SINOPSE
PALAVRAZIA – O autor aprofunda-se no haicai e na palavra breve. Desenvolve ironias finas sobre questões regionais e locais, aprofundando-se em questões existenciais. Composição de três livros menores, reunidos em box: Meia Palavra Vasta, Palavra de Amolar e Palavrazia.
FORTUNA CRÍTICA - MARLI WALKER
Palavra: do latim parabola, – ae. Mensagem oral ou escrita.
Azia: queimação.
Palavrazia: palavra ardente, que manifesta ardor ou entusiasmo.
“é tanto amor/ em poesia/ que palavrazia”.
Sintoma: trilogia poética.
“Meia palavra vasta/ Palavra de amolar/ Palavrazia”.
Prescrição: projeto poético.
“a minha poesia/tem um projeto:/ uma arquitetura/sem arquiteto”.
Acometido de “Palavrazia”, o eu lírico se pergunta: “até/ quando/ essa/ liter/ atura?”, e emenda: “alerta/ a/ letra:/ ela fala”. Ora, se a poesia insiste, inflama e teima em surgir, então é preciso dosar, tratar as palavras, pois “são/ manadas xucras/ ruminando sentido”. No entanto, recomenda-se cuidado e astúcia ao manuseá-las, uma vez que a posologia exige doses adequadas à eficácia do tratamento. Assim, para eliminar qualquer risco de recaída, toda cautela é necessária: “só subo/ na poesia/ pelo elevamor”, porque “palavra saliva/ lambuza letra/ silababa toda”.
Por outro lado, o sujeito lírico revela um certo descaso com os cuidados e se entrega ao exercício poético livre de receitas ou recomendações. Sabe ele que poesia não entende de limites e não aceita ressalvas ou tratamentos prolongados, por isso acredita que “em algum Gullar/ há sempre/ um poema/ bom pra sujar”. Alinhado aos poetas modernos, Mahon acerta na dose ao evocar o poeta para estabelecer o lugar, o ângulo de sua criação, talvez uma parte vertigem e outra linguagem, como se traduziu Gullar. Afinal, para o bem da arte e da saúde da poesia, que outro lugar melhor para viver no futuro senão pichado/no muro? Pode haver
“o â n g u l o
a n g u l o
n g u l o
g u l o
u l o
l o
o”
adequado ou recomendação pertinente ao poeta acometido de “Palavrazia”? Certo é que não há salvação fora da poesia e, consciente dessa condição, o eu lírico se entrega: “coitado/ do poeta/ largado/ ao vício/ de cheirar/ palavras”. Nessa alucinação poética, confessa com lucidez a consciência do estilo: “tá bom, admito/ na minha poesia/ sempre me imito”. Mas essa clareza não é mera observação do seu quadro clínico, trata-se do estado de espírito do poeta moderno, daquele que sabe da sua enfermidade, daquele que “sai de sua casa, sua pátria, sua língua, em busca de algo indefinível e inalcançável, porque se confunde com a mudança”, como receitou Paz (2013). Por isso, rejeita todo e qualquer diagnóstico ou rótulo para sua arte, porque sabe que em seu devaneio poético, em seu
“/.../
inferno
é tudo muito
anti pós moderno”.
E, por isso mesmo, afirma, “porta afora/ afora a porta/ o que impor/ importa?”.
A enfermidade deste “Palavrazia”, caro leitor, transmuta-se em poesia ora mais crítica, como em “Poema-lixo”, e ora em doses salutares de imagens poéticas feito gotas milagrosas, como as que seguem: “às margens/ da aurora/ parei para olhar/ um pôr do agora”. Vejamos, pois, que a cura se reveste do “poder das palavras: a poesia pensada e vivida como uma operação mágica destinada a transmutar a realidade” (PAZ, 2013). No tratamento diário e salutar, a posologia vem dosada em porções exatas, concisas, mas nem por isso insuficientes. A cada poema, um universo completo, a cada verso, uma nova imagem que surpreende pelo manuseio ágil com a palavra.
E assim, o “tanto amor” de “Palavrazia”, traduz-se na única cura possível ao poeta que lança mão da palavra para dizer sua arte, mas que sabe muito bem que ao dizer, faz. Sabe que a poesia, mais que autoconhecimento, é autocriação. A automedicação, nesse caso, vem revestida da sensibilidade do poeta que convalesce e, por isso, resguarda-se no milagre. Sim, apesar de toda técnica e ciência, há sempre o anseio pelo milagre, o milagre do amor. Dele, o sujeito lírico se reveste e nele se restabelece e se recria. Se há uma falta, se há “o abraço/ do vento” a suprir uma falta, se há uma enfermidade, há, no entanto, um remédio e uma cura: o amor. Veja o leitor a prescrição lírica para evitar e prevenir aquilo que seria um mal irreparável: “imagine o dano/ dizer ao amor:/ - eu não te amo”. Ou, então, a consciência de que todo amor vivido é salvação e acerto, pois, “não se/ arrependeu/ de ter amado/ um amor/ equivocado”. Ainda, ao melhor estilo da poesia mahoniana, o amor que poderia vir a ser, mas que a dose dionisíaca, sempre excessiva, deitou a perder: “desencontro/ no caminho:/ quando ela ia/ eu, vinho...”. Talvez o descuido seja proposital, pois sabe bem, esse sujeito lírico, que sem a palavra amor, sem amor e sem o risco de uma recaída, não há criação que se cure, que perdure ou resista. Então, como que descuidado, diz: “eu, incauto,/ dormi de pijama/ com a janela aberta”. Não por acaso ou tampouco distraído, o poeta permite uma corrente de ar, uma lufada inesperada de vento, pois adoecer de “Palavrazia” é curar-se da enfermidade do mundo, é recriar o amor e a palavra amor, é criar uma trilogia que celebra a poesia e o amor, é transmutar a vida em arte e misturá-las em perplexidade e celebração: José Geraldo, João Gabriel e Eduardo Jorge. Porque apesar da aspereza, da ironia e da crítica presentes em sua poesia, Eduardo Mahon sabe que só há astúcia/ em palavras/ de pelúcia”.
Sinop, 21 de junho de 2015
Em manhã de domingo repleta de sol.
JOÃO ANTÔNIO NETO
Um livro-hino
Apresentação de João Antônio Neto
Mais uma vez, entra em cena Eduardo Mahon, para nos encantar com o seu talento, a prodigalizar-nos com a sua obra, que já se torna obrigatória às delícias da boa leitura. Agora, é com “Palavrazia”, ao lado de “Meia Palavra Vasta” e “Palavra de Amolar”. Como, antes, apresenta uma síntese que se desdobra em um humanismo de extensão singular e profundo – um tecido de poucas linhas que significam muitas páginas – a literatura da qual precisamos para nos deleitar e engrandecer.
Quando pede perdão por “ser eu mesmo”, o autor dá-nos ali o recado para todos nós; mas, a um tempo só, confessa o pecado e a virtude da nossa humanidade fecunda, embora tudo acabe “ao relento, até o vento” – mesmo assim, deixamos o rastro por onde transitamos... “entre a ida e a volta”. Todos somos um no mapa do destino a indicar que não latejamos em vão – e o poeta será o coração do tempo.
A “Palavrazia” será uma boa prova de que nossa condição é, também, condução para o alto, sempre mais alto. Parabéns não pelo “livrinho”, mas para o “livro-hino”. Com o abraço do seu também admirador.
EDSON FLÁVIO SANTOS
QUERER E NÃO QUERER: O PERCURSO LÍRICO MAHONIANO
Com dezessete livros publicados, e incontáveis artigos de opinião e resenhas, Eduardo Mahon é, sem dúvida, um dos autores que mais publicam em Mato Grosso nos últimos anos. O editor da Revista Pixé, carioca residindo em Cuiabá desde a década de 80, é um grande incentivador da literatura. Exemplo disso foi o Primeiro Prêmio Pixé de Literatura e outras ações culturais e artísticas onde Mahon está envolvido.
A pauta que me motiva, para uma conversa breve e sem pretensão – pelo menos por agora - de aprofundamentos, é sua obra lírica, o que representa mais de um terço de sua produção até agora. Todas as obras aqui analisadas, bem como as posteriores, recebem o selo Carlini & Caniato, editora cuiabana que faz um belíssimo trabalho de edição e incentivo aos autores do estado.
Dos seis livros que compõe esse corpus, Nevralgias (2013), que conta com o belíssimo texto de orelha da, também escritora, Marília Beatriz, é a primeira obra onde Eduardo Mahon arrisca-se pelos meandros da literatura e aposta no jogo entre poemas e contos.
Desse momento inicial do autor é possível perceber que a lírica mahoniana, nas mais de três dezenas de poemas que compõe esta obra, não mantem a mesma estrutura entre si. Seus temas vão desde o calor cuiabano até a própria poesia. Nesse sentido, o autor não faz questão de explorar, exaustivamente, as bananas, os cajus, as mangas, ou qualquer outro elemento local, como quem procura um elemento exótico em sua poesia para mostrar-se mato-grossense. Na verdade, ele foge desses padrões diferenciando-se de outros poetas contemporâneos, sem diminuí-los por isso, como uma estratégia do autor que busca, a cada obra, imprimir seu próprio estilo.
Alguns poemas como Clarice e Pedra, são escritos totalmente em tercetos e Poema de cristaleira todo em dísticos. Eduardo Mahon não esconde sua inclinação pelos quartetos. Essa repetida apresentação de poemas, em quatro estrofes de quatro versos, nos remete a forma fixa do soneto, pelo número de estrofes. No entanto, o desejo do autor em escrever ultrapassa a limitação da quantidade de versos proposta pela tradição. Importa dizer que a obra alcança uma convivência harmônica, inclusive visual, entre prosa e poesia que se revelam enleadas pelas imagens incríveis de Adir Sodré.
Pensando ainda nos elementos que compõem a obra em questão podemos encontrar uma característica do autor que se desdobrará futuramente. Ao alternar contos e poemas, Eduardo Mahon lança mão da experimentação. Não podemos esquecer que é seu livro de estreia nas veredas literárias e é uma obra que mistura contos, poemas e imagens que acabam por sugerir um certo tipo de tensão. O que se encontrará na próxima página? Outro conto? Um novo poema? Uma imagem? Possuem relação entre si? Para onde o autor quer nos levar? Esse elemento de suspense, ou retardamento, a meu ver, representa um avanço na tentativa de encontrar seu estilo ou, estabelecer um pré-diálogo com suas obras posteriores, principalmente os romances. Estaria o autor testando seu leitor?
No ano seguinte, 2015, Eduardo Mahon lança a trilogia Palavrazia, Meia palavra vasta e Palavra de amolar[1] que, se eu pudesse, consideraria um livro só: o livro da palavra. Escritos apenas com poemas, os três livros denotam, na nomeação da capa, uma proposta muito clara e que se efetiva ao longo da trilogia que é o trabalho com a própria palavra.
O processo criador nasce com a própria palavra. Ao encontrar diversas formas de experimentação lírica, eu acredito naquilo que disse Emil Staiger (1997) que “falar-se sobre versos líricos, julgá-los e fundamentar o julgamento é quase impossível”. E tratando-se dos versos de Eduardo Mahon torna-se ainda mais difícil esse julgamento pois o autor nos apresenta não uma, mas três obras completamente diferentes da proposta lírica de Nevralgias (2013). Enquanto o primeiro ultrapassa os versos do soneto, a trilogia de 2015 avança agora para uma economia de versos.
Nos três livros, a simbologia do número três se repete não apenas em tercetos, dispersos pela trilogia, mas na dedicatória de Palavrazia onde o autor oferece as obras aos três filhos.
Em Palavra de amolar, o autor revela o desejo de ver a palavra esmiuçada, encurtada
curta
a palavra
curta (AMO)
onde a ausência do tema é o próprio poema
na falta
de tema
criou o poema (AMO)
ou a próprio gesto de escrita é proposta
poetizei
que um dia
poeta virei (VAS)
reduzindo o verso até que não sobre nada dele
se
ave,
voe. (AZI)
Há uma visualidade muito importante nos poemas mahonianos. No entanto não o categorizo como poeta-visual. O que vejo em Eduardo Mahon é um poeta que ousa experimentar todas as formas possíveis da própria palavra. Amparado no que diz GILLO DORFLES (1992), vejo que a lírica do autor se apodera das novas dimensões que a palavra pode alcançar. Dimensões amplamente exploradas por outros poetas mato-grossenses, que o autor diz serem os “precursores da mentalidade vanguardista”, como Wlademir Dias-Pino, Silva Freire e Gervásio Leite. Estes dois últimos, lembrados no que chamaremos de poemas-homenagem.
Numa trilogia onde as páginas não são numeradas, os poemas desenvolvem-se em todas as direções do papel ressignificando o lugar da própria palavra enquanto matéria de poesia. Uma palavra visivelmente pensada e aquilo que, por vezes, não é considerado poético também “cabe no poema” de Eduardo Mahon com uma nova e, por vezes, inédita virtude expressiva. Em outras palavras, aquilo que não serve para alguma coisa, serve para sua poesia
em matéria de poesia
o que muito serve
não tem serventia (AZI)
As escritoras Marilza Ribeiro (Palavra de amolar), Cristina Campos (Meia palavra vasta), Marli Walker (Palavrazia) e Marília Beatriz (Palavrazia) compõe as leitoras de primeira hora de Eduardo Mahon nessa empreita e levantam questões importantíssimas para aqueles que possam a vir se debruçar sobre as obras poéticas do autor.
Em 2017, Eduardo Mahon publica seus dois últimos livros de poemas, até então. Um certo cansaço do mundo e Quem quer ser assim sem querer? as publicações posteriores serão de contos e romances.
O dueto parece ser um resquício do que ficou por ser dito na tríade anterior. “Metro e ritmo não são a mesma coisa” já disse Octávio Paz (1990) e isso pode ser bem observado nestas duas obras onde o autor se vê mais conciso ainda em páginas que mudaram de tamanho em relação as publicações anteriores. Em “Quem quer...” a palavra, literalmente, se espreme no papel
me
ar
de
ver
tan
to
ver
de
Parecem-me livros publicados com poesias não incluídas nas obras anteriores. Como se o autor ainda necessitasse dizer algo a mais e só assim terminar seu primeiro ciclo lírico para dar início a um novo ciclo de livros, agora apenas em prosa. Ao menos podemos constatar que suas publicações posteriores foram todas dedicadas ao gênero narrativo.
Diferencialmente de Nevralgias (2013) que mistura prosa e poesia. Nesse momento, Eduardo Mahon, separa os poemas na obra Quem quer ser assim sem querer? e o que eu chamarei de prosa-poética está reunida em Um certo cansaço do mundo. Embora o autor mantenha tipografia semelhante nas cinco últimas obras, onde as letras parecem apartarem-se das palavras, estes dois exemplares têm um tom diferente das demais publicações. Não há apenas um certo cansaço como diz o nome do livro. Talvez, o estado de espírito do autor tenha ditado as condições de um eu-poemático que não consegue ser feliz num mundo em desencanto
Sinto um vazio
De peixe sem rio (Quem quer...)
Um vazio que leve esse eu-lírico a declarar que “O verdadeiro amor não existe” (Um certo ...) ou o tradicional “To be, or not to be” de todos os poetas
agora estou
querendo ser
quem eu sou (Quem quer...)
Em “Um certo...” há momentos onde seus poemas conversam com grandes nomes da literatura brasileira como “O que vem você fazer aqui, Pedro?” que nos remete ao inesquecível “E agora, José?”, ou ainda de nomes além-Brasil como em “Quem me compra uma poesia?” verso que nos lembra a obra, do escritor português Afonso Cruz, “Vamos comprar um poeta”.
Ainda de acordo com crítico e poeta argentino Octavio Paz (1990) “as imagens recriadas pelo poeta tem origem na sua visão e experiencia de mundo”, e eu avanço dizer que no caso de Mahon é sobre a própria obra que ele observa e se debruça. Sua experiência vem desse voltar-se para si mesmo. Não em um ato vaidosos ou soberbo, mas como um autor preocupado com o devir. Um autor que, ao longo das seis obras analisadas, revela sua “techné” que se elabora sobre o próprio gesto de escrita demonstrando um claro domínio e consciência do fazer poético.
E é essa consciência, aliada a intensa produção literária, que o credencia e coloca o autor no patamar dos grandes escritores do estado, e que pode e precisa ser estudado não apenas isoladamente, mas dentro de um sistema onde ele mesmo tem o seu próprio projeto literário.
Edson Flávio Santos
Doutor em Estudos Literários
Cáceres – MT
[1] Que passo a usar Palavrazia (AZI), meia palavra vasta (VAS) e Palavra de amolar (AMO)
MARLI WALKER
EDUARDO MAHON
Marli Walker*
Natural do Rio de Janeiro, o poeta nasceu em 1977 e vive há 37 anos em Cuiabá, para onde veio com a família ainda menino. Formado em Direito, é membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Além de advogar, atua também como professor de Criminologia, Direito Penal e Processual Penal. Eduardo Mahon é Imortal da Academia Mato-grossense de Letras, onde ocupa a cadeira 11, cujo patrono é Augusto João Manuel Leverger, o Barão de Melgaço. É sócio correspondente da Academia Sul-Mato-grossense de Letras. Escreve semanalmente textos de opinião para o Jornal A Gazeta, esporadicamente publica no Diário de Cuiabá, nos sites Mídia News e Folhamax. Contribui ainda com O livre, programa de entrevistas que vai ao ar uma vez por semana. Estudante de Filosofia, o autor é atento às causas importantes que norteiam a vida política do Estado. Polêmico, articulado e crítico não cultua a agitação das badalações sociais, preferindo o convívio familiar. Encontra-se com amigos e apreciadores da arte em volta da própria mesa, que ele mesmo ajuda a preparar.
A recente (e vasta!) produção literária de Eduardo Mahon põe à mostra a agilidade com que o escritor manuseia as palavras, tanto em verso como em prosa. Em 2013 estreou com o livro de contos “Nevralgias”, seguido, em 2014, de “Doutor Funéreo e outros contos de morte”. Em 2015, “O Cambista” marcou sua estreia no romance, e em 2016 lançou o segundo texto no gênero, “O Fantástico encontro de Paul Zimmermann”. A prosa do escritor apresenta características da literatura fantástica, deixando ao leitor o estranhamento ante a ausência dos limites humanos e da lógica. Para 2017, está programado o lançamento de “Contos estranhos”, edição bilíngue (português/inglês) que será lançada também em Portugal.
Na poesia, Mahon segue o mesmo ritmo e regularidade das publicações em prosa. “Meia palavra vasta” marca sua estreia no gênero, em 2014, seguido em 2015 de “Palavra de amolar” e “Palavrazia”, este último dedicado aos filhos trigêmeos e oferecido ao leitor como partilha do sentimento de embaraço, novidade e perplexidade ante a condição de “tripaternidade” que o poeta acabara de experimentar. Essa produção, lançada como trilogia em 2016, surge como um poema único que metaforiza a experiência do eu-lírico diante do espanto da vida, da criação e da poesia, como quem diz: para cada filho um outro filho, um livro de poemas. O poeta publica regularmente também em meio eletrônico, a cuja produção tivemos acesso para realizar esta coletânea e dar ao leitor uma dimensão da produção que é próxima a 450 poemas.
A concisão, poemas curtos, em sua maioria no formato de haicais, é marca do poeta, evidenciando o estilo breve e econômico. Leitor de Leminski, define sua criação em verso como o ato de desconstrução e reconstrução da palavra. Em “Poema-manifesto”, o primeiro da trilogia, lê-se: Não ao amor/ na poesia;/ não ao passarinho/ à noite/ à lua/ ao dia./ Sim à palavra/ livre, fria/ nua. Os versos revelam a preocupação do poeta com a arquitetura da palavra, propondo que sua poesia/ tem por projeto/ uma arquitetura/ sem arquiteto. Nas palavras de Marília Beatriz, em posfácio à trilogia, a poesia mahoniana apresenta ao leitor um “vertiginoso labirinto mágico, dos contorcionismos experimentais e da palavra/lavrada no solo larval do signo encerrado na boca exigente do poeta sofisticado e caboclo”.
A poesia de Eduardo Mahon segue a trilha contemporânea da produção em verso que lemos desde o final do Modernismo (1945) até os dias de hoje. Preocupado única e exclusivamente com a Palavra, suas mais variadas possibilidades, formas e sentidos, o poeta cria e a sua arte nos desestabiliza, tira-nos do anonimato, fazendo-nos sentir únicos, humanizando-nos. Como toda arte contemporânea, os poemas de Mahon trazem ao leitor a possibilidade de ver o mundo de formas várias, assim como o próprio homem moderno se encontra, fragmentado, tão vário, tão comum e, ao mesmo tempo, tão só.
Caramujo ia,
caramujo vinha,
sem sombra de carros:
avenida Manoel de Barros.
(Meia palavra vasta, 2014, [s.p.])
O poema anuncia tempo e espaço lentos (pretérito imperfeito), pois o caramujo, popular caracol, a ausência de trânsito e a lembrança do poeta Manoel de Barros trazem a imagem de lentidão ao quadro poético. Não há perigo a essa lentidão porque não há carros circulando na avenida Manoel de Barros. Ora, Manoel de Barros é o poeta das miudezas, das imagens lentas, dos seres ínfimos alheios ao movimento do mundo que os cerca. Assim, em quatro versos, o eu-lírico enuncia uma imagem em que tempo, espaço e sentido estão fechados sobre si mesmos. O ritmo dos dois primeiros versos é cadenciado pelas rimas verbais paralelas, ia/vinha, que é arrematado pelas duas seguintes, substantivas, também paralelas, carros/Barros. O semantismo sígnico do poema revela a atmosfera calma e tranquila em que o caramujo desenvolve seu movimento. O último verso explica a possibilidade dessa lentidão, justificando a calmaria da cena: se a avenida é Manoel de Barros, não há risco de atropelamento, pois a ambiência do poema cria um espaço propício a esse ritmo. A forma e o conteúdo do poema fecham-se sobre o ritmo, num uníssono, criando uma imagem inequívoca para o leitor. Uma condição essencial para compreender o poema é conhecer as características da poesia de Manoel de Barros, sem o que o leitor não dará conta da metáfora incomum, que é uma das vertentes da poesia contemporânea.
Quanto tempo
será preciso
para ser conciso?
(Palavra de amolar, 2015, [s.p.])
Nesse poema, o eu-lírico manifesta um questionamento sobre o fazer poético, perseguindo aquilo que deseja como estilo, o máximo no mínimo. A rima rica dos versos dois e três preciso/conciso, além de imprimir o ritmo ao poema, manifesta um questionamento, revelando também a necessidade do poeta em apurar (ser preciso) a concisão. Parece excessivo o tempo que precisa para alcançar a palavra precisa, num eterno anseio e busca de precisão-verbo-adjetivo que o sujeito-lírico expõe. É o que persegue, mas dá indícios de insatisfação mediante a pergunta lançada. O hermetismo verificado no poema, característica da poesia contemporânea, revela a voz de um inconsciente dizendo aquilo que o leitor não sabia que precisava ser dito. No haicai, o eu-lírico fecha sobre si o tempo e, nele e com ele trava sua busca pela concisão.
Quero
o amor,
seja como flor
(Palavra de amolar, 2015, [s.p.])
Três versos, seis palavras num crescente, uma no primeiro verso, duas no segundo e três no terceiro. O haicai, assim chamado justamente por apresentar essa forma de poema (três versos) consagrada pelos japoneses para expressar temas ligados à natureza em apenas três versos, traz também o universo natural: o amor e a flor. O sujeito-lírico recria uma expressão bastante usada, “seja como for”, trocando o verbo for pelo substantivo flor. A rima amor/flor, longe de configurar apenas uma rima, é o elemento surpresa do poema. Além de surpreender o leitor com o trocadilho, muito presente em sua poesia, o sujeito-lírico recria a expressão ofertando justamente uma flor, adereço tão caro às histórias de amor e aos enamorados, ah!, o amor! E como ele rima com flor! Assim, ao desejo do eu-lírico, o amor, vem juntar-se a imagem consagrada do pedido feito com buquê de flor. Ora, seja dado ao poeta todo o amor que ele quiser. Alguém ousa esquivar-se de apelo tão engenhosamente elaborado?
toda solidão
cresce
no forno
de um domingo morno
(Palavrazia, 2015, [s.d.])
O poema traz imagem e sensação bastante conhecidas para quem vive na região Centro-Oeste, mais especificamente em Cuiabá, a capital, onde as temperaturas atingem registros bem elevados de calor. Um domingo morno torna a solidão ainda mais acentuada, como que fermentada na fornalha quente. Estruturado em quatro versos, os três primeiros extremamente breves, seguindo a característica da poesia mahoniana, o poema denuncia a solidão exacerbada pelo domingo que se arrasta lento e morno. As rimas dos dois últimos versos, forno/morno, compõem, com esses dois versos inteiros, toda uma circularidade criada com a letra “o”. São sete “os” em seis palavras, compondo a imagem de forno e domingo. A palavra “forno” remete para o simbolismo do espaço fechado, da fermentação, do calor e do fogo. A palavra “domingo” vem, no poema, revestida de reclusão, pois é o dia em que não se tira sequer o pijama para ficar recluso, trancado, longe da rua e do trabalho. Nesse ambiente, o sujeito-lírico manifesta a imagem de uma solidão crescente, fermentada pela temperatura que se torna ainda mais presente no decorrer do domingo.
a dor
me tem
a dor
me sido
(Publicado em meio eletrônico)
A imagem da dor é a tônica deste poema que traz a estrutura da poesia moderna num quarteto breve, mas carregado de sentidos. O hermetismo, caracterizado aqui novamente como aquele algo que o leitor não sabia que precisava saber, mas que lhe é revelado, manifesta o compromisso do poeta com a Palavra e também uma de suas características mais acentuadas, o trocadilho, desta vez realizado por meio da troca do verbo que se configura em novos sentidos. Essa troca, porém, envolve também a palavra “dor” no jogo de descontruir/construir palavras e sentidos. Vejamos: o primeiro e o terceiro versos trazem apenas “a dor”, o segundo e o quarto verso trazem a relação temporal que o eu-lírico estabelece com essa dor. Trata-se de uma relação/tensão que rouba ao enunciador o direito de adormecer, pois que a lógica seria ter adormecido (a dor/ me sido = adormecido), anestesiado em decorrência da dor. No entanto, o que se manifesta é um tempo recorrente no sentido inverso: a dor/ me tem, presente, e a dor/ me sido, passado (particípio). Não se pode desconsiderar, porém, que tamanha dor tenha adormecido, anestesiado o sujeito-lírico, uma vez que os sentidos estão nas entrelinhas e é preciso acordá-los, como requer a moderna poesia brasileira.
MANHON, Eduardo. Meia palavra vasta. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato Editorial, 2014.
_____. Palavra de amolar. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato Editorial, 2015.
_____. Palavrazia. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato Editorial, 2015.