, 1990.

SINOPSE
AZUL DE FEVEREIRO – Contos. Nova reunião de contos breves. O autor aprofunda-se no gênero do fantástico, utilizando-se de imagens absurdas e de linguagem mordaz. O livro está inserido numa coletânea de 9 outros autores, escolhidos pela editora pela grande contribuição para a literatura contemporânea brasileira realizada em Mato Grosso.
OLGA MARIA
NARRATIVA DAS IMPERMANÊNCIAS
Olga Maria Castrillon-Mendes
In: Azul de fevereiro. Coleção Carandá. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2018
O livro Azul de fevereiro, de Eduardo Mahon, faz parte da Coleção Carandá composta de dez livros que representam, basicamente, parte da produção literária brasileira contemporânea produzida em Mato Grosso. A Coleção traz o selo da Editora Carlini & Caniato, cuja proposta editorial tem se voltado à formação do jovem leitor a partir do investimento no fecundo trabalho de produção e difusão dos escritores do Estado. Nos títulos desta Coleção o leitor encontrará alguns dos mais destacados escritores brasileiros, bem como jovens escritores que têm despontado nas artes e na cultura do Estado. Todos veiculam expressivos textos que rompem as barreiras da obviedade e da linguagem, renovando estruturas e temas. Um misto de narrativas curtas e poemas, a coleção é um aperitivo literário que encontrará solo fértil nos mais diversos nichos escolares, desde que olhados com especial atenção pelos professores e disponibilizados pelas escolas.
Azul de fevereiro é um convite aos diferentes gestos de leitura que meu “olhar superlativo”, diria, lacunar, apaga o autor, aguarda a ouverture da ópera e o prazer (incômodo) da surpresa de cada ato. Mahon escreve para incomodar, desassossegar, fazer do sonho, pesadelo e subverter a realidade cartesiana. O estilo, influenciado por um conjunto substancial de leituras, já era antevisto em Doutor Funéreo, conjunto de contos sobre a morte, mas não a morte propriamente física, mas sobre a finitude. A visão patética e irônica forja a tônica literária em Contos Estranhos, perfil que foi aprimorado até chegar em Azul de Fevereiro. O autor estimula a tensão no riso e afasta o afeto romântico clássico, não deixando, porém, o lirismo de lado, o que torna a escrita ainda mais instável e provocadora.
Algumas leituras são absorvidas pelas cativantes histórias envazadas em narrativas curtas, fluidas e com o ingrediente básico do conto maravilhoso; outras movem sentimentos de irritação, absorvidos pelos variados momentos de tensão entre o espaço e o tempo, as vozes narrativas e o estilo. Isso implica cavar os subterrâneos da mente e atingir as tonalidades dadas pelo narrador. A escolha recai sobre um sistema de coordenadas essenciais que expressam as variadas relações com o mundo. Não há nos contos elementos gratuitos ou decorativos, mas a exploração concisa do acontecimento, garantindo o valor estético. A temática é variada e apreendida pelos efeitos do espanto e pela condição existencial das personagens. Tudo perpassado por fina ironia que atinge de imediato o leitor, na exata dose de diversão que só a literatura é capaz de oferecer.
Entre a fantasia e o jogo, os sentidos são arrebatados pelo que lê/observa, pelas surpresas finais e pela forma como o insólito se cola a um real rejeitado como ponto de partida. As leis físicas não o atingem e nem tampouco parecem comprometer a verossimilhança da própria narrativa. O trato entre o possível e o impossível é o mesmo, desmanchando no ar o liame do que entendemos como fantasia. A brevidade de cada conto é estrutura e essência. Funciona como mecanismo de sobreposição de planos e de expressão poética, muito dentro da inventividade do escritor afeito aos influxos de expressivos narradores da literatura mundial.
É nesse cenário de espelhos identitários, empalidecidos como a formação do arco-íris, que os contos de Eduardo Mahon convidam o leitor a se aproximar do literário, se perder e se achar, mesmo que em pequenos instantes improváveis de sua conturbada vida.
Ao leitor de fruição, aquele que se compraz com o livro, sem compromissos acadêmicos, aproveite o bom humor para rir de chorar. Ao estudioso, um alerta: os contos são como cebola. É preciso vencer camada a camada de significado, para atingir o núcleo, a intencionalidade escondida nas entrelinhas. Este último vai rir, mas também chorar.
No mais, é ler para crer!
GISELLI MARTINS
Espelho, espelho meu: a condição existencial do homem em Azul de Fevereiro, de Eduardo Mahon
Giselli Liliani Martins[2] - (UNEMAT/SINOP) - CAPES[3]
Sandra Maria Alves de Souza - (UNEMAT/SINOP)[4]
O fantástico é uma lente de aumento que
serve para ver melhor a realidade.
(MAHON, 2020, p. 57).
Desde que chegam a esse mundo os seres humanos são construídos, desconstruídos e reconstruídos pelas descobertas que fazem ao longo da vida. Nesse processo formativo do ser, ao qual todos, inevitavelmente, são expostos, a imaginação é trabalhada, lapidada, para contribuir com essa formação. Nesse sentido, entre o real e o imaginário, os sujeitos vão se constituindo, ora questionando acontecimentos humanamente inexplicáveis, ora resignando-se a aceitá-los.
Partindo do princípio de que a existência humana se equilibra no limiar entre realidade e imaginação, percebe-se uma linha bastante tênue a demarcar essa fronteira, na qual a literatura se mostra um instrumento de referência, ou até mesmo de encontro, entre o sujeito e as múltiplas faces que o constitui, e o ajuda a compreender-se enquanto ser humano frente às dualidades da natureza humana e do mundo. Nesse duelo, a narrativa fantástica se coloca como um importante instrumento, inclusive, de reconhecimento e transformação do homem e do meio no qual vai sendo inserido ao longo do tempo.
SINOPSE
ALEGRIA – Romance. Um médico inominado separa-se da mulher e vê no jornal oportunidade de emprego no interior do país. Uma vez aceito o convite, muda-se para uma pequena ilha chamada Alegria e lá constata um estranho morticínio de peixes e uma gravíssima epidemia de suicídios. A missão do protagonista é uma só: saber o que está acontecendo com as pessoas, antes da extinção total.
FORTUNA CRÍTICA - VERA MAQUÊA
A intangível conciliação
Por Vera MAQUÊA
Que tipo de narrativa se iniciaria com uma citação de A peste, de Albert Camus, de onde sugere-se que foi retirado o título Alegria, se não fosse para tratar do absurdo presente em tudo, desde situações do cotidiano até grandes fatos que marcam a vida?
Na encruzilhada em que seres de diferentes procedências se encontram para um acerto de contas muito simples: a vida como ato, como teatro, com aquele necessário e vital elemento de tragédia que dá aos espíritos, dos mais simples aos mais complexos, o gozo da dor e da alegria.
Dividida em três partes, o escritor Eduardo Mahon nos apresenta uma cidade chamada Alegria, metáfora de um isolamento, na ilha que a suporta e num encadeamento de acontecimentos com ares de romance polar, com mistérios plantados pelo narrador desde as primeiras páginas. Fenômenos anunciados e fatos estranhos, por meio de estratégias desconcertantes, fazem da cidade um espaço-tempo de eventos inusitados, acompanhados de comentários despretensiosos do narrador que, sendo em primeira pessoa, deveria saber bem menos.
A sequência de mortes, das explicadas às mais mal explicadas, dá um tom de recherche às pegadas das personagens e de seu interlocutor, oscilando entre o mistério do trágico e o mistério dos romances policiais, na sua forma clássica do tipo Umberto Eco, do que se alimentam casamentos infelizes, frustrações cotidianas para tocar com fineza o autoritarismo que manda matar quando as pessoas não põem, elas mesmas, fim às suas vidas.
Nessa novela vibrante e nervosa, que não pode nos impedir de lembrar de Um copo de cólera, de Raduan Nassar, há no entanto um aspecto de relevo que segue na linha sutil da organização narrativa: os problemas da cidade como uma doença social, cujo narrador médico é de fato o melhor para abordar e analisar a sociedade. Num desses momentos, na parte 2, o narrador médico e sociólogo se confluem com precisão: “Aqui em Alegria, o caso é patológico, uma epidemia, aliás. Alguma coisa estava causando novo desastre, contaminando as pessoas que não tinham nenhuma alternativa, ainda mais isoladas no meio do nada (p.43)”.
Nesse sentido, podemos incluir essa novela na linhagem daquelas obras iconográficas de grandes alegorias contemporâneas, como Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago; Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez ou mesmo um conto de Jorge Luis Borges como Funes, el memorioso, pois são todos efeitos de uma doença social, cujo maior mal está na ignorância e no isolamento, cujos governos autoritários sempre fizeram questão de manter. O narrador de Alegria bem sabe disso. Já na parte 3 dessa novela, entrevemos, às vezes, um filósofo, um tipo sartriano, que se revela numa espécie de epifania sem moderação:
Fosse como fosse, era mentira o que o prefeito dizia no autofalante todos os dias. Nem os peixes, nem as pessoas pararam de morrer. A situação estava igual. Mas eu estava proibido de dizer algo a alguém. No fundo, acreditava mesmo que os índices de mortandade iriam melhorar com o pacote de felicidade proposto pelo governo. Donato organizou shows de palhaços na praça central, contratou mímicos para percorrer os bairros mais distantes, além de aumentar o cachê os músicos que tocavam tarantela ininterruptamente. O pianista Tomazzo Ferri que perdera seu piano para a fogueira foi nomeado maestro. Negócio de ouro. Ganhou o que queria e o que nem mesmo ele acreditava. Bastavam os músicos tocarem o ritmo do prefeito (p.55)
A vida (e a morte) assim passa a fazer parte de um acorde, de um movimento, de uma onda, de um som, orquestrada por alguém, que não Deus, posto que o narrador diz-se ateu. Uma espécie de música humana, cujos timbres nascem da própria condição existencial, aquela que ultrapassa toda miséria material como podemos ler em A peste, epígrafe de Camus que costura essa narrativa.
Parece ser na consciência nublada do narrador que flamejam os limites do conhecimento de si e dos outros. O narrador, em vários momentos, afirma que é difícil conhecer realmente o outro, mesmo sendo alguém com quem vivemos. Nesse diapasão, o fato de ser médico faz dele um sujeito cínico, muitas vezes. Toma distância e analisa com frieza os sentidos (ou a falta) da morte, das vontades de morrer, desde a dúbia morte de sua esposa, Elisa, até a de Isabela, de 19 anos, filha de Vincenzo Rosano. O suicídio do prefeito, o de Maria do Rosário já no início da narrativa, cujo bilhete é também um mote para construir uma possibilidade ao seu modo, se acumulam em sobreposições de eventos, repetindo-se, como um desenlace natural da vida. Mas é a frieza que triunfa no gesto de contar desse narrador que evidencia o ritmo de suas escolhas:
As pessoas morriam como moscas. Que eu saiba, as moscas têm vinte e oito dias de vida, mais ou menos. Entre o mês de dezembro e o janeiro seguinte, começaram a chegar os corpos dos mais ricos. A família Rosano foi-se toda, sem exceção, assim como os Trova, Basilli, Amadio, Fassoni, Mazzetti, Andreoli, Rosso e toda a gente do extremo norte de Alegria. Não houve Natal, nem festa de réveillon. Nem lugar, nem circunstância propícia (p. 59).
Da mesma maneira, o narrador tenta reconstituir o que diria a Elisa ao mostrar-lhe o prejuízo de tê-lo perdido, apresentando-se como um velho feliz, brincando com seus fictícios netos. Mas num movimento semelhante de avanços e recuos o leitor é surpreendido no final ao topar com o Epílogo. O absurdo constitui as filigranas da ação narrada e arremata o segredo que o narrador prende até o final, ao modo do desfecho de Grande sertão: veredas. Que arte seria melhor que contar “sabendo”, como se, igual ao leitor, não soubesse. Essa resposta só poderia ser dada se, efetivamente, escrever não fosse um modo de escavação do próprio eu, nessa encruzilhada que dissemos no início: um encontro para acertos de contas. Com quem? Quantos poros existem na linguagem? Quanta distância pode haver entre o escritor, o autor, o narrador? Nos limites da estrangeiridade, escrever ficção seria a melhor maneira de filosofar, diria Camus.
E não serei eu a tirar do leitor essa descoberta.
Um brinde ao nosso narrador!
Alegria!
DIVANISE
A CORROSÃO EM ALEGRIA DE EDUARDO MAHON, UMA RESENHA
CORROSION IN ALEGRIA BY EDUARDO MAHON, A REVIEW
MAHON, Eduardo. Alegria. Cuiabá; Porto Alegre: Carlini & Caniato; Editora Sulina, 2018.
Alegria (2018) de Eduardo Mahon é, num certo sentido, uma história do Brasil profundo, distante dos grandes centros metropolitanos. A narrativa principal se passa na fictícia cidade de Alegria e, embora o estado ao qual pertence jamais seja nomeado, o deslocamento do narrador-protagonista revela o seu caráter longínquo, encravado no coração do país: “eu iria parar de oito em oito horas para dormir nos hotéis de beira de estrada. Dois dias de viagem seriam suficientes para chegar à rodovia federal e, de lá, seguir pela vicinal até meu novo emprego” (p. 11). O personagem, que também não tem nome, é um médico residente na capital (qual delas?) que se muda para Alegria após ser contratado, com um alto salário, pela prefeitura local.
O isolamento desse espaço é ainda reforçado pela sua qualidade de ilha, “curiosamente fincada no meio do maior rio da região” (p. 11). Os grupos sociais da cidade também vivem numa espécie de apartação bem delimitada: mestiços de indígenas ou caboclos de um lado e brancos descendentes de italianos de outro. Para se referir a ambas as coletividades, o narrador utiliza os termos “bugres” e “carcamanos”, de uso corrente comumente pejorativo, mas que, em sua fala, adquirem uma espécie de neutralidade ou pelo menos equivalência, já que não se identifica de fato com nenhum deles. Ao contrário, o médico parece pairar acima dessas distinções, não se envolvendo intimamente nem tomando partido em suas disputas.
A história de Alegria não é muito diferente daquela de outros territórios localizados no centro do país. Habitada originalmente por etnias indígenas que a chamavam de Inquirim (“morro do sossego”), foi um dia alcançada pelas máquinas do governo federal, que abriram caminho até ali, derrubando, com grossas correntes, milhares de árvores centenárias. A via aberta deu passagem aos primeiros brancos, basicamente militares e garimpeiros, que trouxeram doenças responsáveis por dizimar grande parte da população nativa. Metais preciosos não foram encontrados, mas logo se descobriu que o morro era um importante depósito de calcário, despertando, assim, o interesse dos italianos, que assumiram a extração do minério e o poder político e econômico da região. Dessa história comum de desigualdade surge um elemento mágico que talvez explique os estranhos acontecimentos testemunhados dali em diante pelo narrador. Conforme explica o historiador da localidade, “os italianos foram amaldiçoados pelo povo retirante por bulirem com o 'morro do sossego'” (p. 33-34).
Além dessa camada histórica mais profunda, o presente da narrativa não é precisamente delimitado. Porém, tem-se a impressão de que a história ocorra em algum momento dos anos 50 ou 60, já que não há menção à televisão (nem muito menos à internet), mas sim às novelas do rádio. O protagonista alterna, em sua narração, os eventos ocorridos em Alegria com aqueles correspondentes ao término de seu casamento com Elisa, depois do qual decidiu se transferir da capital. Não faz referência a divórcio, legalmente instituído no Brasil somente em 1977, mas a desquite, que já era anteriormente previsto no Código Civil. E, para falar com sua mãe, por exemplo, ele conta apenas com o único posto telefônico da cidade, operado por uma telefonista. Esses detalhes temporais ajudam a compor a ambientação do Centro-Oeste, num período em que atraía cada vez mais interesse das outras regiões e do governo federal.
Sem ser exatamente rico, o narrador pertence ao mesmo grupo dos privilegiados que já foi examinado de forma irônica, na literatura brasileira, por autores como Machado de Assis e Graciliano Ramos, entre outros. Afinal, ele é um homem branco heterossexual que exerce uma das profissões mais prestigiadas do país, a medicina. As características que ele compartilha com protagonistas anteriores, como Bentinho, Brás Cubas e Paulo Honório, são exatamente o cinismo, a ausência de empatia e uma grande dificuldade de estabelecer vínculos sólidos com outras pessoas. Nem mesmo em relação à mãe ele nutre sentimentos profundos, sem esboçar grande sofrimento ao ser avisado de sua perda: “[s]ua mãe morreu, meu filho. Faz duas semanas já. [...] Bati o telefone no gancho. Não era preciso alongar a conversa” (p. 113). Ele também é acusado por Elisa de ser “desatento”, um dos motivos para o fim do relacionamento.
Essas características da personalidade do médico estranhamente refletem o insulamento de Alegria, e nisso se esconde uma pista relevante para o entendimento do desfecho da história. Antes disso, a cidade é acometida por uma mortandade inexplicável de peixes e por uma epidemia de suicídios, chegando gradualmente ao número de milhares de mortes. Diversamente dos suicídios comuns, que de forma geral são o último ato de pessoas deprimidas, os ocorridos em Alegria são atitudes inesperadas de homens, mulheres e crianças que antes pareciam normais e até bastante alegres, fazendo jus ao nome da cidade. O médico, então, faz uma descoberta fundamental: “uma membrana opaca envolvendo todo o globo ocular” (p. 64) dos suicidas defuntos, aproximadamente como o que acontece com peixes mortos.
A relação entre os suicídios e a morte dos peixes da cidade, ao que tudo indica também voluntária, não chega a ser explicada. Contudo, por meio de uma escrita instigante e bem construída, Mahon oferece uma série de peças que um leitor atento perceberá formarem um amplo mosaico. Não existem pontas soltas nessa narrativa, desde a epígrafe retirada de A peste de Albert Camus, até cada uma das cenas rememoradas pelo narrador. Inúmeros paralelos são aos poucos traçados entre o que se passa em Alegria e a vida pregressa do protagonista, o que permite o desenho de um padrão relativo à morte, às perdas e ao consequente embotamento da capacidade de sentir - e mais do que um tropo recorrente, os peixes funcionam como um símbolo desse processo. Quase sem perceber, o leitor será conduzido a uma investigação da vida interior do personagem, em que a homologia entre interno e externo se torna cada vez mais evidente.
Ainda assim, mesmo o leitor mais atencioso provavelmente irá se surpreender com a conclusão presente no Epílogo. Após a leitura, porém, é inevitável a impressão de que ela faz todo o sentido e que já vinha sendo preparada desde a primeira linha. Além desse domínio admirável da construção narrativa, Mahon também estabelece um produtivo diálogo com a tradição da literatura brasileira, colocando em xeque-mate o grupo que costuma protagonizar essas narrativas. Não se trata de uma ruptura, já que outros autores já haviam demonstrado como os privilégios são capazes de corroer moral e psicologicamente essa camada social. Mas em Alegria tal corrosão se aprofunda radicalmente, tornando a vida de seu protagonista praticamente uma irrealidade. Nenhum homem é, afinal, uma ilha, por mais que construa barreiras entre sua vida e a de outros seres humanos.
LUIZ GONZAGA
A TRISTEZA FANTÁSTICA DE ALEGRIA!
Entrevista com o escritor Eduardo Mahon
Por Luiz Gonzaga Lopes Porto Alegre
O advogado, professor e escritor carioca, radicado em Cuiabá (MT), Eduardo Mahon, estreou em texto no RS com a publicação de um conto no Caderno de Sábado em março, “Manual de Instruções”, no qual um pai compra um arco-íris para o filho, mas não lê o manual de instruções e o brinquedo pifa. Pois este escritor com mais de uma dezena de obras lançadas, terá lançamento em Porto Alegre do seu novo romance “Alegria”, nesta sexta-feira, dia 20, às 18h30min, na Letras & Cia Livraria, do Shoping Paseo Zona Sul (Wenceslau Escobar, 1823, loja 14), no bairro Tristeza. O romance conduzido à maneira de Albert Camus (do qual Mahon epigrafa trecho de ‘A Peste’) trata de uma cidade fictícia com o nome Alegria, mas que convive com a tristeza de uma espécie de praga que leva as pessoas e até os peixes a cometerem o suicídio. O livro é um lançamento conjunto da gaúcha Editora Sulina e da editora Tanta Tinta, do Mato Grosso. Mahon é autor de obras de contos como “Contos Estranhos”, “Doutor Funéreo e Outros Contos de Morte”; de poesia como “Palavrazia” e “Meia Palavra Vasta” e de romances como “O Cambista” e “O Homem Binário e Outras Memórias da senhora Bertha Kowalski”.
O blog Livros A+ resolveu dar dois dedos de prosa via whatsapp com este autor que estará em Porto Alegre nesta sexta para falar do romance Alegria, das suas influências de Camus a Saramago e outros papos literários.
Livros A+ – Como tiveste a ideia de “Alegria”?
Eduardo Mahon – Alegria é um livro que é essencialmente Camusiano. Ao contrário do Gabriel García Márquez e do Juan Rulfo, a minha principal influência para o Alegria talvez tenha sido o Albert Camus em A Peste. Tanto que o último parágrafo de A Peste dá início ao Alegria, na página preta como a epígrafe. Ele diz que a peste pode voltar. Eu pensei numa peste absolutamente incompreensível, que é a dos suicídios em Alegra. Uma peste que não depende do outro, de contágio, depende muito mais dos nossos infernos pessoais. Depois de acabar o livro, você pode traçar uma série de paralelos. Um deles poderia ser o Ensaio Sobre a Cegueira, do José Saramago. Não me passou nada além do que a influência do Albert Camus.
Livros A+ – De onde vem tuas influências, tuas referências literárias?
Eduardo Mahon – é claro que eu li García Márquez, o Saramago, o Rulfo, o Ernesto Sábato, enfim todos os grandes escritores que flertam com o fantástico, mas acho que o fantástico foi despertado em mim quando era bem mais jovem e li o Nikolai Gogól. Ter lido O Capote, o Nariz, isto me influenciou mais do que com Cem Anos de Solidão, Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada, O Amor nos Tempos de Cólera, Memórias de Minhas Putas Tristes, os livros do Gabo em geral. Acho que já mais maduro eu li bastante coisa do Saramago e me interessei pelo Saramago mais pela técnica e pela estética do que pela história. Comecei a lê-lo com Todos os Nomes, depois O Evangelho Segundo Jesus Cristo, O Cerco, Jangada de Pedra, Ensaio sobre a Cegueira, o Elefante. Dele, a inovação estética é absolutamente incrível. A maneira dele escrever me influenciou muito, na supressão de sinais gráficos do texto, como travessão, aspas, a utilização do parágrafo monobloco, isto é muito Saramago. Acho, por exemplo, que o parágrafo está com seus dias contados.
Livros A+ – Como pensas que deve ser a boa literatura nos dias de hoje?
Eduardo Mahon – A questão da boa literatura é muito subjetiva. Eu acho que nós temos que partir de algum lugar. Como é impossível se ler tudo o que temos disponível hoje, nós precisamos priorizar, ir por algum caminho. O meu caminho foi ler os clássicos primeiro. Eu li os clássicos russos. Me lembro bem disso. Depois, os europeus em geral e finalmente eu comecei a ler a teatrologia grega, que no final das contas é a raiz comum dos ícones ocidentais. Este é o meu caminho. Tem gente que começa por um autor, que começa a se seduzir por um estilo. Em função de uma proximidade que eu tinha com pessoas que tinham coleções de clássicos. Comecei a ler o cânone primeiro. O meu padrão de avaliação eu confesso que é muito alto, canônico. Depois li o anticanônicos, leio os contemporâneos, leio os lançamentos, os prêmios Pulitzer, os Book Prime, os Nobel. A boa literatura cuida do ser humano. Para mim, ela é aquela que daqui a cem anos continuará instigante, falando do ser humano. Ela não é circunstancial, ela é universal. O sujeito que está produzindo no Crato (CE) ou na Sibéria está falando do ser humano. Ele não está contanto uma história circunstancial. Ele está expressando um dilema do ser humano. É claro que há questões estéticas e uma maneira brasileira de fazer literatura, pois aí é a nossa personalidade em ação.
Livros A+ – E as novidades da tua carreira, além de “Alegria”?
Eduardo Mahon – Está sendo traduzido este ano o livro “Contos Estranhos” para a Bélgica e para a Holanda. Este ano ainda, eu lanço “O Homem Binário” e “Alegria”, em Portugal. E no ano que vem, eu lançarei “Contos Estranhos” na Primavera Literária, em Paris, além de Bélgica e Holanda. Eu fico satisfeito de encontrar outras pessoas que embarquem na minha maluquice. A estética do conto é muito diferente da do romance. Há muita coisa implícita no conto. O bonito é estar implícito. No romance é preciso explicitar mais. A estética do conto é de uma escrita frenética, mais agudamente fantástica e insólita. Então, entrar em outros países é fenomenal. Mandando um abraço aos gaúchos e querendo encontrar pessoas que amem e falem de literatura, além da gastronomia aí do Sul que é fantástica.

SINOPSE
A GENTE ERA OBRIGADA A SER FELIZ – Romance histórico. O leitor é provocado a mergulhar na História do Brasil de uma forma inovadora. São cerca de 50 anos de agitação, com eleições e golpes, narrados por um homem singular – Aurélio Espírito Santo. O negro favelado que consegue um emprego de cavalariço num quartel próximo vai conviver com sentimentos contraditórios e guiar os leitores por percepções tão particulares que o Brasil não vai parecer o mesmo país que conhecemos.

SINOPSE
O HOMEM BINÁRIO E OUTRAS MEMÓRIAS DA SENHORA BERTHA KOWALSKI – Romance. O programador Josef Platek, padecendo de uma doença terminal, une-se com outros dois especialistas em computação para tentar a imortalidade por meio da transmissão de todos os dados do cérebro para um software especial. O problema é saber se as pessoas serão as mesmas depois de ultrapassarem a barreira digital.
FORTUNA CRÍTICA - ANA LÚCIA RABECCHI
Auditório de Cáceres lotado com alunos e professores de literatura.
O MUNDO BINÁRIO DE EDUARDO MAHON
Profª. Drª Ana Lúcia G. S. Rabecchi
As histórias de Eduardo Mahon, além de serem nutridas pela experiência de leitura que reconhecemos num grande repertório, elas oferecem e tiram a ilusão de compreensão. O romance O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski é uma alegoria das atitudes que o homem toma, ou se entrega, diante da perspectiva da morte, daí a narrativa ter como conteúdo a busca incansável por aquilo que ele, até então, não podia comprar: a imortalidade. Naturalmente essa busca é permeada pela discussão do conceito de humanidade de “forma mais radical”, como diz o autor, que termina por nos levar a uma reflexão do que seja humano versus desumano e da vida versus a morte. Vejamos a reflexão da psiquiatra Justyna Klos:
Não é preciso nem mesmo estar num consultório médico, senhora Kowalski. Basta recorrer aos arquivos de história. Homens podem não ter humanidade alguma. O que chamamos de humanidade é, na verdade, uma construção tão rebuscada quanto fictícia. A humanidade, enfim, não é uma propriedade inata. E, se esse conjunto de atributos que apelidamos de humanidade não é partilhado por todos os seres humanos, é verdade que pode ser observado noutros seres, até mesmo nos virtuais. Basta não ter preconceito e levar a proposta do senhor Platek às últimas consequências (p.143, grifo meu).
É exatamente discutir esse “e se...” que o romance faz ao nos deixar sufocados não pela morte em si, mas pela clausura da vida num software, que pode encarnar também a metáfora dolorosa do mito de Prometeu Acorrentado. Essas reflexões justificam a boa trama de O homem binário, onde vida e morte são verso e reverso da mesma moeda. A fragilidade e finitude da vida na realidade realçam o medo e a angústia da morte.
A vontade de se perpetuar mesmo numa vida diferente faz com que a empresa Continuum Co alcance sucesso com sua fórmula de prolongar a vida e vender a felicidade ao homem através da visão de eternidade. A morte, então, perde o “caráter monstruoso” e passa a ser um estado de mudança de existência, uma migração deste lugar para outro como diz a epígrafe Apologia de Sócrates, com a qual o romance mantém diálogo, dentre outras obras.
Mahon, porém, vai além, banaliza a morte ao exaltar ironicamente a ciência e a tecnologia que conseguem guardar a personalidade, mas não abrandar seus medos, pois Josef Platek se ressente de ser um homem torturado ao “virar uma alma sem corpo, penando sem espaço e sem tempo”, o que a personagem diz ser uma condenação “não dormir, não acordar, não envelhecer e não morrer”, ou seja, uma cópia desumana do homem.
Em Alegria a questão da aparência e da realidade que permeiam toda boa ficção continua em pauta. Assim como Macondo em Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, Alegria é uma ilha da imaginação. A narrativa passa da criação ao apocalipse cumprindo um ciclo de vida e morte, onde esta mostra suas múltiplas faces. A cidade é vitimada por uma epidemia de suicídio em massa de peixes que desencadeia o medo, a angústia, a tristeza, o desespero, a solidão e, consequentemente, o suicídio dos homens, que vai se transformar em epidemia por impotência diante de um fato inexplicável, onde “a morte alcança até quem não havia nascido” (p.107).
Assim como A peste, de Albert Camus, que serve de epígrafe em Alegria, a iminência da morte relembra ao homem a sua pequenez diante da finitude e o faz querer agarrar com todas as forças à vida, que teme perder a qualquer momento. O desespero das pessoas é narrado por um dos médicos da cidade que tenta amenizar os males sem sucesso, restando-lhe apenas a solidariedade e a compaixão.
A morte neste romance de Mahon é recorrente e faz com que o narrador vá refletindo sobre a postura do homem perante o mundo e a si próprio. Com seu senso de humanidade e/ou desumanidade vive toda tragédia e reflete: “Há solidão em qualquer lugar, não é preciso buscá-la, com tanto afinco. Na ilha estive nessas condições sem buscar por elas” (p.160). A ilha, então, vem ser a clausura do homem abandonado à própria sorte.
Nessa contação de história, cujo final nos desestabiliza, valemo-nos de Garcia Márquez em O amor no tempo do cólera, para também afirmar a suspeita de que em Alegria “é a vida, mais que a morte, a que não tem limites”.
Profª. Drª Ana Lúcia G. S. Rabecchi
UNEMAT - Cáceres
DIVANIZE CARBONIERI
Narrativa distópica e conscientização em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski
MAHON, Eduardo. O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017.
O romance O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski (2017) de Eduardo Mahon, escritor carioca radicado em Cuiabá, é uma distopia futurista. Depois de uma grande guerra, o que sobrou das partes terrestres do planeta Terra foi dividido em continentes com nomes de constelações. A história se centra no Continente de Áries, no 43o ano da nova República, espécie de sociedade altamente controlada por intricados mecanismos de biopoder, que dividem a população entre os geneticamente aptos, com autorização para procriar, e os cidadãos novos sem tantos direitos. Aqueles que habitam os demais continentes em coletividades com menos regulações são chamados de selvagens.
A narrativa, conduzida por uma voz impessoal de terceira pessoa, não parece ter um único protagonista. Inúmeras sequências de fragmentos se interconectam, entrelaçando a história de diversos personagens, a maioria batizada com nomes originários do que é hoje o Leste Europeu. Josef Platek é um programador que tenta vencer a morte, criando a transferência de memórias pessoais para computadores. Ele é ajudado em sua empreitada por sua madrasta Bertha Kowalski, uma imigrante que aprendeu a sobreviver na ordem instituída e fazer o que é mais vantajoso, contrariando muitas vezes seus próprios afetos. Jan Zamoski é o advogado contratado para garantir o verniz de legalidade aos experimentos de Platek. Tamara Voik é a jovem e brilhante cientista encarregada de criar um algoritmo capaz de dar às memórias transferidas a singularidade dos seres humanos. E Magdalena Górecki é uma das funcionárias empregadas para conversar com os clientes da empresa de Platek que já foram transferidos e transformados em arquivos digitais. É em torno desse grupo, ladeado por outras figuras secundárias, que se desenrola a trama ficcional.
Com tantas fragmentações, era de se esperar que a ordem cronológica fosse quebrada, o que de fato ocorre. São três os principais tempos da narrativa: o início das pesquisas de Platek ainda em solo firme, o período em que ele e sua equipe têm que desenvolver seus trabalhos a bordo da Nau Continuum em alto-mar, tentando escapar das regras em torno do uso do sinal digital, e o momento em que, após terem concluído com êxito todas as etapas necessárias ao invento, desembarcam novamente no Continente e fundam uma companhia com o mesmo nome do navio. O efeito conseguido pela interposição constante de cenas com protagonistas e tempos diferentes é um certo atordoamento inicial nos leitores, que podem demorar um pouco para apreender o que se passa e qual é o todo da situação que está sendo narrada. Talvez seja algo semelhante ao que acontece com as pessoas que passam pela neuromigração, termo adotado pela Continuum Co. para o procedimento que realiza. Dessa forma, existe uma correspondência entre a técnica narrativa e o conteúdo do enredo, contribuindo para a coerência interna do romance.
A principal temática envolve a discussão a respeito dos limites entre vida e morte no contexto das novas tecnologias. Platek deseja evitar a mesma moléstia degenerativa que acometeu seu pai, uma demência devoradora de memórias e do controle de músculos e órgãos que os apurados métodos de diagnóstico já rastrearam em seu relatório médico. Portanto, o primeiro arquivo, nomeado de A01PLK, é aquele preenchido com suas próprias memórias, sendo que Platek “passava dezoito horas por dia com a mente plugada aos cabos que conduziam os impulsos elétricos ao biodisco. Para abastecer o sistema, ele se obrigava a produzir lembranças verdadeiras” (MAHON, 2017, p. 39). Contudo, apenas o registro das imagens que já existem na mente não tornaria o computador tão humano quanto a pessoa de carne e osso.
Tamara Voik é, então, a responsável por introduzir no software um modo operacional autônomo, algo que permite que o computador faça escolhas, não levando em conta a economicidade ou a eficiência, mas critérios pessoais, como as preferências de cada indivíduo. Depois de digitar os comandos para que o algoritmo da singularidade se integre ao sistema, a programadora estabelece com ele o seguinte diálogo: “Podemos saber o que está diferente? AGORA NÃO SOU MAIS A01PLK. VOCÊS ME CONHECEM. SOU JOSEPH PLATEK” (MAHON, 2017, p. 118). Para registrar a fala de todos os neuromigrados, é utilizada uma fonte diferente, exatamente como ocorre nesse trecho, marcando visualmente a diferença da voz metálica produzida pela máquina. A seguir, a transmissão completa de Platek para o software é realizada diante das câmeras e televisionada para todo o Continente. Seu corpo finalmente perece enquanto sua mente é transferida para o computador. O procedimento é considerado um sucesso pelos membros da equipe porque a figura holográfica que se projeta da tela se apresenta como Platek e responde às perguntas, levando em conta seu arsenal de experiências. Mas até que ponto se pode saber se o experimento foi realmente bem-sucedido? Como ter certeza absoluta de que o software é mesmo a mente da pessoa que antes vivia num corpo composto por células?
Bertha Kowalski, embora seja a sócia mais empenhada na manutenção da empresa, sente um mal-estar quase indisfarçável diante do aparelho: “Por isso, todas as vezes que saía da cabine 001 [na qual o software de Platek era projetado], parava ao lado da porta e, por alguns segundos, tomava fôlego suficiente para seguir adiante na ronda sem que a borda do olho fosse vazada por nenhuma lágrima” (MAHON, 2017, p. 75). Não demora, e o incômodo também é sentido por clientes e funcionários. A Continuum Co. é chamada de clube dos mortos. Seus contratantes, os neuromigrados, não podem deixar suas cabines e se submetem a um rígido protocolo, estando à mercê das atualizações (e decisões) dos diretores da companhia. Nesse sentido, mesmo que o software represente a continuação do organismo que cessou de existir, valeria a pena permanecer vivo num ambiente tão restrito e controlado? A autonomia inerente à vida humana não teria sido sacrificada em vão?
Na verdade, a sociedade fora da Continuum Co. também é rigidamente controlada, o que permite a afirmação de que há um paralelo entre o macrocosmo e o microcosmo da narrativa. Os que ainda estão em seus corpos também têm uma vida restringida por códigos e severas ordenações. Mas não parece haver uma conscientização a esse respeito. Ao contrário, todos os habitantes do Continente de Áries se esforçam por se integrar o máximo possível nas engrenagens do corpo social, mesmo que isso implique assumir atitudes extremamente penosas. Nisso se assemelham às suas contrapartes encerradas nas cabines da Continuum Co., que, tentando se desvencilhar da morte, acabam determinando, para si mesmos, um destino bem mais terrível. Talvez os selvagens dos outros continentes vivam de uma forma melhor, e o fato de não apresentarem uma genética considerada perfeita não impeça que sejam mais felizes do que os arianos.
Dessa forma, também se imiscui no livro a discussão a respeito da alteridade e das hierarquizações entre grupos humanos. É possível que o desenvolvimento das super tecnologias realmente conduza algumas sociedades a se julgarem superiores a outras. Existe amiúde uma articulação entre a tecnologia e a colonialidade do conhecimento, na medida em que o domínio de uma técnica implica frequentemente a dominação ou, pelo menos, a inferiorização de outras sociedades que não a conhecem. Mas essas narrativas distópicas questionam a pertinência desse modo de pensamento, já que um elevado avanço científico pode não trazer benefícios reais para as pessoas, servindo inclusive para limitar ainda mais as suas vidas.
O surpreendente, em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski, é que a conscientização começa a surgir justamente nos neuromigrados. São eles que passam logo a questionar a experiência que tornou possível a continuidade de suas vidas na forma de softwares. Platek, por exemplo, faz uma confissão a Magdalena, depois de se apaixonar por ela: “Não sou a mesma coisa de antes, garanto. Eu me lembro de correr pelo campo ainda muito novo, mas não sei como é correr, entende? […] Eu sou um espelho do que fui, uma cópia imperfeita, que nunca deveria ter existido” (MAHON, 2017, p. 190). Ele também demove Jan Zamoski e sua esposa de realizarem a migração de seu filho Adam, há anos em estado vegetativo, para uma máquina, convencendo-os de que seria uma condição ainda pior para o menino. Percebendo que sua existência atual é bastante insatisfatória, para dizer o mínimo, Platek, então, pede a Bertha que destrua o seu software, algo que o protocolo lhe garante. Porém, o título do livro indica de quem é a decisão final nesse romance. É a perspectiva pragmática de Bertha que acaba prevalecendo, são as suas memórias que realmente contam, imprimindo a perspectiva de alguém que fez de tudo para se adequar ao sistema e às suas maquinações.
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“Narrativa distópica e conscientização em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski” é uma resenha de Divanize Carbonieri sobre o romance de Eduardo Mahon. O texto foi originalmente publicado na Revista Sociopóetica, v. 2, n. 20, 2018 (http://revista.uepb.edu.br/index.php/REVISOCIOPOETICA/article/view/4355/2758).
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