SINOPSE
O HOMEM BINÁRIO E OUTRAS MEMÓRIAS DA SENHORA BERTHA KOWALSKI – Romance. O programador Josef Platek, padecendo de uma doença terminal, une-se com outros dois especialistas em computação para tentar a imortalidade por meio da transmissão de todos os dados do cérebro para um software especial. O problema é saber se as pessoas serão as mesmas depois de ultrapassarem a barreira digital.
FORTUNA CRÍTICA - ANA LÚCIA RABECCHI
Auditório de Cáceres lotado com alunos e professores de literatura.
O MUNDO BINÁRIO DE EDUARDO MAHON
Profª. Drª Ana Lúcia G. S. Rabecchi
As histórias de Eduardo Mahon, além de serem nutridas pela experiência de leitura que reconhecemos num grande repertório, elas oferecem e tiram a ilusão de compreensão. O romance O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski é uma alegoria das atitudes que o homem toma, ou se entrega, diante da perspectiva da morte, daí a narrativa ter como conteúdo a busca incansável por aquilo que ele, até então, não podia comprar: a imortalidade. Naturalmente essa busca é permeada pela discussão do conceito de humanidade de “forma mais radical”, como diz o autor, que termina por nos levar a uma reflexão do que seja humano versus desumano e da vida versus a morte. Vejamos a reflexão da psiquiatra Justyna Klos:
Não é preciso nem mesmo estar num consultório médico, senhora Kowalski. Basta recorrer aos arquivos de história. Homens podem não ter humanidade alguma. O que chamamos de humanidade é, na verdade, uma construção tão rebuscada quanto fictícia. A humanidade, enfim, não é uma propriedade inata. E, se esse conjunto de atributos que apelidamos de humanidade não é partilhado por todos os seres humanos, é verdade que pode ser observado noutros seres, até mesmo nos virtuais. Basta não ter preconceito e levar a proposta do senhor Platek às últimas consequências (p.143, grifo meu).
É exatamente discutir esse “e se...” que o romance faz ao nos deixar sufocados não pela morte em si, mas pela clausura da vida num software, que pode encarnar também a metáfora dolorosa do mito de Prometeu Acorrentado. Essas reflexões justificam a boa trama de O homem binário, onde vida e morte são verso e reverso da mesma moeda. A fragilidade e finitude da vida na realidade realçam o medo e a angústia da morte.
A vontade de se perpetuar mesmo numa vida diferente faz com que a empresa Continuum Co alcance sucesso com sua fórmula de prolongar a vida e vender a felicidade ao homem através da visão de eternidade. A morte, então, perde o “caráter monstruoso” e passa a ser um estado de mudança de existência, uma migração deste lugar para outro como diz a epígrafe Apologia de Sócrates, com a qual o romance mantém diálogo, dentre outras obras.
Mahon, porém, vai além, banaliza a morte ao exaltar ironicamente a ciência e a tecnologia que conseguem guardar a personalidade, mas não abrandar seus medos, pois Josef Platek se ressente de ser um homem torturado ao “virar uma alma sem corpo, penando sem espaço e sem tempo”, o que a personagem diz ser uma condenação “não dormir, não acordar, não envelhecer e não morrer”, ou seja, uma cópia desumana do homem.
Em Alegria a questão da aparência e da realidade que permeiam toda boa ficção continua em pauta. Assim como Macondo em Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, Alegria é uma ilha da imaginação. A narrativa passa da criação ao apocalipse cumprindo um ciclo de vida e morte, onde esta mostra suas múltiplas faces. A cidade é vitimada por uma epidemia de suicídio em massa de peixes que desencadeia o medo, a angústia, a tristeza, o desespero, a solidão e, consequentemente, o suicídio dos homens, que vai se transformar em epidemia por impotência diante de um fato inexplicável, onde “a morte alcança até quem não havia nascido” (p.107).
Assim como A peste, de Albert Camus, que serve de epígrafe em Alegria, a iminência da morte relembra ao homem a sua pequenez diante da finitude e o faz querer agarrar com todas as forças à vida, que teme perder a qualquer momento. O desespero das pessoas é narrado por um dos médicos da cidade que tenta amenizar os males sem sucesso, restando-lhe apenas a solidariedade e a compaixão.
A morte neste romance de Mahon é recorrente e faz com que o narrador vá refletindo sobre a postura do homem perante o mundo e a si próprio. Com seu senso de humanidade e/ou desumanidade vive toda tragédia e reflete: “Há solidão em qualquer lugar, não é preciso buscá-la, com tanto afinco. Na ilha estive nessas condições sem buscar por elas” (p.160). A ilha, então, vem ser a clausura do homem abandonado à própria sorte.
Nessa contação de história, cujo final nos desestabiliza, valemo-nos de Garcia Márquez em O amor no tempo do cólera, para também afirmar a suspeita de que em Alegria “é a vida, mais que a morte, a que não tem limites”.
Profª. Drª Ana Lúcia G. S. Rabecchi
UNEMAT - Cáceres
DIVANIZE CARBONIERI
Narrativa distópica e conscientização em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski
MAHON, Eduardo. O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017.
O romance O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski (2017) de Eduardo Mahon, escritor carioca radicado em Cuiabá, é uma distopia futurista. Depois de uma grande guerra, o que sobrou das partes terrestres do planeta Terra foi dividido em continentes com nomes de constelações. A história se centra no Continente de Áries, no 43o ano da nova República, espécie de sociedade altamente controlada por intricados mecanismos de biopoder, que dividem a população entre os geneticamente aptos, com autorização para procriar, e os cidadãos novos sem tantos direitos. Aqueles que habitam os demais continentes em coletividades com menos regulações são chamados de selvagens.
A narrativa, conduzida por uma voz impessoal de terceira pessoa, não parece ter um único protagonista. Inúmeras sequências de fragmentos se interconectam, entrelaçando a história de diversos personagens, a maioria batizada com nomes originários do que é hoje o Leste Europeu. Josef Platek é um programador que tenta vencer a morte, criando a transferência de memórias pessoais para computadores. Ele é ajudado em sua empreitada por sua madrasta Bertha Kowalski, uma imigrante que aprendeu a sobreviver na ordem instituída e fazer o que é mais vantajoso, contrariando muitas vezes seus próprios afetos. Jan Zamoski é o advogado contratado para garantir o verniz de legalidade aos experimentos de Platek. Tamara Voik é a jovem e brilhante cientista encarregada de criar um algoritmo capaz de dar às memórias transferidas a singularidade dos seres humanos. E Magdalena Górecki é uma das funcionárias empregadas para conversar com os clientes da empresa de Platek que já foram transferidos e transformados em arquivos digitais. É em torno desse grupo, ladeado por outras figuras secundárias, que se desenrola a trama ficcional.
Com tantas fragmentações, era de se esperar que a ordem cronológica fosse quebrada, o que de fato ocorre. São três os principais tempos da narrativa: o início das pesquisas de Platek ainda em solo firme, o período em que ele e sua equipe têm que desenvolver seus trabalhos a bordo da Nau Continuum em alto-mar, tentando escapar das regras em torno do uso do sinal digital, e o momento em que, após terem concluído com êxito todas as etapas necessárias ao invento, desembarcam novamente no Continente e fundam uma companhia com o mesmo nome do navio. O efeito conseguido pela interposição constante de cenas com protagonistas e tempos diferentes é um certo atordoamento inicial nos leitores, que podem demorar um pouco para apreender o que se passa e qual é o todo da situação que está sendo narrada. Talvez seja algo semelhante ao que acontece com as pessoas que passam pela neuromigração, termo adotado pela Continuum Co. para o procedimento que realiza. Dessa forma, existe uma correspondência entre a técnica narrativa e o conteúdo do enredo, contribuindo para a coerência interna do romance.
A principal temática envolve a discussão a respeito dos limites entre vida e morte no contexto das novas tecnologias. Platek deseja evitar a mesma moléstia degenerativa que acometeu seu pai, uma demência devoradora de memórias e do controle de músculos e órgãos que os apurados métodos de diagnóstico já rastrearam em seu relatório médico. Portanto, o primeiro arquivo, nomeado de A01PLK, é aquele preenchido com suas próprias memórias, sendo que Platek “passava dezoito horas por dia com a mente plugada aos cabos que conduziam os impulsos elétricos ao biodisco. Para abastecer o sistema, ele se obrigava a produzir lembranças verdadeiras” (MAHON, 2017, p. 39). Contudo, apenas o registro das imagens que já existem na mente não tornaria o computador tão humano quanto a pessoa de carne e osso.
Tamara Voik é, então, a responsável por introduzir no software um modo operacional autônomo, algo que permite que o computador faça escolhas, não levando em conta a economicidade ou a eficiência, mas critérios pessoais, como as preferências de cada indivíduo. Depois de digitar os comandos para que o algoritmo da singularidade se integre ao sistema, a programadora estabelece com ele o seguinte diálogo: “Podemos saber o que está diferente? AGORA NÃO SOU MAIS A01PLK. VOCÊS ME CONHECEM. SOU JOSEPH PLATEK” (MAHON, 2017, p. 118). Para registrar a fala de todos os neuromigrados, é utilizada uma fonte diferente, exatamente como ocorre nesse trecho, marcando visualmente a diferença da voz metálica produzida pela máquina. A seguir, a transmissão completa de Platek para o software é realizada diante das câmeras e televisionada para todo o Continente. Seu corpo finalmente perece enquanto sua mente é transferida para o computador. O procedimento é considerado um sucesso pelos membros da equipe porque a figura holográfica que se projeta da tela se apresenta como Platek e responde às perguntas, levando em conta seu arsenal de experiências. Mas até que ponto se pode saber se o experimento foi realmente bem-sucedido? Como ter certeza absoluta de que o software é mesmo a mente da pessoa que antes vivia num corpo composto por células?
Bertha Kowalski, embora seja a sócia mais empenhada na manutenção da empresa, sente um mal-estar quase indisfarçável diante do aparelho: “Por isso, todas as vezes que saía da cabine 001 [na qual o software de Platek era projetado], parava ao lado da porta e, por alguns segundos, tomava fôlego suficiente para seguir adiante na ronda sem que a borda do olho fosse vazada por nenhuma lágrima” (MAHON, 2017, p. 75). Não demora, e o incômodo também é sentido por clientes e funcionários. A Continuum Co. é chamada de clube dos mortos. Seus contratantes, os neuromigrados, não podem deixar suas cabines e se submetem a um rígido protocolo, estando à mercê das atualizações (e decisões) dos diretores da companhia. Nesse sentido, mesmo que o software represente a continuação do organismo que cessou de existir, valeria a pena permanecer vivo num ambiente tão restrito e controlado? A autonomia inerente à vida humana não teria sido sacrificada em vão?
Na verdade, a sociedade fora da Continuum Co. também é rigidamente controlada, o que permite a afirmação de que há um paralelo entre o macrocosmo e o microcosmo da narrativa. Os que ainda estão em seus corpos também têm uma vida restringida por códigos e severas ordenações. Mas não parece haver uma conscientização a esse respeito. Ao contrário, todos os habitantes do Continente de Áries se esforçam por se integrar o máximo possível nas engrenagens do corpo social, mesmo que isso implique assumir atitudes extremamente penosas. Nisso se assemelham às suas contrapartes encerradas nas cabines da Continuum Co., que, tentando se desvencilhar da morte, acabam determinando, para si mesmos, um destino bem mais terrível. Talvez os selvagens dos outros continentes vivam de uma forma melhor, e o fato de não apresentarem uma genética considerada perfeita não impeça que sejam mais felizes do que os arianos.
Dessa forma, também se imiscui no livro a discussão a respeito da alteridade e das hierarquizações entre grupos humanos. É possível que o desenvolvimento das super tecnologias realmente conduza algumas sociedades a se julgarem superiores a outras. Existe amiúde uma articulação entre a tecnologia e a colonialidade do conhecimento, na medida em que o domínio de uma técnica implica frequentemente a dominação ou, pelo menos, a inferiorização de outras sociedades que não a conhecem. Mas essas narrativas distópicas questionam a pertinência desse modo de pensamento, já que um elevado avanço científico pode não trazer benefícios reais para as pessoas, servindo inclusive para limitar ainda mais as suas vidas.
O surpreendente, em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski, é que a conscientização começa a surgir justamente nos neuromigrados. São eles que passam logo a questionar a experiência que tornou possível a continuidade de suas vidas na forma de softwares. Platek, por exemplo, faz uma confissão a Magdalena, depois de se apaixonar por ela: “Não sou a mesma coisa de antes, garanto. Eu me lembro de correr pelo campo ainda muito novo, mas não sei como é correr, entende? […] Eu sou um espelho do que fui, uma cópia imperfeita, que nunca deveria ter existido” (MAHON, 2017, p. 190). Ele também demove Jan Zamoski e sua esposa de realizarem a migração de seu filho Adam, há anos em estado vegetativo, para uma máquina, convencendo-os de que seria uma condição ainda pior para o menino. Percebendo que sua existência atual é bastante insatisfatória, para dizer o mínimo, Platek, então, pede a Bertha que destrua o seu software, algo que o protocolo lhe garante. Porém, o título do livro indica de quem é a decisão final nesse romance. É a perspectiva pragmática de Bertha que acaba prevalecendo, são as suas memórias que realmente contam, imprimindo a perspectiva de alguém que fez de tudo para se adequar ao sistema e às suas maquinações.
---------------------------------------
“Narrativa distópica e conscientização em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski” é uma resenha de Divanize Carbonieri sobre o romance de Eduardo Mahon. O texto foi originalmente publicado na Revista Sociopóetica, v. 2, n. 20, 2018 (http://revista.uepb.edu.br/index.php/REVISOCIOPOETICA/article/view/4355/2758).
JOSÉ CÂNDIDO
O Homem Binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski
José Cândido de Oliveira Martins
As revolucionárias transformações que as tecnologias da informação e da comunicação, incluindo a poderosa internet, e sobretudo no domínio específico da programação da Inteligência Artificial (IA), introduziram no mundo contemporâneo, mudaram radicalmente o nosso modo de comunicar, de trabalhar e até das nossas relações interpessoais. Um dos capítulos mais vanguardistas e que mais questões axiais levanta, desde logo de natureza ética, é justamente o da IA. Este tema a IA tem preocupado intensamente as mais diversas e influentes instituições a nível internacional, bem como reputados neurocientistas (António Damásio, v.g.). Além de imensas incertezas, as inumeráveis promessas desse mundo novo podem também desencadear uma terrível caixa de Pandora.
Ora, é justamente esta temática complexa que o escritor Eduardo Mahon aborda de forma cativante e sugestiva na sua narrativa ficcional, O Homem Binário, perfeitamente consciente de algumas das mais relevantes interrogações que se levantam a estes novos e preocupantes rumos da ciência actual, especialmente no capítulo de vanguarda da programação tecno-neurológica. Contrariando um estereótipo que olha a criação literária como algo supérfluo e desligado da realidade, quem ainda tem dúvida de que a literatura pode constituir uma das formas mais fecundas e reflexivas de pensar o mundo e o homem contemporâneo? Todos nós já alguma vez meditamos sobre o inevitável confronto entre a humanidade e a tecnologia, sobretudo acerca das consequências imprevisíveis de algumas tendências da pesquisa actual.
Com este propósito de enorme actualidade, o escritor Eduardo Mahon cria um universo romanesco que potencia o pensamento sobre tão relevante temática. O título escolhido representa bem a essência da linguagem informática – “coleção de números monotonia que variam entre 0 e 1” – , ao mesmo tempo que já remete para a dualidade da existência alcançada através da IA, após a morte física. Não poderiam faltar ecos intertextuais de clássicos do pensamento ocidental, como Platão (Apologia de Sócrates), na epígrafe inicial. A questão nuclear que esta narrativa encena diante do leitor pode ser assim enunciada – após a morte física, e com o auxílio dos enormes avanços da IA, pode o ser humano almejar uma outra existência?
Consoante a sua enciclopédia cultural e literária, o leitor de O Homem Binário pode convocar outras criações diversas que, no mundo ocidental, se foram debruçando sobre os desafios das novas tecnologias, desde logo com duas narrativas clássicas – de Aldoux Huxley, Admirável Mundo Novo; ou de George Orwell e o memorável romance 1984 – entre outras distopias literárias que a nossa memória conserva, notáveis pela sua capacidade profética. No cinema, entre imensos filmes equacionaram esta temática, o leitor também pode evocar Transcendence: a nova inteligência (de 2014, realizado por Wally Pfister), protagonizado por Johnny Depp. Após a morte de um cientista notável, a sua esposa integra o seu cérebro num super computador que ele concebera, sendo assim possível os dois comunicarem post mortem. Porém, em lugar de criar uma IA, o cientista criara mesmo uma inteligência alternativa, com um alcance tirânico e inimaginável.
Há, aliás, na narrativa de Eduardo Mahon referências simbólicas a vários clássicos da literatura e do cinema. O autor e os seus leitores não desconhecem esta tradição criativa e reflexiva; e em O Homem Binário estamos num tempo futuro da nova República Continental. E o inventor de um revolucionário sistema na poderosa Continuum Co., Josef Platek (cientista de génio ou genocida?) propunha-se inaugurar uma nova e radical concepção da história da humanidade. Como? Prolongando a vida humana para além da morte física, conquistando assim um dos mais velhos sonhos do ser humano – a imortalidade.
Pela primeira vez na história mundial, quando se atingir a possibilidade de o computador pensar sozinho, anuncia-se a possibilidade prometaica de vencer a morte, através de sofisticadíssimos processos de neuromigração definitiva para uma máquina, no pressuposto de que a eventual réplica da memória equivale a uma “vida” humana, uma pessoa integral, assim prolongada para sempre. Nesse novo patamar da evolução humana, a partir da neuro-engenharia e da nanotecnologia, ergue-se a utopia científica da resolução de todos os problemas da humanidade, da medicina à ciber-segurança, em que a IA se estenderia a todas as áreas da vida humana.
Seria assim possível para a ciência criar um cérebro artificial, autossuficiente e com consciência de si, com conhecimentos ilimitados e até capaz de expressão emocional. Por outras palavras, máquinas supremamente inteligentes vencerão a morte, podem curar o ser humano em qualquer doença e salvar o próprio planeta. Neste visão (exequível ou utópica?) é possível o ser humano conservar-se “vivo” para sempre, face aos avanços inimagináveis da ciência e da programação informática. Para os defensores deste sistema, era “possível traduzir o ser humano para o código binário”. Porém, não devemos ceder à tentação ingénua da paráfrase da narrativa, mas apenas desvendar os rumos da história narrada, mas tão só apontar alguns aspectos estruturantes deste universo diegético, enunciando o cerne desta criação ficcional.
A inteligência desta escrita convida o leitor a ter uma postura filosófica, formulando perguntas essenciais. Neste contexto de ruptura, entre outras magnas questões, destacavam-se algumas, absolutamente cruciais, não para todos, apenas para alguns, mais ponderados ou mais cépticos perante esta prometaica revolução: as pessoas têm mesmo de morrer? Como lidar com a migração da memória individual e os seus processos de construção e de identidade? Seria mesmo possível, através de um software, capturar o abismo volátil da memória, da consciência ou do espírito de uma pessoa, como se fosse um simples arquivo? Tudo poderia ser redutível a um algoritmo? Ao mesmo tempo, como evitar vírus e falhas de programação em todo esse processo? Poderiam fazer-se cópias iguais da mesma a “vida”? Em último caso, quem tem o poder de controlar e de desativar o sistema e o seu software?
Ao mesmo tempo, pode-se carregar para uma máquina a consciência humana, sendo essa IA capaz de distinguir entre o Bem e o Mal? Poderia essa nova “vida” ser sensível à subtileza das artes? Como seriam essas experiências autorizadas para cada ser humano? Onde se encontraria neste processo a personalidade e a própria alma humana, o “chip de Deus”, como aqui é designado? Poderia alguma vez olhar-se para esse poderosíssimo algoritmo como a chamada “partícula de Deus”? Afinal, como migrar uma pessoa para o meio virtual? Pode existir um diálogo inteligente e, mais ainda, uma relação afectiva entre um ser humano (senhora Kowalski e a jovem Madalena, respectivamente) e um “ser” totalmente online (J. Platek), através da sua holograma? Em suma, seria este o futuro da humanidade, em que a pessoa é uma mera coleção de dados, um arquivo capturável?
É justamente este o núcleo fascinante da história de O Homem Binário, sobre uma das temáticas mais complexas e actuais do nosso tempo. É preciso ler este livro para reflectir sobre a possibilidade de o ser humano poder (ou não) ser traduzível para um código binário digital. Perante a finitude da existência, sempre se manifestou o desejo humano de auto-preservação ou de aspiração a uma vida eterna. Porém, nessa senda erguem-se poderosos argumentos ético-morais: pode um software captar a essência da humanidade?
Inquestionavelmente, com todas as suas congeniais imperfeições, a humanidade não pode ser comparável à artificial perfeição utópica da mais avançada tecnologia. Por tudo o que se deixa sugerido, se aceitar o desafio, o leitor contemporâneo tem sobejas razões para ler com gosto e proveito intelectual esta bem articulada e desafiante narrativa de Eduardo Mahon.
José Cândido de Oliveira Martins
(Universidade Católica Portuguesa)