Na entrevista da semana, Eduardo Mahon conversa com o grafiteiro Adão Silva Segundo, conhecido por Babu78, reconhecido nacionalmente pelas mostras de grafite desenvolvidos em vários Estados brasileiros.

 

Mahon: A arte contemporânea está nas ruas, a apreciação é coletiva ou, pelo menos, a tendência é essa. Fisicamente, é impossível todo mundo ir ao museu num final de semana. Qual a função desse espaço na pós-modernidade?

Babu: Eu vejo a batalha a favor dos museus. Esse movimento é mundial. Noutros lugares, o centro de defesa de arte é outro. O museu é um meio de propagação, de divulgação. No entanto, os modelos de museus que existem são caros, tanto pra iniciativa privada como para o poder público. A rua que era uma alternativa, hoje é regra. Portanto, a quebra do sistema convencional de arte e de educação, faz com que o próprio apreciador vá ao encontro de saber o que queira saber.

Mahon: Conservamos um modelo burguês de arte. A arte que serve para adornar o ambiente privado ou enaltecer o ambiente público. Com as molduras, a arte tornou-se ainda mais objeto de consumo, um fim em si mesma. Antes disso, havia o grafite e o mosaico para adornar, mas havia o problema de não ser colecionável. Acho que isso perdeu o sentido. Ninguém consegue sentir a mesma emoção com a Monalisa. Mas se o observador sai à rua, depara-se com um mural, vai se surpreender.

Babu: Esse mercado tradicional vai sempre existir no nosso modelo econômico. O que há é uma profunda alteração na forma de ver a arte. Do caldo cultural do hip-hop surgiu a street art, com o empenho acadêmico no meio. Dentro da cultura do grafite, existe normas não escritas, um conjunto de regras que precisa ser conhecida. Essa estrutura está ligada à destruição, à rapidez, à assinatura, toda uma metodologia de realização, uma cultura até então desconhecida. A rua é o meu suporte, sem dogmas e sem medo. Essa é uma nova forma de fazer arte.

Mahon: Eu iria questionar a questão da destruição no final dessa entrevista, mas você se adiantou. O sentido da arte burguesa é o colecionismo, a agregação de valor com o tempo. Finalmente, o gozo individual. No grafite, ocorre um duplo movimento: é possível falar num direito autoral em contraposição ao direito de propriedade. Pergunto: de quem é o muro grafitado pelo Babu?

Babu: O muro continua a ser do dono do muro! (risos) De forma nenhuma, estou tirando o direito da propriedade. Mas a arte me pertence e pertence a todo mundo da comunidade. Tenho direitos autorais naquela arte. Mas é a comunidade que decide o destino daquela arte. O muro continua sendo do proprietário, a função do muro continua sendo a mesma. Mas, ao mesmo tempo, o dono tem um compromisso estético com quem está além do muro. Ser dono de alguma coisa significa muito mais do que o pertencimento. É uma responsabilidade.

Mahon: Deixa ver se entendi direito: se eu não fizer nada com o muro, estaria dando à comunidade o direito de fazê-lo. É isso?

Babu: Exatamente. Eu acredito nisso como artista independente. As empresas que usam do grafite devem pagar direito autoral, mas o direito à apreciação é coletivo. Eu ainda acho que o valor agregado ao muro é enorme. Soma muito. Já imaginou eu ter um muro branco e acordo com um Mirage, um Kobra, um Zezão, os Gêmeos pintado? Tem gente que tem um portão no Cambuci que acorda e vê seu muro pintado por alguns deles. Isso nem tem preço.

Mahon: Outro elemento de mudança na visão convencional é a transitoriedade. Convencionalmente, a arte é feita para expor, conservar, colecionar. Isso mudou bastante com as instalações e as performances. O grafite influiu também, porque é uma arte transitória, sujeita ao clima, aos outros grafiteiros, ao dono do muro, enfim. É possível até que caia o muro. Você se incomoda com a intervenção na sua arte?

Babu: Não me incomodo com a natureza transitória da minha arte. Nunca pensei dessa maneira e nunca entendi que a arte seja permanente, para sempre. Os produtos artísticos são efêmeros. Com o tempo, virão outras coisas. Sinceramente, acho importante o registro, mas a verdade é que essas coletâneas são tão fatiadas, tão parciais, que se distanciam do próprio artista. Muito livro escrito por PHD é uma bobeira, não passa perto do que estava na minha cabeça na hora de grafitar uma obra. Mas nunca vou reivindicar um muro por causa do meu grafite. Nem quando eu era mais novo – quando era mais grafiteiro – pensei assim. Eu queria pintar o muro dos outros, grafitar, destruir.

Mahon: Por quê? Me diz qual é o pensamento subjacente nessa vontade.

Babu: Fiquei encantado com a minha turma. Eu era um guri bonitinho, gordinho, de classe média que se encontrou com uma tribo nova no CPA, setor 5. Eu era o mais novo de uma família de oito, onde seis são adotivos e eu, legítimo. Eu era o reizinho. Depois quebramos. Meu pai era garçom do Bataclan, serviu até na Carminha aqui em Cuiabá! Mas meus pais não tiveram a menor preocupação com dinheiro. Daí encontrei essa tribo e queria ser participante daquilo tudo. Fiquei encantado com o grupo, a organização: eles andavam à noite juntos. Qual criança não gosta disso? Depois, veio a galera do skate. Outra tribo, outra linguagem. Cheguei a andar em cima dos ônibus na RDB – Ratos do Beirão! (risos) O caos social me encantou.

Mahon: E na maturidade? O que serviu essa experiência? Isso tudo foi uma etapa?

Babu: Participo de muitos grupos de onde tiro parâmetros dessa trajetória. Pra mim, foi importante vivenciar isso de forma profunda para formar o processo artístico que estou hoje. A rua é vandalizadora, violenta, necessária para a minha formação. Às vezes percebo isso na arte de alguns e não vejo isso na arte de outros.

Mahon: Mas você fez a transição entre o pixo e o grafite. Tem o trabalho concorrido e valorizado. Participa de mostras internacionais. E quem ficou no pixo?

Babu: Não vejo que haja uma diferença. Também não acho que o pixo seja “metade do caminho” para o grafite. Nunca coloquei as coisas nessa escala. Muito pelo contrário. A pichação é a arte legítima das ruas. Pra mim, hoje em dia, o grafite nem é mais arte de rua, é uma coisa que se pinta na rua e se vende na galeria. A turma que era do “vandal” antes tenta se virar para ganhar uma grana e se sustentar. O grafite já se institucionalizou. A pichação continua a ser o mais legítimo de urbano. Mano, tudo o que existe de rua está no pixo. Vai confrontar tudo o que significa a arte burguesa. A pichação está aí para mostrar o que, nos Estados Unidos, foi possível na década de 60: uma galera que não é aceita, não é bem vista, tem um novo meio de pensar, de discutir questões sociais, de se relacionar com a propriedade. Existe um processo artístico que está discutindo valor social, valor econômico, linguagem de novos caracteres a despeito do alfabeto convencional, entre outras coisas. Surgem novas formas de escrita: o enroladinho, a linha reta, a curva longa. Imagine um gurizinho de São Paulo desconfigurando o alfabeto, criando um inteiramente novo!

Mahon: Vou me colocar no papel de advogado do diabo para que a pessoa que esteja lendo compreenda perfeitamente o seu ponto de vista. Qual a lógica de pixar nas pastilhas do décimo oitavo andar de um edifício? Qual a mensagem?

Babu: Esse movimento de rua é uma coisa tribal, simbólica. Organiza-se coletivamente. O pichador não tem o valor cultural que um grafiteiro tem, mas manda mensagens claras aos sujeitos da sua tribo. Tem muito pichador é que entregador, motoboy, vive uma vida dura e tem problemas existenciais. Extravasam na pichação, formam um conceito novo de relacionamento com a cidade. Essas pessoas tem o mesmo tipo de sentimento.

Mahon: Quais são as regras básicas de quem está na rua?

Babu: É preciso respeitar o outro. Não se pinta por cima do trabalho dos outros, sobretudo os clássicos, os que os pichadores reconhecem como clássicos. E, se acontecer, é preciso “zerar”, ou seja, grafitar completamente por cima. Com relação à opção de muro, depende do artista. Cada um escolhe o que quer. O Massive pinta com extintor de incêndio e manda mensagens sociais. Vandalizador demais! Pichou manifestação política na frente da Globo – Golpistas! Pintou na frente de uma igreja em Salvador – perdoai os vossos pecados. Esse cara entrou na Bienal de São Paulo e pintou uma parede branca. Foi ovacionado pelos grafiteiros e pichadores.

Mahon: O pichador tem outro olhar para a cidade?

Babu: Sim, o pichador mapeia a cidade, enxerga a cidade de uma outra forma, de uma maneira que você não vê. É preciso saber as regras de horário, a organização local etc. Já fiz bomber numa banca de revista na Avenida Paulista com o Sliks. Ele calmamente retirou os cones de segurança do carro, amarrou fitas no entorno, colocou o uniforme da prefeitura e me disse: “mete o dedo!”. É preciso também não “esparramar” na calçada. Só tira o tubo que se picha. A cor da roupa influencia no trabalho e no horário. Enfim, um conjunto de regras da tribo. O “toy” é o maior pecador. Quem copia o trabalho do outro é como se cuspisse na cruz. O pichador precisa encontrar uma identidade visual própria. Não se admite cópia. Isso vem da cultura do hip-hop e da originalidade que tem dentro dela. Ninguém canta cover dos Racionais. É impossível fazer cover do Emecida.

Mahon: Mas, por mais que haja essa procura da individualidade, curiosamente há uma “escola”...

Babu: Sim, claro. Há regras visuais que identificam determinadas escolas de grafite. Efeitos, tipos de letra, quantidade de cores. Os tijolinhos, por exemplo, é uma estética dos anos 90. Os bordlines variam de tempos em tempos. Isso não só para as letras, mas para todos os tipos de desenho. Ainda assim, o sujeito precisa encontrar uma identidade pessoal.

Mahon: Existem movimentos que priorizam o conteúdo da fala? Ou é priorizada a estética em si mesma? No grafite, o conteúdo é evidente. Mas no pixo...

Babu: Na pichação, há a assinatura do cara. A própria assinatura já é a mensagem. O pichador não quer mandar a mensagem. A ação de pichar é uma mensagem social, uma postura de questionamento, uma linguagem marginal.

Mahon: Num determinado momento do nosso papo, você diz que não vê escalas entre a pichação e o grafite. Mas, em termos de conteúdo, percebo que a pichação é menor ou mais pobre que o grafite. No grafite, é possível desafiar claramente um sistema com ironia que tenha sentido.

Babu: De fato, realmente é. Mas é mais fácil aceitar essa arte, ainda que subversiva, “no aquário” e não na rua. O pixo tá na rua, não é tem forma, não tem ordem. A pichação ainda é agressiva e as pessoas não conseguem se conformar com ela. Muita coisa que, ao longo da história, já foi questionada como arte hoje é aceita nessa categoria. Eu vejo a pichação como algo que está inserido na selvageria. O grafite é domesticado. É mais fácil de aceitar, de conter, enfim. O grafite tem um conteúdo mis burguês. A pichação é mais rude, mais verdadeira. Ela evoluiu muito – do simples nome no muro à sistemática vandal: o cara que sai três vezes por semana, tem caneta no bolso e boletim de ocorrência nas costas. Esse é o artista da pichação.

Mahon: Em que ponto a pichação influencia a vida social do pichador?

Babu: A pichação é mais segmentada. O grafiteiro frequenta um meio social mais amplo, viaja, fala três ou quatro idiomas. Mas o pichador tem uma base cultural diferente, mais restrita. O pichador tem tanto respaldo como o grafite. Ocorre que o grafiteiro admira o pichador, mas o pichador não admira o grafiteiro, conforme já falei. Tem muito grafiteiro vendido, que não é mais raiz, que saiu da rua, que está no conforto...

Mahon: O grafiteiro se aburguesou, digamos assim!

Babu: Exatamente. A pichação tem um diálogo menor por causa da natureza radical da postura do profissional. O movimento da street art que migrou do hip-hop não tem nenhum tabu dentro da temática, nem preconceito contra a forma. Conheço um cara chamado Yako que faz letra cursiva como a coca-cola, outro que é Só Love e faz um coração e, nem por isso, é visto de forma depreciativa. A questão é a domesticação ou não do próprio profissional.

Mahon: Você tocou num ponto que é caro para os estudiosos de letras que é a desconstrução do alfabeto e o nascimento de outros símbolos para substituí-lo. Em matéria de comunicação, funciona internamente, entre as tribos urbanas. Nós que estamos acostumados com o alfabeto tradicional, não entendemos esses novos símbolos. Como fazemos para entendê-los?

Babu: A questão do entendimento está relacionada com a vivência. Esse código, esse novo código de linguagem é identificado por quem vive o meio, a maneira de ser da rua. Tudo é um código, na verdade. Nós dizemos quem somos na pichação e no grafite. Se estou a procura de individualidade, essa grafia vai ficar cada vez mais evidente diante dos outros. As pessoas que não entendem, na verdade, não querem vivenciar esse contexto, aquilo não é importante para elas. Se essa linguagem não é relevante, ela não será entendida.

Mahon: O que você falou é muito importante quanto à linguagem. Quero me aprofundar. Você acha ser preciso um “tradutor”, uma espécie de “curador” que apresente essa linguagem nova ao público que não a compreende?

Babu: Como tudo na vida, é preciso atenção. Se as pessoas não estão inseridas nesse universo, não vão entender. É preciso imergir, ter uma imersão.

Mahon: A arte não precisa de manual, não precisa ter legenda para ser entendida. A arte, em última análise, precisa ser sentida e, depois, percebida.

Babu: Mas é preciso entender para sentir. Necessariamente, há uma história dos recursos utilizados pelo grafite. O público precisa entender a trajetória. Muita gente viu o vídeo que fiz para o prêmio Pipa, onde passei para a segunda fase, e começou a entender os esclarecimentos que dei. A arte não serve apenas para a contemplação, não serve para ser bonita. Quando mais eu entender os elementos usados pelo artista, o grau de dificuldade e de originalidade, mais me emociono. Comecei a fazer os tags. Depois passei para as letras vomitadas. Depois usei duas cores com a minha assinatura – eu era o meu próprio motivo. Em seguida, como queria viver de arte, comecei a criar personagens. Esse primeiro contato foi no ateliê do Silvio Sartori.

Mahon: Eu adoro a sua fase onde você pinta meninos e meninas no alto mar, em meio a tubarões. O que significa essa imagem?

Babu: Aquilo comecei a compreender depois que voltei de São Paulo. Saí daqui de Cuiabá e me deparei com outros trabalhos, outras realidades, outros artistas, me senti mergulhado nesse mundo até o nariz. Afogado mesmo.

Mahon: Quem seriam os tubarões? E os barcos de papel? Eu os acho de uma ludicidade incrível.

Babu: Depois que faleceu minha mãe, meu pai ficou muito abalado, ainda que fossem separados há anos. Ele bebia o dia todo, escutando a mesma música do Trio Parada Dura – eram dois barcos remando na imensidão sem fim. Quando escutei essa música de novo, eu quis morrer, chorei muito. Os barcos surgem nesse período. Mas são barcos de papel. Representa a fragilidade. É isso que representa um barco de papel – um conforto frágil. Daí comecei a cuidar da casa. Das coisas da casa. Foi então que passei a grafitar as plantas.

Mahon: Você está imerso num meio onde as artes plásticas estão centradas nas impressões locais. Acho mesmo que há uma tentativa por fixar uma iconografia própria, cuiabana e mato-grossense. Hoje está massificado, inclusive. Mas não vejo nada de regional no seu trabalho. Nós emitimos mensagens em tudo o que fazemos: na presença e na ausência de elementos. Essa ausência de regionalismo é intencional?

Babu: Fico profundamente ofendido quando dizem que sou regional. Poxa, cara, o fato de ser cuiabano não é suficiente? Que merda mais vocês querem de mim?! O fato de eu ser cuiabano, de colocar meu nome nos cartazes, nos folders, nos anúncios com a cidade Cuiabá, Mato Grosso, o que mais vocês querem que eu faça? Querem que eu coloque um caju? É isso? Eu me sinto inserido no contexto quando pinto as espadas de São Jorge. É isso que eu vejo na cidade. Não vejo isso no Rio de Janeiro. Isso é para quem tem quintal. Mas essa história de regionalismo, não faço questão e não me abala nenhum pouco.

Mahon: Outra curiosidade. Quando vejo os seus meninos não percebo a sua identidade racial. São todos brancos, ruivos até. Os traços bem afilados etc. Onde está o preto? Você acha que o grafiteiro tem esse tipo de compromisso?

Babu: Numa época em que morava em Chapada, eu pintava índios. Me sentia mal por causa disso. Eram bonitos, todo mundo gostava, pagava as minhas contas, mas não me sentia pertencente naquilo, representativo. Hoje isso é muito forte. A verdade é que nunca fui de pintar muitos negros. Não estou nem aí. Isso nunca me incomodou.

Mahon: Você acha que é um traidor de representatividade? Porque hoje em dia só se fala disso, estão consolidando um tabu às avessas, uma espécie de reserva ideológica de mercado.

Babu: Minha mãe dizia que eu era traidor do movimento. Eu só pegava mulher branca. Dei duas netas brancas a ela (risos). Atualmente, estou grafitando com mais significação. Por exemplo, os meus astronautas e os escafandristas, assim como o coração, são símbolos de introspecção, de viagem para dentro.

Mahon: Por que não o cérebro?

Babu: Para mim, o cérebro é um grande arquivo. O coração é meu símbolo de procura. Há três amplitudes a serem exploradas: o ar, o mar e nós mesmos. São justamente o astronauta, o escafandrista e o coração. Estou agora fixado no universo ou em dois universos paralelos. Quando criança, eu queria ser astronauta.