SINOPSE
O VIRUS DO IPIRANGA – Os contos de Eduardo Mahon estão ambientados no bairro do Ipiranga, em São Paulo, durante a pandemia do Covid-19. As situações inusitadas, os equívocos da percepção cotidiana e o realismo mágico são a tônica do 4º livro da coleção Contos Estranhos, lançado pela Carlini e Caniato Editorial. O último conto, intitulado Faxina Completa, oferece ao leitor uma cruel reflexão sobre os papeis sociais no contemporâneo.
HELVIO MORAES
O ESTRANHO VÍRUS DE EDUARDO MAHON
(Helvio Moraes)
O ficcionista e crítico literário Eduardo Mahon lançará, pela editora Carlini & Caniato, os cinco títulos que compõem a coleção Contos Estranhos: os contos mais extensos "Galileu Dançou por Muito Menos", "Inclassificáveis" e "Paraíso em Fuga", uma antologia de contos publicados anteriormente, sob o título de "Resumo da Ópera", e o livro de contos curtos "O Vírus do Ipiranga", objeto desta resenha. Em fase de incessante produção literária, o autor tem se mostrado cada vez mais seguro no domínio das técnicas da narrativa breve. Se os contos de "Resumo da Ópera" arrebatam o leitor pela riqueza metafórica das imagens de seu realismo mágico e pelos desfechos inusitados, as narrativas de "O Vírus do Ipiranga" transitam entre este mesmo realismo e a crítica de costumes, sem a veemência (ou o dogmatismo, se quisermos) de uma vertente nova da literatura engajada. O narrador de Mahon (pois parece que há uma única voz narrativa que observa e registra as várias situações vividas num mesmo espaço) mantém uma impassível distância daquilo que relata, elemento necessário à sátira, assim como o tom coloquial e despojado, objetivando, contudo, um efeito que choca ou surpreende.
Salvo engano, a pandemia de COVID-19 teve um impacto mais evidente – no sentido de provocar reflexões que culminem em criações artísticas – no campo das artes plásticas e visuais, assim como na música. Talvez a prosa literária demore um pouco mais a reagir inventivamente ao novo estado de coisas advindo da experiência de isolamento social. Mahon é um dos poucos autores a nos fornecer, até o momento, um mosaico de situações imaginadas a partir deste contexto. Quinze narrativas são apresentadas, tendo como espaço comum o bairro do Ipiranga. Aliás, “o vírus do Ipiranga” funciona como uma espécie de corruptela da primeira parte do verso que abre o Hino Nacional Brasileiro, já incorporada à cultura popular, mas que, no livro, prepara o leitor, logo de início, para o tom satírico que predomina nas narrativas, uma possível sugestão de que alguma coisa esteja contaminando, corroendo a aparente solidez daquela ordem instituída ‘pelo brado retumbante de um povo heroico’.
A longa tradição literária que relaciona peste e literatura tem possivelmente como um de seus pontos culminantes o "Decameron" de Giovanni Boccaccio, mas remonta a períodos anteriores ao autor italiano. De todo modo, tal relação frequentemente propicia o contraste entre concepções de mundo diversas ou o desmascaramento de determinadas práticas sociais, este também fundamentado sobre o contraste entre aparência versus realidade. Em Boccaccio, a ameaça da peste ajuda a compor a moldura narrativa, como o evento que fustiga os(as) jovens aristocratas a procurarem uma nova forma de convívio social, num espaço que se situa acima da cidade que agoniza. Nesta nova forma de vida, que resiste e supera a morte que assola a Florença medieval e que parece prenunciar o esplendor renascentista, são inseridas as célebres cem novelas, em que o humor prevalece. Como toda grande obra, o "Decameron" possibilita várias leituras. Porém, parece-me evidente o contraste entre um mundo que morre (os valores e costumes que lhe dão base) e outro mundo que dele renasce. Ao longo dos últimos séculos, outros autores se defrontaram com o tema de diferentes maneiras, o que não é possível ilustrar aqui. Contudo, cremos que, em todos eles, a ideia de contraste está presente.
Em Mahon, o contexto pandêmico serve como pano de fundo dos contos e, a partir dele, os modos de ser e as convenções sociais da pequena classe média urbana brasileira passam pelo escrutínio impiedoso do narrador. Uma das ironias do livro reside no fato de as personagens, no momento em que se veem obrigadas a usar máscaras de prevenção contra a doença, acabarem sendo elas mesmas, assim como suas relações sociais e afetivas, desmascaradas, como acontece justamente no conto “Máscaras”, em que, num supermercado, a esposa perde-se de seu marido sem saber, confunde-o com outro mascarado e com ele vai para casa: “Chegaram finalmente. Subiram o elevador, ambos de máscara, regras da autoridade condominial. Ele mirava o chão enquanto ela apertou o botão do 6º andar. Entraram no apartamento e, somente depois de retirarem as máscaras do rosto, perceberam que não eram quem esperavam que fossem”.
Em “Boa Noite”, temos o caso do motorista de ônibus que, num gesto de “patriotismo contagioso” - sinal de que a praga que se alastra também tem uma ressonância política –, como forma de contestar e infringir as medidas preventivas e os decretos oficiais da quarentena, “usou uma camiseta da seleção brasileira e fez questão de tirar a máscara e saudar os passageiros, sublinhando que todos eram essenciais para o país”.
Há também o caso em que tirar a máscara, ou “enfiá-la no bolso do short” para dar início a uma caminhada, possibilita uma reflexão sobre a vida, dando lugar a uma narrativa de cunho mais existencial, como em “As Voltas do Tempo”, em que a personagem consegue ver-se desde seu passado mais remoto à sua velhice, podendo, no fim, ‘acertar as contas’ com o que vive e o que é no presente. Neste caso, assim como em outros contos, como “Cúmplices” e “Bem-Vindo”, a presença mais acentuada do realismo maravilhoso tende a conferir às narrativas algo que extrapola a mera crítica de costumes (ainda que não deixe de sê-lo), ao mimetizar os sonhos e os anseios de uma pequena burguesia por melhores condições materiais de vida. As personagens terminam por perder-se neste mundo onírico? Seria isto, ou uma leitura diversa também é possível? Creio que sim, e talvez seja mais interessante seguir numa outra direção. Tais contos podem ser lidos como um contraste entre a estreiteza espiritual e a frustração em que vivem algumas personagens e a forma como ostentam uma vida de relativo luxo, numa hábil manipulação, por parte do autor, da temática da “aparência x realidade”. Com o advento da pandemia, as personagens tomam consciência do que realmente são, e é a vida a que estavam acostumadas a viver o que lhes acaba surpreendendo. Em “Bem-Vindo”, Moacir passa a ter plena consciência de seu fracasso pessoal ao fazer uma compra de supermercado: “Moravam juntos na casa do Ipiranga: ele, a mulher, a sogra e a filha adolescente, mantendo ali um relacionamento tempestuoso onde sua tradicional posição de chefe de família era subjugada pela maioria feminina. Moacir não tinha direito de assistir ao futebol na televisão da sala, […] não levava os amigos do escritório para um banho de piscina, […] abriu mão do churrasco de fim de semana porque a filha tornara-se vegetariana”. No retorno à casa, tudo o que é e tudo o que possui passam a ser percebidos sob uma nova luz.
O livro conclui-se com “Faxina Completa”, conto que se difere não só por ser bem mais extenso que os demais, como também por sua estrutura. O autor faz uma curiosa apresentação das personagens e de suas ações na narrativa, algo que se coloca entre a didascália do texto dramático e a ficha policial. As personagens são reiteradamente apresentadas pelos seus papéis sociais e por determinadas características (como idade, cor, constituição física, etc.) que acabam frustrando, ao longo do relato, as ideias preconcebidas que tais retratos redutores costumam gerar. Este é um caso em que resumir o enredo acaba por simplificar demais o alcance de sentidos que a narrativa proporciona. Mas vale dizer que, em consonância com os contos que o precedem, mantém-se o olhar distanciado e frio do autor satírico, assim como a crítica cortante da sociedade contemporânea. No fim, ninguém se salva, seja “Paulo Renato, 36, branco, magro, pós-graduado, cirurgião-dentista”, seja “Maria José, preta, gorda, analfabeta, empregada doméstica”, ou “Doutor Felipe, 32, branco, solteiro, defensor público”.
Mahon não é adepto das utopias. Ao contrário daqueles que acreditam ser possível extrairmos lições da experiência trágica deste momento pandêmico e criarmos formas novas e melhores de convívio social, ele prefere expor, diante da praga que se difunde e ameaça, a hipocrisia das convenções sociais, a intolerância ao modo de vida alheio que, ironicamente, se agrava na situação de isolamento e, por fim, a consciência crua que suas personagens passam a ter de si mesmas, ao se defrontarem com o espelho de suas aparências.
*** HELVIO MORAES possui Mestrado (2005) e Doutorado (2010) em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Realizou estágio de doutorado na Università di Bologna. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, credenciado (docente permanente) no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL, com sede em Tangará da Serra. De fevereiro de 2015 a fevereiro de 2016, foi visiting professor junto ao Dipartimento di Scienze Politiche e Sociali da Università degli Studi di Firenze, Itália. Desenvolve estudos relacionados com os seguintes temas: utopia literária; literaturas de línguas inglesa e italiana dos séculos XVI e XVII; literatura pré-modernista e modernista inglesa. É membro do U-Topos - Centro de Pesquisa sobre Utopia (IEL/Unicamp). É co-editor da revista Morus - Utopia e Renascimento. É coordenador do Projeto de Pesquisa "A Razão, a Vontade, a Ação: um estudo da Utopia Inglesa no século XVII" (com apoio financeiro do CNPq). Publicou o livro A Cidade Feliz (Ed. da Unicamp, 2011), que compreende o estudo e a tradução comentada da utopia de Francesco Patrizi da Cherso.
LUCINDA PERSONA
DISTENSÕES DA REALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA
(Lucinda Persona)
O vírus do Ipiranga, de Eduardo Mahon (Carlini & Caniato, 2020) é o quarto livro da Coleção “Contos estranhos” que totaliza cinco volumes.
No conjunto de quinze contos, o autor, seduzido por temas urbanos, retorna em uma perspectiva realista, mas distendida por algum elemento anômalo, às vezes de modo tão sutil que não se nota. As narrativas são construídas a partir da vida trivial tomada de súbito pelas sombras e assombros da pandemia. São relatos vazados em uma linguagem cheia de fôlego, objetiva, enxuta e dentro do território imprevisível onde reinam a fantasia, o inesperado e a extravagância. E tudo é realizado de um modo que a experiência de leitura resulta muito marcante.
Assim, a quarentena imposta constitui o eixo ficcional que sustenta os relatos, explorando a natureza das relações humanas e os personagens em seus limites emocionais, tão diversos em suas ocupações enquanto funcionários públicos, operários, donas de casa, havendo até um protagonista que não faz absolutamente nada, gerando um desfecho assustador.
Há, entre os vários destaques, o fato de “O vírus do Ipiranga” não ser posterior aos acontecimentos opressivos e conturbados da epidemia, mas sim o de ocupar o “olho do furacão” em plena vigência, percorrendo as vias secretas de uma metrópole e flagrando vidas que habitam um mesmo espaço geográfico, parecendo às vezes nossos vizinhos.
É inegável a pertinência dessa proposta ficcional em apresentar, com boa dose realista, os processos existenciais vividos pelo mundo em face da pandemia e dos impactos decorrentes do distanciamento e do isolamento, ao mesmo tempo em que o autor recorre a estruturações insólitas para expressar o grau dos danos produzidos e o quanto a pandemia tem deixado as pessoas fora do normal.
Ademais, chama muito a atenção o último e ótimo conto “Faxina completa”, estruturado e disposto a partir da citação dos personagens, em pequenas notas que reprisam algumas de suas características físicas, civis e profissionais, a cada ação ou acontecimento. Uma estratégia que provoca curiosidade crescente, em clima novelístico.
Os relatos, na justa medida, são marcados por um ritmo célere, frases pontuais, breve extensão e certa dose de humor a temperar, por outro lado, o clima trágico. Os desfechos são invariavelmente surpreendentes, a exemplo: “A gripe”, “As voltas do tempo”, “Olhos nos olhos”, “Máscaras” “Bem-vindo”. Talvez até se possa propor uma loucura mansa atravessando o universo mahoniano.
Em suma, O vírus do Ipiranga, espelha toda a habilidade do escritor na narrativa curta e também o poder de causar suspense, levando o leitor seduzido a imaginar como nascem essas histórias incríveis que saltam o muro da realidade e invadem o terreno baldio dos sonhos e pesadelos.