FORTUNA CRÍTICA - OLGA CASTRILLON-MENDES
A CRÍTICA, A PESQUISA, OU UM OLHAR SOBRE “A GRAMÁTICA DO ROMANCE CONTEMPORÂNEO”, DE EDUARDO MAHON
Olga Maria Castrillon-Mendes
Dentre muitos, três aspectos/perspectivas destaco do livro A gramática do romance brasileiro, de Eduardo Mahon, fruto da tese de doutoramento, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários/PPGEL/UNEMAT. Tais aspectos são decorrentes do meu particular interesse pelo tema desenvolvido: os possíveis caminhos da pesquisa na literatura brasileira; o olhar sobre a crítica e a proposição de uma reescritura da história literária. Esses caminhos/perspectivas estão interligados em suas estruturas básicas. São reflexões sobre o romance brasileiro contemporâneo, minuciosamente visto em projeção, sem perder os elos com a tradição, mas nem por isso considerada imutável. Ou seja, o ordenamento das ideias, a exposição dos argumentos, as escolhas, a estrutura do texto, o tema, enfim, são aspectos colocados diante de um raciocínio que disponibiliza o aparato de reflexão, os operadores dos elementos lógico-formais, que sustentam a verticalidade do olhar diante de outras (e novas) bases de reflexão, o que dá ao texto a dimensão orgânica requerida pelos argumentos. Estes argumentos seguem uma lógica temporal e espacial de modo a fornecer subsídios para que se possa refletir sobre as ocorrências simultâneas do inter e do intratextual. Então, temos uma base teórica centrada em pontos de vista sobre as técnicas narrativas dos livros elencados, que fornecem um panorama da história e da crítica literária. Muitas vezes, por um lado, são deixadas de lado pelo grau de compartimentação e incomunicabilidade das áreas e campos acadêmicos; por outro, impedem a possível relação recíproca de trocas e empréstimos, que rompem certas limitações e fomentam as perspectivas inusitadas do olhar sobre velhos objetos. A farta bibliografia, sistematicamente colocada em diálogo, dá conta de demonstrar até que ponto o pesquisador desejou (e conseguiu) documentar as lacunas, as divergências (e muitas vezes incoerências) que foram deixadas de lado, ou abordadas apenas sutilmente ao longo dos tempos, pela história e pela crítica literária.
A pesquisa é resultado, basicamente, das leituras/releituras da produção literária brasileira, dos romances contemporâneos, a partir do paralelo com obras passadas. A delimitação dos textos (corpus) segue, claro, as preferências do pesquisador e a necessidade de demonstrar o mais abrangente panorama do romance brasileiro contemporâneo. Nesse sentido, o mérito do livro é inegável, tanto para a história quanto para a crítica literária brasileira, mormente quando o sentido está na inserção da produção mato-grossense, muitas vezes considerada “marginal” ou desprestigiada, como tem acontecido no universo nacional. É inovador e passagem obrigatória para os que se interessam pelo tema.
Assim, o texto pode ser lido à luz dos princípios propostos por Roland Barthes, “levantando os olhos”, como diz em A/Z, ao tratar da fabricação/construção dos sentidos pelo leitor, em O grau zero da escritura, reflexão que tem mais de meio século de publicação. São variações de graus da escrita para representar a literatura moderna em movimento. Como diz, na abertura do ensaio, “A escritura é um modo de pensar a literatura, não de estendê-la”. Pelo que me consta, temos ausência da temática aqui abordada, da forma como está feita, numa abrangência mais verticalizada. Talvez os americanistas são os que se estenderam nessa proposição, como acompanhamos nos Congressos Internacionais do Grupo de Estudos.
Como o texto de Barthes, o livro tem uma estranha força que é intrigante, sobre a história e a crítica contemporânea. Ressignifica o estilo e a temática quando estes tem perdido um pouco a sua força. Como para Barthes, é desde o início de cada parte, vigoroso. Tem a tessitura narrativa que enreda o leitor, o que é uma característica do pesquisador, quando se empenha na ficção.
Compartimentalizando o texto, temos os seguintes princípios:
- “O país nasce da ficção. Funda-se no imaginário e o escritor é tido como fundador”, o que significa pensar em um país inventado em que se reforça a necessária passagem pela literatura de viagem, a tarefa histórica e a fórmula identitária, para que o povo adquira um “método” de compreensão que está na base do “instinto de nacionalidade”. Por isso a necessidade de marcar a ideia fundacional da literatura. José de Alencar pensou esse núcleo, que também está proposto no livro: a terra, o homem e a relação entre eles. Visconde de Taunay reviu e Euclides da Cunha o fortaleceu. Fez isso através da descrição que fortemente marcou um tempo e um espaço de produção que proporcionou a constituição das imagens de e sobre o Brasil. E isso permaneceu no imaginário coletivo. Foi tão forte que não o puderam negar, a não ser imitando-o e/ou reafirmando-o continuamente através dos tempos. A ideia alencariana é fruto da elite pensante do país. O “nativismo literário”, um regime de imagens que consolidou o Romantismo, e ressoa até hoje, gerando os anacronismos. Esse é o Mote.
- “A terra pariu o homem”, expressão tomada de Antônio Torres, na 1ª parte do livro: A terra – sinaliza o percurso histórico e, ao mesmo tempo, as ambiguidades da história e da crítica, o programa descritivo em busca da brasilidade (romancistas comportando-se como viajantes). A atualização do tema, está sinalizada desde a epígrafe, foi tomada da oralidade. Quando se discute a conhecida colocação sobre “literatura pobre e fraca”, de Antônio Candido, Eduardo Mahon coloca suas reflexões sobre uma temática que continua a reverberar sentidos. Em muitos pontos, concordando com a proposição de Candido.
- “Antes mesmo da terra parir o homem, as almas tomaram a decisão de encarnar o Brasil” (2ª parte – O homem, p. 95). Na impossibilidade do conceito de Brasil, o sertão e o brasileiro são peças do sentimento estrangeiro, o que é provado pelas teses de raça, de identidade, de progresso (civilização X barbárie), ou seja, mantem-se a fixação telúrica. Nessa parte do livro há certa comprovação das hipóteses, pois nas obras selecionadas são detectados os enfrentamentos estéticos, a continuidade das imagens da tradição e as estratégias narrativas. Como diz textualmente o autor, “pouco foi alterado em suas estruturas básicas”. E continua: “o que se discute no romance contemporâneo é a identidade brasileira [...] o determinismo biológico, o fatalismo geográfico e o conflito racial são temas onipresentes”. “Ciência, modernidade e progresso são os inimigos da brasilidade durante o século XX, o que os intelectuais buscavam no romance era a verdade, não a ficção” (p. 125). Surgem, aqui, três hipóteses, que são perspectivas trazidas pela pesquisa e que fortalecem a relevância do estudo: 1) o Brasil não alterou profundamente suas relações sociais e o público se mantém ligado ao retrospecto histórico; 2) os leitores continuam condicionados ou 3) os romancistas resistem a novas formulações (idem).
- “O Brasil nasce do sertão e o sertanejo é o primogênito da terra” (3ª parte – A luta - p. 147). Os enfrentamentos estéticos são casos excepcionais para além do georreferenciamento, situação muito bem comprovada por Murilo Rubião, Hilda Hilst, Nelson Rodrigues, entre outros, considerados “os desenraizados”[1]. Nesse ítem, o texto se abre de uma maneira incômoda, mas ao mesmo tempo, converge para reavaliação da crítica e da própria produção literária. A pauta política dos textos brasileiros é recebida com ressalvas por leitores estrangeiros. Então, por que os escritores são premiados??!! Essa é uma questão que acompanha o leitor durante todo o texto.
Sou tentada a dizer que a “escritura” do texto não se situa frente apenas ao espaço da produção literária, mas diante da linguagem. É a escritura que se deve compreender/repudiar como paradoxal e até movida pelo engajamento. Escrever, nessa acepção é promover rupturas, quebras do já estabelecido/consagrado, uma espécie de “quebra do circuito social da obra”, como diz o pesquisador. Nesse sentido, você vê as coisas de perto e de dentro, buscando a renovação.
De maneira geral, e ensaiando algumas considerações parciais, o livro, resultado da pesquisa de doutoramento, cria algumas teses sobre a produção contemporânea:
- No contemporâneo há reprise das imagens românticas, ou revisão contínua dos marcadores históricos, geográficos e sociais. Nostalgia oriunda do tempo que não volta mais e idolatria do lugar (contradição ser/estar das personagens). A ideia de sertão e de crítica sem amostra dos conflitos repousa aqui.
- Aciona algumas abordagens (futuras), incluindo a revisão das suas próprias conclusões e cutuca o leitor: ao invés da literatura, não seria a crítica fraca e pobre? Nesse sentido, há certa inversão da abordagem de Antônio Cândido (sem abandoná-lo), sobre a abordagem das origens e constatação da brasilidade/nacionalidade, apontando para o tema central do sociólogo: a formação do sistema literário brasileiro. No entanto não se desvincula da mesma visão sistêmica: “o que pretendi aqui foi acrescentar uma visão sistêmica ao conjunto de sistemas em que se organizam as manifestações literárias brasileiras” (p. 210). Então, a reflexão continua em outros patamares. Felizmente!
Estamos, pois, diante de um tema poroso que sempre continuará a nos dizer sobre a produção literária brasileira em suas relações internas e externas. A superação dos resultados da pesquisa, a meu ver, está na ousadia: 1) de mostrar as falácias da crítica e 2) atingir o cerne da questão da historiografia, que é de continuar ignorando as assimetrias regionais. Ou seja, nós “continuamos a ser modestos demais, fracos demais, românticos demais”. Então, Candido ainda fala para nós desde sua tão citada Formação da literatura brasileira, da década de 1950.
Concluo dizendo que o texto chega em boa e necessária hora, quando aborda, certa totalidade na vertente de uma re-visão da história e da crítica literária e um clamor de novas atitudes críticas.
A oscilação entre as tentativas de crítica literária e a tarefa de historiador da literatura perpassa os argumentos trabalhados pelo pesquisador, adquirindo aí, precisamente pela confluência e paroxismo dessas tendências, um estatuto que pode iluminar as conexões entre os vários ramos de conhecimento, muitas vezes desprezados: as questões de estilo e seus significados históricos e culturais. Se, portanto, é possível discernir, por um lado, o manejo do aparato de crítico literário, na identificação de tropos ou na análise ponderada dos valores estéticos das obras, por outro lado, torna-se visível a mão do crítico. O resultado final e a organicidade, no entanto, obrigam a suspeitar de que haja mais conexões entre os dois polos apresentados: a dicotomia histórica e a crítica literária no conjunto dos argumentos propostos pela pesquisa, que ora vem à luz pela publicação do livro.
Nos trechos onde prevalece a simultaneidade destes dois saberes, o crítico e o leitor se superpõem harmonicamente. Assim, Eduardo Mahon nos encaminha para o entendimento da especificidade de épocas e de universos mentais distintos do nosso, destacando, por exemplo, a tensão dialética, as interferências entre o corpus e o enfoque do analista e do crítico, que nem sempre se resolvem na reconciliação marcada pela figura do historiador da literatura. Nos momentos mais interessantes do livro, essas vertentes entrecruzam-se, gerando novas modalidades: o historiador crítico, revisitando o passado com um olho na historiografia presente, e que não hesita em colocar em cheque as ideias de Afrânio Coutinho e Gilberto Freyre. Ou o crítico historiador, reconstituindo eruditamente as conexões internas e externas, sociais e literárias, de uma narrativa contemporânea em suas relações com a tradição literária. Na composição, estas interferências ficam ainda mais claras.
A atenção de Mahon, entre continuidade e ruptura – uma constante em seus escritos, num diálogo permanente com o historicismo e a escola dos Annales – transmuta, porém, especificidades da crítica literária, tais como a determinação e filiação a estilos de época, em questões mais gerais da historiografia, de tal forma que o estudo sobre José de Alencar, Taunay, Távora e outros, deve ser visto como uma síntese dessas relações entre processo, tradição e inovação e/ou ruptura, sempre em dialética.
Nessa ótica, A gramática do romance brasileiro complementa a reconstituição da história literária do Romantismo ao contemporâneo. Tematiza a formação social e cultural do Brasil, detendo-se em processos paralelos. Nestes, a fronteira cultural gerada pela chegada do europeu, as novas modalidades de convívio, a mistura étnica e a aculturação, são examinadas à luz de uma experiência concreta e efetiva de diluição e recuperação do legado europeu. Trata-se de mostrar como a tradição literária do Ocidente se aclimatou no Brasil, mantendo seus recursos expressivos e, ao mesmo tempo, incorporando a realidade e as aspirações locais.
A par da afinidade de propósitos com muitos textos já conhecidos, este livro torna-se um exemplo ímpar, tanto de complementação e colaboração intelectual, quanto de a premente e necessária revisão da história e da crítica literária brasileira.
O termo “gramática”, do título é exemplar. Tal qual as muitas ambiguidades postas no decorrer do texto, pode ser o lugar descritivo/normativo em que repousa a necessária ideia contemporânea de re-visão, ou como quer o pesquisador, de re-posicionamentos.
Cáceres-MT, 11/11/2024
[1] Assim considerados por Florestan Fernandes ou mesmo “condenados e malditos” na linguagem de Franz Fanon.