SINOPSE
ELES NÃO PODEM TIRAR ISSO DE MIM – O 7º romance de Eduardo Mahon foi selecionado por um júri técnico no Prêmio Literário Estevão de Mendonça, patrocinado pela SECEL-MT. Pela primeira vez, o autor cria uma narradora mulher que conta sua história de infância a partir de um quarto branco. A amizade com o morador de rua, o luto pelos pais falecidos, os novos desafios da escola pública e a tensão na própria casa são elementos da narrativa que pretende emocionar o leitor com a delicadeza com a qual são apresentadas as mais dramáticas cenas. As frases curtas, incompletas, enigmáticas reforçam a tensão nesse desconcertante livro que compartilha experiências de uma criança, infelizmente mais comuns do que imaginamos.
FORTUNA CRÍTICA - M. ELIZABETE E JOCINEIDE
OS MEDOS QUE COSTURAM O SILÊNCIO EM ELES NÃO PODEM TIRAR ISSO DE MIM, DE EDUARDO MAHON
Maria Elizabete Nascimento de Oliveira[1]
Jocineide Catarina Maciel de Souza[2]
Resumo
Essa abordagem apresenta alguns dos liames da narrativa: Eles não podem tirar isso de mim (2020), de Eduardo Mahon. No romance, a narradora, ainda criança e sem nome, instiga o leitor a perguntar o porquê da escolha por uma fala feminina e sem identidade. O espaço da narrativa é a cidade urbana, a grande metrópole de Brasília/Brasil que, por sua vez, abriga outros espaços desconhecidos e/ou ignorados pelo olhar convencional. Há uma homogeneidade e uma simetria aparentes que fogem quando se abrem as inúmeras janelas contidas nesse espaço macro e que, somente a arte e/ou as artes parecem ser capazes de desnudar porque consideram as outras casas e as outras janelas que estão contidas nos silêncios que constituem a identidade de seus habitantes. Desta forma, a linguagem, visivelmente simples torna-se complexa ao apresentar histórias entrecortadas, como se fossem fragmentos do cotidiano das personagens. A sensação que fica, após a leitura da narrativa, é justamente a de prolongamento, de outros labirintos que passaram despercebidos, ainda há muitos medos arrastando-se por entre os silêncios: do viaduto, da clínica de recuperação, do aborto forçado, das folhas dos jornais velhos, da estrutura calcificada da escola, do fogo vivo, do caminhar em linha reta, da narrativa cíclica, do esquecimento e das lembranças. Nesse viès, com a contribuição de Georg Lukcás (2009), Zygmunt Bauman (2001), Nelly Novaes Coelho (1993), entre outros autores, observamos espaços recônditos que apontam à construção de campos de batalhas arquitetados por preconceito, exploração e por divisão de classes, onde os poderes globais entram em choque com as identidades locais e contribuem para gerar a violência e a insegurança, aumentando a invisibilidade das personagens que, também no romance, emaranha-se à situação de vulnerabilidade.
Palavras-chave: literatura; romance; assimetria; Eduardo Mahon.
Abstract
This approach some of the links in the narrative: (2020), by Eduardo Mahon. In the novel, the narrator, still a child and without a name, instigates the reader to ask why she chose a feminine speech without identity. The narrative space is the urban city, the great metropolis of Brasilia/Brazil, which, in turn, other unknown spaces and/or ignored by the conventional. There is an apparent homogeneity and symmetry that escape the innumerable windows contained in this macro space are opened and that only art and/or the arts seem to be able to bare because they consider the other houses and other windows that are contained in the silences that constitute the identity of its inhabitants. In this way, the apparently simple language becomes complex when presenting choppy stories, as if they were fragments of the characters’ daily lives. The sensation that remains after reading the narrative is precisely a prolongation, of other labyrinths that unnoticed, there are still many fears creeping through the silences: the viaduct, the recovery clinic, forced abortion, the leaves old newspapers, the calcified structure of the school, the living fire, the walking in a straight line, the cyclical narrative, forget fullness and memories. with the contribution of George Lukcás (2009), Zygmunt Bauman (2001), Nelly Novaes Coelho (1993), among other authors, we observe hidden spaces that point to the construction of battlefields designed by prejudice, exploration and division of classes, where global powers clash with local identities and contribute to generating violence and insecurity, increasing the invisibility of the characters who, also in the novel, become entangled with the situation of vulnerability. ‘identities and contribute to generating violence and insecurity, increasing the invisibility of the characters who, also in the novel, become entangled with the situation of vulnerability.
Keywords: literature; romance; asymmetry; Eduardo Mahon.
Apaguei muita coisa que estava embaralhada e dormi um sono sem fogo. Antes disso, minha cama incendiava todas as noites.
Eduardo Mahon
O livro, Eles não podem tirar isso de mim, do escritor Eduardo Mahon, publicado pela editora Carlini e Caniato, em 2020, apresenta uma estrutura narrativa instigante. Trata-se de um romance subdividido em quarenta pequenas narrativas, todas escritas em três laudas e assim intituladas: Por que eu conto; No topo da montanha; Colar de arame farpado; A caverna; Sonho ruim; Quase bicho; Sais de banho; Bala de hortelã; Dom Pérignon; Um quartela; Plano de fuga; Ver do avesso; Par de agulhas; Vai passar; No vazio do tempo; Ritos iniciais; Eles não podem tirar isso de mim; Medo; O corpo, essa armadilha; O que dizem os silêncios; Os animais não dormem; A tribo; Uma outra vida; Bonecas de espuma; Volátil; Era uma lixa; Baratas na cama; As âncoras; Mais formulários; Não entendia nada; Amigos esperam juntos; A maldade é um fungo; Não sou pato; Acham que somos loucas; Lágrima negra; Os que odeiam o mundo; Lamento de nuvem; Ninguém se salva no silêncio; Notícia do passado; A cura. Embora nosso interesse não esteja voltado às questões estruturais da narrativa, é importante ressaltar alguns elementos que evidenciam a unidade fraturada que dialoga com o desfacelamento do mundo contemporâneo que, cada vez mais, fragmenta-se, distancia-se das urgências da humanidade quando se pensa em fusão do social com o individual, como aponta Zygmunt Bauman (2007, p. 97):
A fusão exigida pela compreensão mútua só pode resultar da experiência com-partilhada. E compartilhar a experiência é inconcebível sem um espaço comum. Os medos contemporâneos mais assustadores são os que nascem da incerteza existencial. Suas raízes se fincam muito além das condições da vida urbana, e o que quer que se faça dentro da cidade e na escala do espaço urbano e dos recursos administrados pela cidade pode cortar essas raízes ficará aquém do que seria necessário para esse empreendimento.
O romance dinamiza a abordagem de Bauman a partir de uma narrativa em primeira pessoa, com uma linguagem lacunar, entrecortada, que sutilmente traça os fios de como na vida urbana organiza-se a construção dos campos de batalhas arquitetados por preconceito e por divisão de classes. Os poderes globais formados no mundo contemporâneo estão entrando em choque com as identidades locais e assim, contribuem para gerar a violência, a insegurança e, assim, potencializa a invisibilidade dos seres humanos que se encontram em situação de vulnerabilidade. As personagens dessa trama nos convocam a refletir sobre questões que estão presentes no seio social e que são silenciadas, ora pelas leis, ora pela negligência dos que as criam. Tais conjecturas, embora não verbalizadas, ficam “insinuadas” pelo espaço do não dito por meio de blocos do cotidiano. São relações que estão intrínsecas ao ser e que, portanto, surgem como forma transcendental e criadora da obra, espaço em que o escritor extravasa à imanência, conforme Lukács (2009):
A imanência vazia, ancorada apenas na experiência do escritor, e não ao mesmo tempo em seu regresso à pátria de todas as coisas, é somente a imanência de uma superfície que recobre as fissuras, mas que nem sequer como superfície pode reter essa imanência, e também como tal tem de tornar-se lacunosa (LUKÁCS, 2009, p. 95).
Na seleção das personagens que compõem a narrativa, Eduardo Mahon, apresenta uma obra permeada por metáforas e por antíteses que suscitam olhares às feridas sociais que sangram excessos e faltas, provenientes da intrínseca rede de violência alimentada por uma parcela da população, em seus diversos aspectos, os quais geram pobreza e fome. Afinal, “Civilização só existe para quem não tem fome. E, mesmo assim, há muito animal que perambula por aí de coluna ereta. Come e bebe, mora bem, tem família. No fundo, continua sendo animal” (MAHON, 2020, p. 56).
A publicação desse romance traz à tona a possibilidade de contato com vozes que, quase todos repelem, independentemente de onde ou de como seus gritos ecoam: “[...] a escola não nos queria ali. Mas a Jô não deixava que nada acontecesse. Passava a manhã conversando com os garotos difíceis” (MAHON, 2020, p. 29). Embora, seja no/do romance que essas vozes buscam soar, não podemos esquecer de que no Brasil 01 (uma) em cada 03 (três) a 04 (quatro) meninas e 01 (um) em cada 06 (seis) a 10 (dez) meninos são vítimas de alguma modalidade de abuso sexual antes de completarem 18 (dezoito) anos. Essa é uma das violências tecida pelas palavras que demostram que muitos seres humanos resumem-se em números: “[...] na lista dela, só os alunos difíceis tinham vez. Gente como eu. Ou o Jonas. Não éramos mais de uma dúzia nos arquivos da assistência social. Inadaptados eu acho” (MAHON, 2020, p. 28). A forma homogênea de ver o mundo social é salientada na narrativa, conforme Lukács (2009), como “um mundo que saiu dos trilhos” e que, portanto, reforça a invisibilidade de grupos que se encontram em condições insalubres de sobrevivência e que foram exclusos. Nesse cenário, “a arte torna-se problemática precisamente porque a realidade deixou de sê-lo”.
A animalização do homem é enfatizada em várias passagens do romance, com ênfase nas personagens de Tio Alberto e de Caco, o mendigo. Ao narrar sua primeira visita à caverna onde Caco morava, a narradora destaca suas impressões: “[...] Os bichos precisam de pouca luz eu pensei.” (MAHON, p.17). Nessa expressão percebe-se que o que ela esperava encontrar naquele lugar escuro e úmido, era alguma espécie de animal.
Quem está aí?, perguntou uma voz rouca que vinha do chão. A luz rapidamente achou o homem que estava sob a pilha de papelão. Ele repetiu a pergunta. Virou-se incomodado com a lanterna que revelava a sua condição de barata (MAHON, 2020, p. 17-18).
No avançar da história passamos a conhecer a história de Caco que havia sido um músico profissional e entendemos a metáfora com a barata que sobrevive nos esgotos. Compreensão que nos faz lembrar a personagem de Franz Kafka na obra Metamorfose, o caixeiro viajante Gregor Samsa. Embora sejam narrativas distintas, ambas apontam para a situação degradante que o ser humano está sujeito, quer seja pelo abandono familiar, quer seja pelos desafetos da vida. Para além das personagens, observamos as transformações que as relações sociais vão operando no corpo e na mente da narradora, especialmente na figura feminina, com ênfase a trajetória da tia Rita que era a mantenedora da casa e descobre-se cancerígena, indo solitária em busca de tratamento. “[...] tia Rita fingia. Fingia muita coisa. Não a doença. E agora? [...] Recusou companhia para o hospital. Fique aqui minha filha. Pediu com cara de despedida” (MAHON, 2020, p. 83).
As primeiras palavras do romance: “conto eu porque ninguém pode contar. O tempo passa e coisas assim são apagadas” (MAHON, 2020, p. 07) traz à baila a subjetividade da narradora, uma menina-mulher-menina, que com as mortes dos pais, passa a morar com os tios. No entanto, o acolhimento não acontece e para se libertar, começa a narrar fatos externos e internos de uma existência que aponta à filosofia bachelardiana, que por meio da metafísica da imagem pode se instaurar o espaço criativo ao deixar falar da integridade física-espiritual do ser que deflagra pela/na experiência vivida um tempo-espaço novo.
A criação subjetiva é capaz de enxertar a alma criadora de desafios e superação, de modo que esta exprima imagens próprias, que outros não seriam capazes de visualizar, pois são figuras/vidas entalhadas por um ourives original, que detém no próprio corpo suas interfaces. No romance, a narradora, ainda criança, sem nome, instiga o leitor a perguntar o porquê da escolha por uma fala feminina e sem identidade. Talvez derive das semelhanças com tantas outras narradoras que castradas pelo medo, se afogam nos silêncios, gerando palavras-mudas que calam no “colar de arame farpado”, pois “no passado, o futuro sempre é melhor" (MAHON, 2020, p. 09). Além disso:
No plano da representação estritamente individual, encontramos a técnica do devaneio, que, em romance na primeira pessoa, serve não apenas de recurso narrativo, mas também de equilíbrio interior do personagem, permitindo elaborar situações fictícias que compensam a frustração da realidade (CANDIDO, 1992, p. 20).
Ao procurarmos entender a construção desse narrador arquitetado por Eduardo Mahon, nos debruçamos nos pressupostos de Ligia Chiappini de Moraes Leite em sua abordagem sobre o foco narrativo, em especial sobre as tipologias de Norman Friedman, que apresenta duas perspectivas, o autor onisciente intruso;
Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, ou, como quer J. Pouillon, por trás, adotando um ponto de vista divino, como diria Sartre, para além dos limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou de frente, podendo, ainda, mudar e adotar sucessivamente várias posições. Como canais de informação, predominam suas próprias palavras, pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada (LEITE, 2002, p. 27-28 – Grifo nosso).
Temos na obra várias passagens que demarcam essa intrusão característica a esse tipo de narrador “[...] Mais velho e mais forte, Jonas só andava de preto. Parecia que estava de luto. Sempre calado. Mas tinha mãe e pai. Diferente de mim. Depois fui entender, mas depois eu conto”. (MAHON, 2020, p.10). Na literatura brasileira, um dos grandes autores que usava dessa perspicácia em seus escritos, é Machado de Assis que no decorrer dos seus romances estabelecia um diálogo direto com seus leitores.
Além das características do autor onisciente intruso temos o narrador protagonista, “O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos.” (LEITE, ANO, p. 44), muito evidente em “Eles não podem tirar isso de mim”, desde a primeira linha do romance “Conto eu porque ninguém mais pode contar” (MAHON, 2020, p.07).
A estrutura da narrativa contribui para com a abordagem pedagógica ao permitir uma leitura fragmentada. Isto não significa dizer que basta ler as partes, mas que lendo as partes pode-se mediar uma leitura integral da obra. Trata-se de uma medida protetiva para os olhos do pensar e, embora não aprofundaremos na leitura voltada à proposta pedagógica, é interessante apontar que o romance destaca como a vulnerabilidade social que faz eco na educação formal pública e como esta, de certa forma, torna-se algoz de um sistema que caminha para a decadência.
[...] Nunca gostei daquela escola. Fui transferida sem aviso. Ninguém quis saber a minha opinião. Mas aquela era a única escola pública perto da casa dos meus tios. Não havia muita escolha. O lugar era mau. Nas paredes, havia tatuada as raivas de crianças de muitas gerações. Não havia nada ali, além de mesas e cadeiras. Sabíamos que o futuro não alcançaria nenhum dos alunos, nem o Paulinho, que era o melhor de nós. O que fazíamos era matar o tempo. Deixar a vida passar. Ficávamos depositados durante o dia. Os professores, coitados, faziam o possível. O possível não é suficiente. Sem livros é impossível (MAHON, 2020. p. 16).
O sistema da educação brasileira está tão precário, que ao ler esse trecho da narrativa e adentrar em algumas escolas é possível enveredar pela verossimilhança, que assegura que se trata da representação dessas escolas. Outra questão que nos permite refletir sobre o significado do espaço escolar e a sua função, se dá quando a narradora afirma “ficávamos depositados durante o dia”, seria essa a função da escola?, ou diríamos que pelo menos para isso a escola serve, depósito de gente. A leitura de narrativas como essa contribui para que se reflita sobre a educação e nos permite compreender, cada vez mais, a falta de investimento em educação, dado que a estrutura de organização social necessita de mantenedores do status quo.
Para além, das questões de estrutura escolar, nesse espaço ficcional produzido por Eduardo Mahon, também é apresentado um lugar que trabalha com a formação dos vulneráveis: “[...] ninguém mexe na minha cabeça! Irritou-se Jonas. Você não deveria contar nada. Tranca tudo e joga a chave fora, aconselhou antes que ele mesmo se trancasse no silêncio que se seguiu. Na época, eu não tinha chave alguma para me defender” (MAHON, 2020, P. 15). Esta passagem, como tantas outras no romance, nos reporta involuntariamente a Carlos Drummond de Andrade “trouxeste a chave?”. A representação da chave conduz às peças que representa cada uma das partes do romance, como um mistério que envolve a existência que pode ser depositado na caixa de costura que acompanha a narradora, símbolo do feminino e compreendido como representação do inconsciente e do corpo materno, a caixa sempre guarda um segredo, abri-la consecutivamente implica um risco (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2015, p. 164).
Além da caixa, há a presença simbólica de outros elementos que abrem caminhos à construção do mosaico da narrativa. Por exemplo, o espelho leva-nos ao reflexo que, a partir das características destacadas pela narradora-personagem, parece estar sucessivamente envolta ao mistério. Desta forma, reporta-nos ao primeiro parágrafo do conto O espelho[3], de João Guimarães Rosa:
Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Os reflexos das personagens reverberam imagens obtusas, como se a narradora mostrasse que o tempo age e que, embora muitas coisas desaparecem, outras permanecem e se repetem, formando o mosaico incompreensível, invisível da existência. “Na parede da sala de tevê há um espelho. Fico me olhando para ver se sou eu mesma. O tempo nos faz diferentes, pessoas tão distantes que têm em comum apenas o nome. [...] com o tempo, essa multidão de gente que vive em mim se espreme e quer sair” (MAHON, 2020, p. 76). Nessa ótica, o romance traz essas gentes: “[...] ao me trancar no quarto, fiquei aliviada. Será que é real?, perguntei à minha imagem refletida no espelho do armário. Era ainda muito criança. Nunca deixei de ser, desde então meu reflexo vive parado no tempo” (MAHON, 2020, p. 116).
Na relação de espaço e do ambiente, nas narrativas, torna-se perceptível às casas como prolongamentos das personagens, pois:
O ambiente é o meio circundante; e este, especialmente o interior doméstico, pode ser concebido como expressão metonímica ou metafórica da personagem. A casa em que um homem vive é um prolongamento deste. Descrevê-las é descrever seu ocupante. [...] Essas casas são as expressões dos seus donos; afetam, como atmosfera, as outras pessoas que lá têm que viver (WELLEK; WARREN, 1949, p. 275)
Logo no início do romance quando a narradora descreve o lugar onde ela mora, “Mas vivo num quarto branco” (MAHON, 2020, p. 07), fica evidenciado essa ligação da casa com seu habitante, assim como na sua infância na descrição do seu quarto e em todas, às vezes, que a narradora vai se referir a personagem do Tio Alberto. Ela descreve a situação da casa “improvisaram meu cantinho onde era o escritório do tio Alberto. [...] Passava os dias sentado na poltrona da sala, dormindo entre jornais. Eram muitos espalhavam-se tanto que pareciam segundo piso.” (MAHON, 2020, p.08). Metáfora também existente na descrição do ambiente onde vivia Caco:
[...] Nas paredes estavam penduradas roupas e duas panelas, no canto a cama de papelão e uma montanha de jornais para servir de cobertor à noite. Nas incontáveis sacolas de plástico, o homem de barba guardava talheres, garrafas com água, potes de plástico e os restos de sabonetes que usava uma vez por semana (MAHON, 2020, p.23).
Nas descrições da casa, tanto do Tio Alberto, quanto do mendigo Caco apontamos a presença dos jornais velhos, como metáfora do mundo, onde essas personagens estavam imersas e voltamos à metáfora da chave para enfatizar a amplitude de sua conexão com a existência:
[...] trouxe o estojo de couro, abriu a fechadura com a chavinha que trazia ao pescoço, tirou de lá o trompete e tocou a música de que eu mais gostava. Eles não podem tirar isso de mim. É o que diz a canção, garota. Não podem, ouviu bem? Ninguém pode tirar o que você sente por dentro, o que você sonha. A música diz a verdade (MAHON, 2020, p. 84).
O espaço da narrativa é a cidade urbana, a grande metrópole de Brasília que, por sua vez, abriga outros espaços desconhecidos e/ou ignorados pelo olhar convencional, “a cidade é toda igual, um labirinto. Janelas fechadas, a maioria”. (2020, p.94). Há uma homogeneidade e uma simetria aparentes que fogem quando se abrem as inúmeras janelas contidas nesse espaço macro e que, somente a arte e/ou as artes parecem ser capazes de desnudar porque consideram as outras casas e as outras janelas que estão contidas nos diversos silêncios que constituem a identidade de seus habitantes. A homogeneidade aparente contribui para soar apenas a voz do poderio econômico e/ou da classe elitizada e, por outro lado, mostra a face cruel e excludente do mundo:
Maldade é um fungo, uma doença que vai crescendo no peito como pneumonia. [...] Eles não entendem, continuou o monólogo. Não conseguem entender a música. É um jogo de quebra-cabeças, sabe? Um montar e remontar, trabalho de joalheiro. Mas não querem isso. Gente pobre! Pobre de espírito, garota. Isso sim é pobreza. Nem dinheiro resolve (p.102)
Da narrativa emerge uma tessitura de artes que se justapõem, no diálogo entre o erudito e o popular. O poema de Manuel Bandeira (1947), que aparece como epígrafe se alinhava às narrativas, como se desmanchasse e/ou uniformizasse a condição de bichos nas personagens, o mendigo Caco, se desnuda pelo/no olhar da narradora: “mendigo é quase bicho. [...] Caco morava na solidão. [...] Na solidão qualquer voz é bem-vinda” (MAHON, 2020, p. 22-24). Ao mesmo tempo em que o ato do contar história se desenrola, também impulsiona ao olhar pela janela, para as outras formas de ver e viver o mundo. O olhar de outras formas a existência é tema recorrente na narrativa, especialmente projetada na figura do mendigo que vivia na passagem estreita do viaduto em condições subumanas, este recebia a visita frequente da narradora-protagonista: “O Caco foi músico profissional, desses com carteira e tudo mais, acrescentou”. Assim, desprendem-se fios da estrutura de organizacional social, da desvalorização da cultura e desnuda algumas aporias do patriarcado, bem como a condição de exploração, muitas vezes, vivenciado por grande parte dos seres humanos. Sobretudo, enfatiza a condição, ainda mais degradante da figura feminina na/pela luta por sobrevivência.
Os fracos são culpados pela própria fraqueza. Jonas era homem. E deixava isso muito claro todas as vezes que batia nos outros garotos. (p. 66). Comentei com eles que poderia ter nascido homem. Seria tudo mais fácil (p.69) e a verdade é que os homens não ficam presos, não se afastam da casa e não param de fazer o que gostam. Na maioria dos casos a culpa acaba caindo no colo das garotas (p. 70).
O abuso sexual sofrido pela narradora-personagem, durante toda a história fortalece os fios de um silêncio que fere a existência, como se esta fosse culpada pelo próprio sofrimento decorrente da invasão daquele corpo ainda em estágio de puberdade. Por outro lado, a condição vulnerável opera como estímulo para se envolvesse nas tramas de violência e nas soluções imediatistas dos problemas. Disto decorre a aliança com o grupo da escola (Marcelo, Jonas e Paulinho) era a forma encontrada para fortalecer o que acreditava ser fragilidade de um corpo de mulher. Fragilidade reforçada pelas atitudes do médico que a atendia, ao colocar em dúvida o abuso que sofria, ou na atitude do tio que a tomava como objeto de prazer e, muitas vezes, na própria reflexão existencial da personagem que buscava justificar sua impotência diante dos abusos sofridos.
Eu tremia. Ele não se importou. Forçou a entrada e conseguiu meter um dedo em mim. Não consegui gritar. Tinha medo de acordar minha tia [...] Os movimentos do meu tio fazia tremer a cama tanto quanto eu tremia. Eu apertei os olhos para fingir que não estava ali. [...] tio Alberto retirou a mão das minhas coxas, alisou meu cabelo e saiu do quarto apressado. Não disse boa noite. Em vez disso, o silêncio. (MAHON, 2020, p. 47). O meu problema era justamente esse, não ter dados suficientes para os formulários. Não depois de tudo o que aconteceu. Fiquei calada. Muitas mulheres ficam. (MAHON, 2020, p. 91). Eu não sabia nada. Naquela época não. Não sabia o que o tio Alberto estava fazendo comigo. Quase sempre. A porta sem chave era uma tentação para ele e um problema para mim (MAHON, 2020, p. 61)
O silêncio, escolha de título dessa abordagem, como conceitua Chevalier e Gheerbrant (2015, p. 834), “é um prelúdio de abertura à revelação. [...] o silêncio abre uma passagem, [...] houve um silêncio antes da criação; haverá um silêncio no final dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos”. Por outro lado, estes silêncios tornam-se insignificantes, dentro do discurso que se quer legalizado segundo as leis e estruturas sociais vigentes, eles precisam alçar voos, sair pelas janelas.
Meu silêncio pariu as vozes. Criei pessoas dentro de mim. Elas foram surgindo. Como as bonecas. Eram tão próximas que, depois de um tempo, passaram a ser reais. Havia uma diferença, porém. Aquelas vozes eram minhas e não me trairiam. Tentei salvá-las o quanto pude. Pelos menos uma delas. Julgo ter ouvido aquela voz fina que chorava a procura da mãe. A mãe era eu. Mas os médicos não permitiram nenhum abraço. Estavam resolvidos a matar qualquer infância que havia em mim (MAHON, 2020, p. 120).
A analogia entre a escola e a clínica, entre a casa/mundo e o corpo desfere-nos “punhaladas”, ao compreender especialmente que os estilhaços, tanto de um, quanto do outro, formam o mosaico de uma narrativa envolta em mistérios, mas que, juntam-se aos fantasmas de outros.
A solidão é uma casa acolhedora. A mobília é o silêncio. Vou redecorando meu quarto com várias formas de silêncio, pendurando canções aqui e ali como quadros na parede (p. 126) [...] nem preciso de chaves. Vivo trancada com as minhas lembranças. Entrelaço cada uma delas com o par de agulhas que guardo na minha caixinha de costura. Por que contar tudo somente agora?!, pergunta o fantasma que me habita. Acho que conto para me curar, respondo em silêncio antes que tranquem a porta e as luzes se apaguem (p. 126).
A narradora filtra, pela consciência crítica sobre o passado, as emoções e as transfiguram no contar. Um contar onde a narrativa torna-se testemunhal e, assim, justifica-se a opção do autor. Uma maturidade ético-política que permeia a narrativa, pois só na voz feminina seria possível desmanchar alguns acontecimentos singulares, em um jogo confessional que jorra efeitos legítimos de existência e de seus conflitos. “Várias meninas daqui fazem a mesma coisa. Não somos loucas. Querem que sejamos. A gente ri sem que percebam. Rimos para dentro” (MAHON, 2020, p. 125). Ou ainda: “Todos nós. É como um jogo, eu dizia abraçando o namorado. Hoje eu sei que fugir só é possível se eu nascer de novo” (p.60).
Acreditamos haver muitos outros mistérios imbuídos nos liames dessa narrativa, tal como a metáfora da boneca para que não se perca a identidade crianceira, porém os fios levantados parecem ser suficientes para afirmar que se trata de uma obra que se organiza pelos gritos dos silêncios dos esquecidos costurados pelo medo, contidos em vários corpos e engrenagens mudas que contribuem com a estrutura da sociedade contemporânea. De modo que, a imagem da criança não surge na história como um mero símbolo de inocência, pelo contrário, representa o período de regressão da narradora; um inverso que indica a conquista da paz interior e do autocontrole, que surgem pelo entendimento da complexidade das relações que emanam da sociedade, que agem como garras a impedir a liberdade “dessa gente” (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2015, p. 302). Há, portanto, uma ruptura do espaço temporal linear, já que a “prisão” sugerida pela trama da obra, nos leva a compreensão de que a protagonista-narradora está em suspensão desse espaço/tempo. Uma suspensão engendrada apenas pelo tempo cronológico, pois o tempo psicológico, interno, é movimentado de forma avassaladora pelas memórias e lembranças da protagonista/narradora, há uma digressão que oscila entre os tempos.
Gosta de costurar?, o médico já sabia a resposta. Gosto bastante. O que costura? Há alguma coisa específica? São sempre as mesmas bonecas? Começou na infância? O que pensa enquanto está ocupada? Lembra alguma coisa do passado? Essas e outras mil perguntas. É apenas costura, nada mais. Eu digo, mais ninguém acredita. Nesses anos, cada médico que passou por aqui desconfia que as minhas respostas têm outros significado. Eu mesma fico pensando e não encontro relação entre o que faço e o que me aconteceu. As minhas bonecas sorriem. Não há como fazer uma boneca que chora (MAHON, 2020, p. 45).
O romance sugere, pelas/nas ações das personagens, uma busca incessante pela liberdade da condição opressora, porém aponta para os fios que tecem o mundo organizado, que escravizam e aprisionam os corpos a partir de normas e de limites de um sistema já instituído, que age para “amarrar” não apenas o corpo, mas também os espíritos, a mesma voz que fala é a que cala. Há uma substancialidade genuína na identidade da menina-protagonista que sabe que as “palavras têm vida. Dão ao espectro força para voltar todos os dias” (MAHON, 2020, p. 37). O interlocutor da narradora é um fantasma: “o garoto que vive há quase dez anos no quarto dessa clínica quer me convencer que eu não tive um passado. Eu resisto. Só acredito porque posso lembrar dos detalhes. Eles não podem tirar isso de mim, assovio à noite depois que desligam as luzes” (MAHON, 2020, p. 126). Ou seja, não tem voz ativa, portanto, há um contar introspectivo.
É interessante enfatizar que uma leitura puxa a outra, como disse Nelly Novaes Coelho (1993), trata-se de um “feixe de relações”, então, a protagonista de Eles não podem tirar isso de mim, nos fez lembrar, também, a abordagem de Rubem Alves (2014) sobre a diferença entre a as palavras do saber e as palavras do sabor:
Andaimes cercam a casa, mas não são a casa. Construída a casa, desmontam-se os andaimes. Atingidos o sabor, desmontam-se as palavras. O sabor mora no silêncio. As funduras do corpo estão além das palavras. Moram no silêncio. Os sabores são inefáveis, o prazer é inefável, não pode ser dito. (ALVES, 2014, p. 60).
Ao conjecturar com as palavras do sabor, a protagonista conta algo que não se encontra nas palavras, uma fala sem voz que expõe os fatos como exercício do saber, os quais se transformam, reivindicam outro lugar, faz do próprio corpo um coral de silêncios e de vozes que reverberam existências, onde: “a palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada” (PRADO, Adélia apud ALVES, 2014, p. 61). Ou na compreensão de que: “[...] a única forma de saber dos dias é olhando pela janela. Manhã, tarde e noite. Saber demais causa ansiedade, é o que os médicos dizem. Não há pressa. A vida é um eterno presente. Estive pensando nisso. Eles tem razão” (MAHON, 2020, p. 44).
A complexidade existencial emaranhada na linguagem simples e nas narrativas entrecortadas da narradora/memória traz quadros do cotidiano em espaços diferenciados, funcionando na trama narrativa como extensão das próprias personagens: A casa dos tios; O viaduto; A escola; A clínica de recuperação; o corpo, talvez este último seja o espaço mais importante, onde cada um constrói a própria caverna com os liames dos espaços exteriores que, de certa forma, impregnam o espaço interior das personagens: “o cheiro do viaduto pregava na gente” (MAHON, 2020, p. 36). Como exemplo, citamos ainda a metonímia utilizada na imagem do cigarro queimando como se a vida do tio também fosse consumindo e/ou as diferentes formas de exploração da figura feminina: como a mãe do Paulinho; a tia Rita; a Jô; a própria protagonista-narradora.
A arte do narrar, nesse romance, oferta exatamente o inexistente: a caixa de costura com fotografias antigas; A música do Caco com os suas aspirações e desejos; o cheiro dos jornais velhos do tio Alberto; as simbologias das bonecas da protagonista-narradora. Ou seja, uma exterioridade que dialoga de maneira bem íntima com as questões interiores e vice-versa, que dão vazão as estratégias das personagens para sobreviver em meio às estratagemas do mundo exterior que aprisiona não apenas o corpo físico, mas também suas mentes por meio da exploração que, de alguma forma, também condena a alma.
As doenças da mente e do corpo minam das pessoas a humanidade; que são levadas a agir com violência como forma de protesto dos maus tratos e da exploração vivenciadas em suas diversas facetas. O sonho de fugir das grades que aprisionam o sujeito torna-se impossível devido às diversas garras do sistema que são alimentadas pelo próprio sujeito. Ou seja, há nas personagens o contraste entre a prisão e a liberdade.
A simbologia de alguns termos utilizados no romance, como: chave, medo, olhos, espelho, janela, gavetas, expandem os sentidos triviais da linguagem. Não se trata da palavra em si, mas de como estas são alinhavadas às memórias da narradora e aos aspectos formais da narrativa que fazer explodir os sentidos semânticos. Nesta perspectiva, acreditamos que há um possível diálogo com José Saramago, quando destaca que:
[...] sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições (SARAMAGO, 1997, p. 134-135).
Ainda nessa perspectiva, Georg Lukács aborda que: “o romance não assimila a realidade numa estrutura calcificada, mas antes, por ser capaz de imitar na sua própria forma o conteúdo esquivo do mundo, adapta-se à desarmonia e a transcreve como elemento formal” (LUKÁCS, 2009, p. 223), portanto, dele resplandece um mundo infinitamente grande e gerador de abismos, de inconclusões. A sensação que fica, após a leitura da narrativa, é justamente a de prolongamento, de outros liames que passaram despercebidos. Ainda há muitos medos arrastando-se por entre os silêncios tecidos nos desvãos daquelas vidas andarilhas: do viaduto, da clínica de recuperação, do aborto forçado, das folhas dos jornais velhos, da estrutura calcificada da escola, do fogo vivo, do caminhar em linha reta, da narrativa cíclica, do esquecimento e das lembranças. As histórias das personagens podem ser descoladas uma das outras, em quadros e, ao mesmo tempo, precisam estar contínuas porque é necessário compreender o funcionamento da engrenagem, onde uma existência caminha por dentro da outra, faz parte, é integrante.
A narrativa aciona a existência aquilo que é imanente e que não pode ficar adormecido, diríamos que funciona como “o espelho que tem o poder de produzir do lado de fora um duplo da imagem que aparece virtualmente do lado de dentro” (ALVES, 2014, p. 178). Ou ainda, como uma grande peça de teatro, onde o expectador pode, também, fazer parte da encenação, afinal: “[...] Por que contar tudo somente agora?, Acho que conto para me curar, respondo em silêncio antes que tranquem a porta e as luzes se apaguem” (MAHON, 2020, p. 126). Segundo Lukács (2009, p. 94), “um anseio direto pelo silêncio tem de converter-se num balbucio reflexivo”.
Ao apresentar o percurso da linguagem como uma totalização de experiências e vivências do ser humano, Freud (1895), traz à baila três órgãos do corpo em movimento, os quais provocam experiências diversas. Nesse cenário, “a linguagem do mundo/olho (natural), linguagem do corpo/boca (gestual — um gesto/grito atribui uma significação) e linguagem do código/ouvido (artificial ou articulada)” (CANEPPELE, 2007) aparece articulada e se amalgama em motivações múltiplas. Tais considerações nos levam à capa do romance Eles não podem tirar isso de mim (2020), já que antes de abrir a “caixa de pandora/obra”, é possível movimentar sentidos múltiplos da linguagem visual a partir da imagem, onde temos as três bonecas, a primeira falta-lhe a boca e a segunda o olho.
Ao ler Alessandra Caneppele[4], nos reportamos ainda à terceira boneca e nos perguntamos: será que lhe falta a audição? Esse e outros questionamentos são provocados com o desenrolar do enredo e levam-nos, também, a lembrar de Walter Benjamim (1987), quando menciona a forma genuína do contar a partir da atividade artesanal, bem como, ao inferir como as outras artes, tais como: a fotografia, o cinema, a pintura, entre outras; estão emaranhadas à narrativa e, assim, fomentam elementos sensoriais e artísticos que despertam para outras constelações semânticas. Nesse viés, a obra de Eduardo Mahon, “faz levantar” numa linguagem simples (artesanal), aparentemente superficial, uma complexa e instigante rede de fios que suscitam para os quadros do cotidiano em formatos diferenciados e, ao mesmo tempo, semelhantes de existências.
Referências bibliográficas
ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Planeta, 2014.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. RJ: José Olympio, 1998.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução Pietro Nassetti e Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2003.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. 10ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2002. (Versão digital: http://groups.google.com.br/group/digitalsource).
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas cidades, Editora 34, 2009.
MAHON, Eduardo. Eles não podem tirar isso de mim. Cuiabá: Carlini e Caniato editorial, 2020.
SARAMAGO. José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
WELLEK, Rene; WARREN, Austin. Teoria da Literatura. Tradução de José Palla e Carmo. Publicações Europa-América: Biblioteca Universitária, 1949.
[1] Doutora em Estudos Literários/Universidade do Estado de Mato Grosso – Endereço eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[2] Doutoranda em Estudos Literários/PPGEL-UNEMAT – Endereço eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[3] https://lotuspsicanalise.com.br/biblioteca/Rosa_Guimares_O%20espelho.pdf acesso em 08.01.2020 às 16h07min.
[4] CANEPELLE, Alessandra. O ouvido, a boca e o olho: a psicanálise entre o apagamento e a memória dos lugares da linguagem. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982007000100004 Acesso: 03.02.2021 às 15h35.
CLÁUDIA ZORTEA
DE DORES E SILÊNCIOS: O QUE DIZ E COMO DIZ O NOVO ROMANCE DE EDUARDO MAHON?
Claudia Eliane Zortea [1]
Eles não podem tirar isso de mim, publicado pela editora Carlini & Caniato, em 2020, é o 7º romance do escritor e crítico literário contemporâneo Eduardo Mahon. A narrativa ligeira, fluida, apresenta uma narradora personagem que compartilha suas memórias da adolescência, tempo conturbado, cheio de dores, traumas, violência, aventuras e cumplicidade. A obra é estruturada em 40 partes curtas, sendo a primeira intitulada “Por que eu conto?” e a última “A cura”, quase como uma pergunta e a resposta. Todos os títulos são bem curiosos e mantêm uma relação subjetiva com o capítulo.
A narradora, da qual não se sabe o nome, está num quarto branco, possivelmente uma clínica psiquiátrica, perturbada com seu presente e passado. Desse espaço, sua memória leva o leitor aos tempos vividos, uma parte recortada da adolescência, quando foi morar com os tios, depois de ter perdidos os pais num acidente de carro. Nesse período, a menina dividia-se entre a casa, escola e a rua. Ao mesmo tempo em que lembra, ela faz uma autoanálise, na tentativa de interpretar e aceitar suas vivências, reformulá-las.
Em casa, acompanhava a rotina de um casal decadente, que mantinha uma relação pacata e com poucos afetos, orquestrada pelas obrigações. A tia, resignada, vivia em torno do marido, tratava a menina com afeto, mas não conseguia estabelecer, com a sobrinha, a cumplicidade necessária para alcançar o universo adolescente. O tio era um fumante intenso e leitor assíduo de jornais, “uma estátua atrás dos jornais” (p. 09), mimetizado ao móvel da sala do qual quase não saia de cima, a poltrona. Um personagem que causa profundo asco no leitor ao abusar sexualmente da sobrinha, sem que ninguém soubesse, um segredo confesso pelas memórias da narradora. Algo normal, chegou a pensar na época, numa tentativa de entender o que sofria.
A maçaneta do meu quarto girou e o tio Alberto entrou devagar. Eu fingi que dormia. Ele não recuou. Sentou-se na cama e passou a mão pelo meu cabelo. Depois me descobriu e colocou a mão por dentro da minha camisola, palmilhando meu corpo até a barriga. Deve ter percebido que parei de respirar. Inclinou o corpo para frente a fim de que a mão chegasse até às minhas pernas. Eu tremia. Ele não se importou. Forçou a entrada e conseguiu meter um dedo em mim. Não consegui gritar. Tinha medo de acordar minha tia. Medo do que ela iria pensar [...] (p. 47)
Na escola, pública, a menina possuía laços fraternais com alguns colegas, com os quais dividia também o espaço da rua, em momentos de descontração e rebeldia. Nenhum dos amigos se encaixava adequadamente à escola “algo fervia” (p. 10) dentro deles, eram adolescentes “difíceis”, que praticavam vandalismo tanto na escola quanto nas ruas. Em contrapartida aos atos distorcidos dos adolescentes, a obra explora suas experiências dolorosas. Paulinho, por exemplo, sofria em decorrência da gordofobia e juntava-se à turma para se proteger, Jonas era vítima de violência física doméstica, tinha uma cicatriz acima do olho por causa de uma pancada da fivela do cinto do pai. Marcelo, temido por sua hostilidade e inconsequência, chegou a ir para um reformatório.
Há trechos nos quais a narradora expressa a clareza que ela e os colegas tinham da própria condição de alunos de escola pública. É cortante a revolta dos adolescentes em relação à escola e ao universo ao qual faziam parte. A obra é um painel da sociedade contemporânea e a escola faz parte desse desenho dolorido. Nota-se, no romance, uma espécie de realismo que, na obra, volta-se também para a escola pública, tendo em vista a limitação do olhar da personagem, mas que na verdade aponta para um problema social que culmina no espaço escolar.
Nunca gostei daquela escola. [...] O lugar era mau. Nas paredes, havia tatuada a raiva de crianças de muitas gerações. Não havia nada ali, além de mesas e cadeiras. Sabíamos que o futuro não alcançaria nenhum dos alunos, nem o Paulinho, que era o melhor de nós. O que fazíamos era matar o tempo. Deixar a vida passar. Ficávamos depositados durante o dia. (p. 16)
Quem estudava naquela escola já estava reprovado. Uma reprovação diferente, antecipada. Não tínhamos chance. Ninguém sonhava com a faculdade. Paulinho, talvez. Medicina? Que piada. Mas ele queria. Dizia muitas vezes que sonhava usar jaleco com o nome bordado. Paulo Rogério Marques. No pescoço, carregaria um estetoscópio como nos filmes. Por mais que fosse o melhor aluno, não era o suficiente. Nunca era. O melhor daquela escola significava o pior de qualquer outra. (p. 80-81)
Nas ruas de Brasília, a menina e os colegas perambulavam, explorando o espaço livre e colocavam em prática alguns atos de vandalismo. Nesse caminho público, ela encontrou um dos personagens mais curiosos do romance, Caco, um músico decadente e enfermo que foi para Brasília e se apresentava em festas formais, tocando jazz com sua banda. A história de Caco é brevemente contada durante as visitas ao seu esconderijo, um buraco escuro num viaduto da cidade. Os encontros entre a menina e o músico, sem dúvida, são as partes mais fascinantes desta história, pois a amizade dos dois cativa o leitor. Os encontros deles, pessoas feridas pela sociedade, é um alento para ambos, como uma cura.
É nesta relação com Caco, que o romance incorpora um tipo de trilha sonora, a embalar as aventuras dos dois amigos, ao som do jazz que saía do trompete do músico. Compreende-se, nestes enlaces, o título do romance, inspirado numa das músicas que Caco toca, “They can't take that away from me”, de George Gershwin. Música esta que, por sua vez, estabelece relação de intertextualidade com a obra, pois a narradora entende que sua memória é a única coisa que não pode ser tirada dela, é só sua, intrasferível, única e especial. Tanto que ela não externa suas lembranças às pessoas da clínica, porque tem medo que arrancarem isso dela.
Os encontros secretos entre a adolescente e Caco tornam-se parte dominante da narrativa e criam grande expectativa no leitor. É a promessa de que mesmo no caos, há esperança, amizade e cumplicidade. Ela cuida dele e ele, em troca, fala sobre músicas, conta histórias, orienta. Mas, como um leitor de Mahon imagina, os desfechos das obras deste escritor são sempre surpreendentes e nem sempre felizes.
O pano de fundo das memórias narradas e do presente da protagonista é a vida urbana contemporânea, aos poucos apresentada, cheia de dores e caos em seus diversos espaços, ocupados por pessoas marginalizadas e silenciadas. A voz da narrativa é silêncio, pois o que é contado, no âmbito da narrativa, não é dividido com mais ninguém. Há na obra uma angústia irresoluta, de uma mulher que não alcança o sossego final e que ainda tenta a conciliação com a memória, a expressão como cura. Talvez, as memórias ainda não estivessem prontas para sair, e nem saem, pois tudo fica no âmbito do pensamento. Mas elas chegam até nós, e chegam imaturas, numa escrita fragmentada, com frases curtas e com excesso de lições, que chegam a saturar o leitor.
Quem mora de favores não pede mais favores (p. 59)
Hoje eu só sei que fugir só é possível se nascer de novo (p. 60)
Só se vive em paz desconhecendo o que há de pior nas pessoas (p. 62)
O silêncio é protesto. Mas é também medo. (p. 64)
Os homens pensam da mesma maneira. Eles são assim. Nascem para lutar. Os fracos são culpados pela própria fraqueza (p. 66)
A maldade coloniza. Começa com um pequeno fungo e cresce rápido até chegar ao coração (p. 68-69)
A escola é um ambiente inflexível e incompatível com os jovens personagens, o lar, ao invés de trazer aconchego, traz medo e a sociedade, de modo geral, vai levando aos poucos para a margem os inconciliáveis. Desta forma, o livro causa um mal-estar e tira-nos do conforto ao convocar à reflexão sobre estes espaços nos quais vivemos no dia a dia. Ela faz pensar sobre a dor de uma sociedade, que pode ser a mesma do leitor, ao retratar a violência na escola, nas casas, nas ruas, nos hospitais.
Entre as várias análises possíveis, aponto aqui a abordagem sobre os espaços. O espaço físico é a cidade, a casa dos tios, o quarto branco na clínica psiquiátrica, a caverna de Caco, a escola. Mas existe também uma geografia do ser humano muito bem explorada: o lado de fora e o de dentro, e é justamente esse espaço interno, a memória, que não pode ser tirada da narradora, nem de Caco, nem dos colegas da escola. É possível e necessária uma análise mais aprofunda desse aspecto, considerando a relação entre esses lugares da cidade e os lugares da memória.
Mahon é um dos principais nomes da literatura contemporânea de Mato Grosso, possui mais de vinte obras publicadas. Seu entusiasmo e avidez para escrever são notáveis, um leitor de Mahon tem sempre algo fresco para apreciar. Assim como a “velha” canção apresentada neste romance, é sempre bom para o escritor elaborar textos que ultrapassem o tempo e dialoguem de forma sempre renovada com o presente, independentemente se esta foi a pretensão ou não. Mas quem determina tala vitalidade é o leitor, o crítico, o público. Será Eles não podem tirar isso de mim um destes livros? Se isto acontecerá ou não, o futuro dirá, mas, no cenário do presente, o público tem uma bela obra em mãos.
MAHON, Eduardo. Eles não podem tirar isso de mim. Cuiabá: Calini & Caniato, 2020.
[1] Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – PPGEL/UNEMAT. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.