SINOPSE
GALILEU DANÇOU POR MUITO MENOS – É conto ou novela? O livro Galileu dançou por muito menos é o 2º da coleção Contos Estranhos. O escritor Eduardo Mahon nos apresenta a história de Adalberto, um carioca preso no cotidiano frenético de São Paulo. Tudo começa com o problema no espelho veneziano, herança da mãe do protagonista. A partir daí, Adalberto terá uma relação tão desafiadora quanto insólita com a própria imagem. Quem sairá vencedor?
MARTA COCCO
DIANTE DO ESPELHO, O QUE HAVERÍAMOS DE REFUTAR?
(Marta Helena Cocco)
MARTA COCCO é professora universitária, escritora e poeta (/RS). Mestre em Estudos da Linguagem (UFMT) e Doutora em Letras e Linguística (UFG) e Professora de Literaturas da Língua Portuguesa na Universidade do Estado de Mato Grosso, campus de Tangará da Serra. Em 2014, encontramo-la participando de grupos de pesquisa Cultura, Política e Sociedade (Unemat/CNPq) e Literatura infanto-juvenil: poesia e prosa (Unemat/CNPq). Nesse período também participava de projeto de extensão Poesia Corpo e Cordas, além de coordenar um subprojeto do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência. Escreveu os livros: Divisas (1991), Partido (1997), Meios (2001), O ensino da literatura produzida em Mato Grosso: regionalismo e identidades (2006), Sete Dias (2007), Sábado ou Cantos para um dia só (2011), Lé e o Elefante de Lata (2013), Doce de Formiga (2014) e Meu corpo é uma fabricazinha (2020). Também publicou vários artigos em revistas científicas sobre obras de autores da Literatura produzida em Mato Grosso. Em 31 de outubro de 2014, passou a ocupar a Cadeira nº 18, da AML.
Galileu dançou por muito menos é dos cinco livros da coleção “Contos Estranhos”, de Eduardo Mahon. O título suscita expectativas, uma vez que o nome Galileu evoca nossa memória acerca do cientista famoso que se opôs ao geocentrismo de Ptolomeu, mas teve de refutar sua teoria para não morrer na fogueira medieval. Quando iniciamos a leitura, entretanto, essa expectativa fica suspensa, pois o personagem principal da trama chama-se Adalberto e não há notícias, nas primeiras páginas, de nenhum Galileu.
A história é contada em terceira pessoa, por um narrador onisciente que focaliza seu ponto de vista predominantemente sobre Adalberto, um sujeito metódico que se muda do Rio de Janeiro para São Paulo, ao casar com Silvinha, e passa a trabalhar numa seguradora com o sogro. Está no trânsito com a esposa, quando esta recebe o telefonema da empregada contando que quebrou o espelho veneziano, herança da mãe dele. Esse é o motivo complicador da trama, num primeiro plano.
Desse momento até a chegada em casa, o narrador onisciente, em terceira pessoa, nos dá a conhecer a rotina que permeia a vida do personagem, pressionado pelas exigências burguesas de consumo da família, pelas exigências de alcance de metas no trabalho, pelas exigências, enfim, da vida contemporânea. Pelo narrador, ouve-se, de modo prevalente, a voz de Adalberto. Essas duas instâncias, em alguns trechos, parecem misturadas, insinuando uma situação assemelhada à de focalização interna, daquelas em que um narrador de terceira pessoa possa ser traduzido por um de primeira, mesmo nos momentos em que se refira a outros personagens como a filha Maria Clara, por exemplo, em que o olhar de Adalberto empresta coloração ao discurso do narrador: “O fato é que Maria Clara amarrou Adalberto de uma forma que ele não imaginava. Nasceu mirradinha[...] Parecia que tinha preguiça de viver.”
Se não nos apoiássemos no imenso arsenal teórico já produzido pela teoria da narrativa no Ocidente que nos possibilita auferir a onisciência, nos arriscaríamos a dizer que Mahon, escritor hábil em recursos expressivos da língua como o humor e a ironia, propositalmente ou não, cria um narrador ambíguo, espécie de ventríloquo do personagem, que se apresenta em terceira pessoa, mas é ele mesmo, o personagem, falando de si como se fosse outro e dos outros como se, em tom de julgamento, estando a par de alguns fatos, pudesse compreender diante de si – do espelho - o que conspira para a sucessão dos fatos na história, com exceção do desfecho, em que o narrador definitivamente toma as rédeas da situação sem qualquer interferência do personagem.
A primeira parte do conto se encerra com a empregada, nervosa, diante de Adalberto que verificara que o espelho estava intacto. Nesse ponto, estamos, senão diante de um expediente fantástico, no mínimo, muito estranho, e nos encaminhamos para a segunda parte do conto:
Quebrou sim, doutor Adalberto!, Ficou louca, mulher?, O espelho está perfeito, acabei de olhar. [...] E por acaso o senhor viu-se refletido? [...] Voltou ao quarto, enquanto o nervosismo de Rose diluía-se no fundo da caneca que tremia na mão direita. Ao posicionar-se diante do espelho veneziano, veio o choque. Hão havia nada além de uma superfície prateada, nem sinal do homem gordo que ele havia se tornado. [...] Não falei? O espelho está quebrado, doutor Adalberto, se não reflete a sua cara, é sinal que não funciona mais. (MAHON, 2021, p. 27)
Na segunda parte, enfurecido com a avaria no espelho, Adalberto dispensa a empregada, convence a mulher e a filha a passarem uma semana no Guarujá e fica sozinho no apartamento.
Acuado no quarto, em tom de lamento, Adalberto revisa sua vida, a saudade do futevôlei e da feijoada do Rio em contraponto com o presente de São Paulo: “é mesmo o túmulo do samba. Não consigo pescar um pé de porco, acredita? O povo daqui gosta mesmo é de pizza” (p. 46), diz à mãe num telefonema, seguido de inúmeras lamentações e da sentença do narrador: “Adalberto, cartesiano como poucos, não se acostumava. Nem com a situação do espelho, nem com o casamento, nem com o cimento paulistano que cobriu os olhos coloridos do carioca” (p.48). Como leitores, entretanto, ficamos intrigados: se o sujeito é cartesiano, virginiano, metódico, por que não se adapta à rotina paulistana, afinal, o esperado seria justamente o gosto pela vida ordenada?! Por que sente tanta falta do lazer carioca? Parece ambivalente essa lamentação e a própria descrição que esse narrador faz do personagem, até quando reclama das ações da empregada, tão diversas de um costume aristocratizado que ele aprendera não se sabe com quem, e que também não combina com o saudosismo descontraído do Rio de Janeiro que lhe arrebata muitas vezes:
[...] – comentava com a mãe pelo telefone. Abriu mão de tudo, do futevôlei na praia de Ipanema, do pingado na padaria da esquina onde pendurava a conta, da feijoada do Bola, da vida boêmia com os transviados da Lapa e do que mais gostava: da corrida de cavalos no Jockey Club.[...](MAHON, 2021, p.14)
Isso de, como leitores, estranharmos as contradições do personagem, talvez seja um dos motes intencionais da narrativa, afinal, a contradição é inerente à natureza humana e ao fim e ao cabo, quando lemos a experiência do outro – personagem – nada mais fazemos do que interpretar a nossa condição humana.
Seguindo adiante, no outro dia, Adalberto amanheceu com um espelho falante ao seu lado. A partir daí, o que poderia ser apenas estranho passa definitivamente para o território do fantástico. O espelho diz a Adalberto o que ele quer/precisa ouvir.
O espelho como atualização do mito de Narciso é um motivo muito frequente na literatura ocidental. Um dos casos mais conhecidos é o do romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde. Na contracapa do livro de Mahon, há uma referência a esse livro. O personagem Dorian, de beleza ímpar, faz um pedido e é atendido: não envelhece, ao passo que o retrato, feito por exímio pintor, sim. Desde o mito grego de Narciso e até mesmo em outras narrativas míticas, como por exemplo no gênesis bíblico, a assunção da individualidade, a assunção do ego/consciência é seguida de uma queda, de uma interdição, de uma maldição.
Poderíamos fazer uma investigação da relação que o personagem Adalberto possui com o objeto espelho, respaldada na psicanálise freudiana, a partir de algumas pistas que a narrativa nos dá sobre a relação do personagem com a mãe, por exemplo: “Assim que se mudou para São Paulo, a mãe insistiu que o espelho fosse junto. “Leva para a nova casa, meu filho. Não, Senhora!, Fique com ele [...] Mas e a Senhora?[...] Eu adoro esse espelho e é por isso que eu o quero com você”. (p. 35). A influência/ presença da mãe aparece em outros momentos e parece indicar uma transição do narcisismo primário para o secundário não muito bem resolvida. Segundo Freud (1974), as realizações pessoais têm por base o ego que foi forjado a partir das identificações parentais e que permitiu o surgimento do narcisismo secundário em substituição ao período do narcisismo primário, quando a criança era o seu próprio ideal. Daí em diante, o ego idealizado passará a ser objeto dos investimentos libidinais que nortearão o desenvolvimento e fortalecimento do ego. Por que Adalberto não consegue se desvencilhar das opiniões da mãe e dos desejos de consumo da esposa? Ou, ao contrário, por que manifesta desejo de se desvencilhar delas? Por que se sente oprimido diante da nova vida em São Paulo? No limite, uma vez que apontamos uma desconfiança sobre a possibilidade de a visão do narrador estar contaminada pela visão da personagem, seria sua esposa tão somente fútil e consumista? Não há outras informações sobre ela no conto. E há a hipótese de o personagem ainda estar centrado na referência do eu narcísico da infância e juventude, a ponto de não querer assumir as responsabilidades de uma vida de adulto.
É possível que Adalberto projete sua felicidade no passado da vida de solteiro no Rio de Janeiro, quando podia atender aos seus desejos pessoais, portanto, ainda centrado numa individualidade narcísica, conforme pode-se inferir dos estudos freudianos. Para não nos limitarmos ao campo subjetivo e às influências do passado, no presente, e na relação com a personagem Silvinha, podemos considerar, também, outra abordagem teórica, a que leva em conta o narcisismo no espectro social, imbricado neste mundo contemporâneo.
Nesse sentido, é preciso pensar como, a partir da modernidade, os personagens principais das narrativas se modificaram e, de heróis notáveis que triunfavam depois de uma jornada de obstáculos, passaram a representar o oposto, sujeitos comuns, que fracassam diante dos problemas que os poderes individuais não conseguem transpor, mesmo estando deles conscientes:
Foi logo depois das núpcias que tomaram o cruel financiamento de juros exorbitantes, muito mais para agiotagem.[...]passou a enfrentar o severo trânsito para ir e voltar todos os dias, sem direito a sentir a brisa da praia e ver as ondas rebentando na areia.[...] Sentada no banco do passageiro, Silvinha sentia pena por não estrear o chapéu de palha comprado especialmente para esnobar as amigas do Guarujá. Isso é roubo, comentou o marido ao ver a fatura do cartão de crédito [...] item a item, debatiam os gastos mensais que consumiam os gastos e o salário do comedido virginiano. [...] (MAHON, 2021, p.20)
Nesta hipermodernidade, conforme a define o pensador Giles Lipovetsky (2009), com o agravamento das pressões de produtividade e sucesso, temos uma proliferação de narrativas que expõem o oposto do triunfo, a decadência. Aliás, uma mirada panorâmica no conjunto de livros já publicados por Mahon, aponta a decadência da humanidade como seu tema obsediante.
O ser humano, diante do espelho, confronta-se com as suas frustrações e, para além da degradação do corpo físico (...despiu-se do pijama e foi à frente do espelho ver suas costelas que despontavam... p. 60) vê/ouve a decadência da vontade de potência (...És um palerma completo!, [...]A mulher te consome, não vês? Gasta o que tens, suga tua alma. Para quê? Responda a ti mesmo... p.52). Há outros momentos em que o espelho, denominado pelo narrador de Adalberto II, para evitar a confusão das vozes, desfere xingamentos contra a empregada que vai embora de vez, contra o sogro que bateu na porta à mando da esposa que tentou ligar e ficou preocupada, contra o consertador de ar condicionado. O segundo diz, sem filtros, o que o primeiro jamais se encorajaria a dizer.
Voltando à caracterização da hipermodernidade segundo Lipovetsky, seu signo é a temporalidade do presente, a efemeridade e o gosto pela novidade. O novo narciso quer o gozo próprio, com liberdade e autonomia. Nesse ponto, talvez, haja uma coincidência com o narcisismo primário descrito por Freud, considerando que o eu, no momento inaugural da vida, é indiferente ao mundo externo.
Depois de dias trancafiado no quarto, sem comer, Adalberto desmaia de sono e sonha com seu passado de praia e futevôlei, com a volta pra casa com dois quindins para tomar café com a mãe, até o momento em que se depara com o objeto de estimação na sala. E o que vê é o fim do sonho. O conto poderia terminar aí, mas há uma outra seção chamada de desfecho que poderia se chamar epílogo. É quando sabemos a quem é atribuído o nome de Galileu e porquê. E então cogitamos que o título da narrativa não é uma mera frase pinçada do discurso do personagem Adalberto, numa de suas elucubrações mentais. Como disse Gerard Genette (1979), “a narrativa diz sempre menos do que aquilo que sabe, mas faz muitas vezes saber mais do que aquilo que diz.” (p.196). Diz-se que Galileu teve de refutar sua teoria para continuar vivo e, vivo, desenvolvê-la melhor. Tratava-se, contudo, de estudo científico. De modo simbólico, a obra ficcional ora apresentada nos põe diante do espelho para estudo subjetivo: o que devemos refutar para continuarmos vivos ou, no limite, revivermos?
Referências:
FREUD, S. [1914]. Sobre o narcisismo: uma introdução. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV, p. 85-119.
GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Ensaio de método. Trad. de Fernando Cabral Martins. Lisboa-Portugal: Arcádia, 1979.
LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.