SINOPSE
O FANTÁSTICO ENCONTRO DE PAUL ZIMMERMANN – Romance. O protagonista do livro é banqueiro e, pelas câmeras de segurança da mansão onde mora, percebe a presença de um “outro” idêntico a ele. Na aventura de entender a insólita existência do “outro”, Paul Zimmermann enfrentará a maior crise da própria vida.
OLGA MARIA
ALEGORIA DO CONTEMPORÂNEO NO ROMANCE DE EDUARDO MAHON
Olga Maria Castrillon-Mendes
O tema do duplo, muito recorrente na literatura, pode ser uma das entradas no universo narrativo do recém lançado romance de Eduardo Mahon, O fantástico encontro de Paul Zimmermann (2016), sua segunda investida no gênero.
Persigo a escritura desse polêmico e criativo escritor que tem se exercitado, também, no conto e na poesia. É do tipo que instiga e mobiliza leituras com enfoque na multifacetada condição humana. Sobre sua obra não cabem olhares unívocos, pois ela não se fecha com o último ponto. É justamente aí que se instaura o lugar da abertura para variadas interpretações. A instabilidade das personagens é a dúvida do leitor.
No gênero romanesco, estreou em 2015, com O Cambista, narrativa que procura, pelo domínio da linguagem, pensar a personagem protagonista no centro do setor econômico, à medida que os segredos das pessoas são parte do envolvimento da personagem no controvertido mundo dos negócios. Perguntas e tentativas de respostas são suscitadas pelo leitor que, tal qual o protagonista, enreda-se na trama e em seu obscuro interior. Conseguirão, leitor e narrador, desembaraçar os laços que os prendem ao extemporâneo? Aspectos internos e externos à história se embatem.
Em O fantástico encontro de Paul Zimmermann, da mesma forma, as perguntas não se esgotam. Entre os mecanismos ficcionais e a construção dos conflitos interiores, o duplo literário, representado pelo bem-sucedido banqueiro Paul Zimmermann, é a alegoria do contemporâneo. A perda da individualidade do protagonista é uma inquietante postura do autor perante a cegueira humana. A partir da história de um solitário homem que, casualmente, se descobre duplicado em câmeras domésticas instaladas em sua mansão, o narrador percorre os descaminhos da busca de sentido dos conflitos e as consequências advindas do encontro dos duplos. A alegórica composição de uma história que não se resolve, remete à questão da multiplicidade de recursos disponíveis na sociedade. Preso às tecnologias, o homem encontra-se cada vez mais enredado em suas próprias neuroses, distanciando-se da convivência humana.
Na tentativa de desfazer o nó trançado por Paul, o narrador devolve ao leitor uma inaceitável certeza das limitações humanas. Nem ele, narrador, tampouco a personagem, se furtarão ao pacto fáustico do homem com o demoníaco mundo midiático. Tornam-se algozes da sombra de si mesmos. Nessa relação, o topos do duplo é o movimento do jogo entre as realidades ficcionais. A do interior que focaliza a fragmentação do homem contemporâneo e a exterior, com as sugestões e influências do meio, incorporadas à estrutura da obra, como fala Antonio Candido ao perceber a relação entre literatura e sociedade, na coletânea de ensaios de A educação pela noite.
Para apreender esse processo que caracteriza a narrativa mahoniana, a ambiguidade se instaura na constituição do romance. O protagonista não se reconhece no outro. Ao contrário, estabelece com ele uma relação de adversidade e oposição. A imagem inicial refletida na câmera 9, paulatinamente, opera mudanças na personalidade de Paul. Aos poucos abandona a postura burocrata, afasta-se dos compromissos, da empresa, das pessoas e dedica-se, nervosamente, à diuturna assistência das gravações das muitas câmeras espalhadas pelos cômodos da casa. As projeções de si alegorizam o trânsito do racional para o irracional, operando a cisão da identidade da personagem dominada pelo próprio estranhamento. Seria eu esse ser desprezível?!
Nos desencontros de si Paul se desintegra. A visão caleidoscópica foge ao próprio controle. O foco não é mais o que é, mas o que poderia ter sido.
Em Tangará da Serra-MT, no dia do lançamento do romance, 13/09/2016
ACLYSE DE MATTOS
O Fantástico Encontro de Paul Zimmermann
com a prosa cinematográfica de Eduardo Mahon
Aclyse de Mattos
Não, não é fácil falar sobre a literatura com um viés de fantástico. Mistério, terror, realismo mágico e tantos rótulos são colocados e estudados repartindo o gênero em teorias que sustentam essa catalogação. E tudo começou com as narrativas misteriosas, presentes nos contos populares, passando pela literatura e chegando às narrativas fílmicas e até mesmo nos games interativos contemporâneos. Mas... Mistério sempre há de pintar por aí. Apesar do avanço das tecnologias, ou até mesmo por causa delas.
Este é o mote do romance de Eduardo Mahon: O Fantástico Encontro de Paul Zimmermann. O tema do duplo, numa sociedade em que a proliferação das imagens nos faz personagens, autores, vilões ou vítimas à revelia de nosso controle. A sociedade do controle e da informação acaba por soterrar-nos entre controles e informações. Há controles sobre controles. Meta-informações e meta-dados sobre dados e informações. Quase o fantástico conto de Borges (que amava e praticava o gênero) em que o rei pede um mapa do reino na escala de 1 por 1: ou seja, do tamanho do próprio reino.
Não se trata de ficar cego de tanto enxergar, mas de perder a materialidade de tanto se virtualizar. Mas, como a literatura é sempre virtualizada, que tal se a virtualidade se materializasse?
Se em O cambista (Ed. Carlini e Caniato) – romance anterior de Mahon – a situação de pronto fosse colocada num real fantástico: um mundo em que se penhoram e vendem segredos como o mercado financeiro hoje já faz com as dívidas (que são vendidas e penhoradas pelo próprio mercado financeiro), agora com Paul Zimmermann (um banqueiro voraz) é o mundo das tecnologias e do “sorria, você está sendo filmado” (como se a vida fosse uma comédia e não um drama) o alvo da imaginação e da escrita de Mahon. Agora, a atmosfera de mistério começa lentamente, sorrateiramente, como pequenos desvios do cotidiano. Um pijama de seda aqui, um copo de uísque ali, um voyeurismo desenfreado acolá... e pronto.
Com a proliferação das imagens, fantasmas nos assombram. Amamos e tememos as imagens. As imagens ao mesmo tempo presentificam e desmaterializam. Mas, e se esses fantasmas tomassem conta de nós, feito a nossa imagem melhorada por Photoshop, filtros e edições?
Impossível não pensar numa genealogia do fantástico: Poe, Lovecraft, King e tantos outros. Mahon acha um caminho original trazendo esse clima até para o título do romance (Fantástico) e elaborando uma metáfora do mundo atual das virtualidades e do controle. Impossível não retornar também aos relatos dos dúplices fantásticos como o Dorian Gray de Wilde, o Médico e o Monstro e tantos outros títulos do final do século XIX e começo do século XX – justamente um período em que a ciência avançava, o mistério campeava na literatura.
Impossível não associar também ao Freud e toda invenção (ou descoberta) do inconsciente. Particularmente ao ensaio consagrado ao Estranho em 1919 (Das Unheimlich – só para arranharmos a língua do suposto Zimmermann – qual deles) em que o fundador da psicanálise se alimenta dos contos de mistério de Hoffmann associando o mistério ao mais comum e familiar.
No entanto, a prosa de Mahon (também um fantástico poeta) incute algo de inovador. A rapidez, a velocidade, a imaterialidade (aspectos valorizados por Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio). Por isso a linguagem cinematográfica nos dá uma pista. Quem vencerá: o introspectivo, cuidadoso, obsessivo e paranoico Zimmermann real que nos relata a história, ou o ágil, leve e solto Zimmermann captado na câmera nove que se mostra e age quase sem reflexão? Sem dúvida uma alegoria deste milênio em que mostrar-se é mais importante do que ser.
Será que Zimmermann se tornará símbolo como seus antecessores de outras épocas? Frankenstein, Dorian Gray e Dr. Jekyll aguardam do outro lado da literatura. Muito bem escondidinhos em nossa imaginação. Até que uma câmera os capture.
Aclyse de Mattos é escritor, professor, poeta, cronista, contista.
JOÃO BOSQUO
De encontro (ou desencontro) fora da realidade virtual
João Bosquo
Este “O Fantástico Encontro de Paul Zimmermann” é o segundo romance de Eduardo Mahon, que está num processo de construção do romancista/escritor. Este livro não tem nada a ver com o primeiro, “O Cambista”, o único ponto em comum é o estilo da narrativa. Essa narrativa que às vezes nos lembra de José Saramago, com os diálogos sem pausa gráfica – travessões, linhas, parágrafos, enfim, dentro do texto, numa continuidade que exige um pouco mais de atenção, é um suspense ou uma ficção cientifica? Fiquei em dúvida.
Ou será um romance psicológico, pois em determinadas passagens o protagonista dá a nítida sensação de loucura, mas não aquela loucura que abate Rubião, personagem de Quincas Borba, de Machado de Assis. Não. A loucura de Paul Zimmermann é a incerteza, e não a certeza dos esquizofrênicos os quais afirmam que os outros que estão loucos. Zimmermann chega a perguntar “será que eu vou me tornar esquizofrênico?”; embora o modo de perguntar, como se estivesse falando com um amigo seja um dos sintomas da patologia.
Repara, na trajetória da narrativa, a construção do personagem vem sendo moldada pouco-a-pouco, sem nenhuma interrupção da narrativa da história, e o que se espera ao final é que o protagonista ultrapasse as barreiras de suas limitações, seus defeitos e alcance o clímax da superação, assim – sempre assim – como acontecem em todas as histórias, mas o que acontece neste romance de Eduardo Mahon é a ausência da superação, do resgate.
O protagonista é vitimado pelos seus próprios limites impostos por uma educação severa, sem um mínimo de abertura para o relax. No primeiro capitulo o narrador começa a traçar o perfil do personagem: “patrão era tão reservado”, uma pessoa, apesar de rica e poderosa “dispensava segurança particular e motorista” e o detalhe mais expressivo Paul Zimmermann “não gosta de gente muito próxima”, talvez o fator determinante ao complexo da câmera nove.
O narrador, contudo, desde início já descreve pequenos apontamentos assinalando que os dois Paul Zimmermann iriam se encontrar. Ao fechar o capítulo o narrador descreve as lembranças dele - Paul Zimmermann quando jovem tinha ideias avançadas, como trabalhar, ou criar uma ONG “de ajuda humanitária”, mas como muitos de nós não seguiu esse o roteiro projetado, mas ‘o outro’ já estava lá mais falante mais sonhador e mais magro.
O assalto, a invasão da privacidade do banqueiro, mesmo com toda a sua repulsa à ostentação se viu quase obrigado a preocupar com a segurança e instalar um sistema de vigilância com câmeras em pontos estratégicos inclusive dentro de casa.
Esses pontos de vigilância vão ser determinantes na narrativa, principalmente a câmera nove, na qual a namorada/amante Elissa Holtz, quando se preparava para ir embora rumo à sua casa depois de uma relação amorosa, vê os equipamentos de controle do sistema de vigilância eletrônica em que assiste o patrão/namorado andando pela casa vestindo apenas uma peça dum pijama que dera de presente ao amado.
Elissa, na manhã seguinte, explica para Paul a razão de sair da rotina de não ir para sua casa como de costume. Conta que o vira com o short de pijama de seda. Ele não acredita, mas não refuta a informação. O motivo para não crer está no diálogo com o mordomo, quando se revela que não usa seda, por conta da transpiração e todos os conjuntos de seda continuam guardados. Portanto não poderia ser ele andando pela casa. Pronto. O ponto de interrogação está plantado na narrativa.
Os detalhes dos caracteres do personagem vão sendo montados – aos 32 anos já era – digamos – um financista de sucesso, ao mesmo tempo em que se constata a frieza do personagem ao submeter os empresários ao seu sistema e seu crescimento e arremate dos bens dos devedores.
Não vamos pensar que a realidade é diferente. E houve exageros do ficcionista ao descrever essa micro realidade do mundo dos negócios financeiros, das grandes corporações. Não. A ficção talvez não tenha entrado a fundo nos pormenores de um sistema como o financeiro, que gera e vive em volatilidade e é capaz fomentar uma crise como a de 2008, cujos cacos dos prejuízos estão sendo recolhidos até hoje.
Paul Zimmermann – já no capítulo Pijama de Seda – é um pálido retrato desse sistema devorador, mas que não o digere. Só para ilustrar. Recentemente (caso de um ano, um ano e pouco) uma grande rede de supermercados foi à falência. Um dos momentos determinantes foi quando um dos bancos credores conseguiu na Justiça bloquear as contas correntes, principalmente as contas de cartão de crédito. Ao ser impossibilitado de trabalhar com o sistema financeiro o comerciante praticamente entrou na clandestinidade e passou a trabalhar com dinheiro vivo e o caos contábil e financeiro da empresa se alastrou e fechamento foi em questão de meses. Pais de famílias desempregados, mas o banco salvou o seu crédito, não importa o saldo.
Paul Zimmermann é o retrato desse sistema – que alguém diria: desalmado - embora no romance tenha um resquício de mágoas da longínqua infância com os colegas de famílias abastardas. Falo da infância, mas repara o narrador não descreve a época, ano ou mesmo século. O tempo narrativo se cumpre dentro de uma coerência – que começa com um assalto e termina com um enterro.
Quanto tempo, porém, se passou entre a instalação das câmeras, a descoberta da existência do outro na câmera nove e o terrível desfecho? Uma semana? Impossível. A desconstrução de Paul Zimmermann e enquanto se dava o aparecimento do outro, foram questão de meses, com certeza, mas isso não é descrito em nenhum momento. Somos informados que Paul Zimmermann está na casa dos 50 anos e o tempo anterior são apenas rápidas lembranças das personagens para explicar o momento atual de Paul, Elissa e do próprio mordomo, Gunter Noeur, herdado do pai Joseph.
Segue-se outra dúvida: quando é que se passa essa história? Sabemos – claro – que se passa nos períodos atuais por conta da modernidade: câmeras de alta resolução, na primeira linha nos indica que a narrativa é nos dias agora. Ou é o tempo moderno de um outro tempo?, pois os personagens transitam num espaço diverso do nosso, numa outra cultura, como acontece em “O Cambista”.
Se o narrador sabe em qual país, província ou principado, não diz e não fornece pistas categóricas, embora se possa suspeitar que o espaço físico narrativo seja o de uma comunidade alemã. Essa suspeita por conta de alguns nomes e da religião – luterana – do mordomo.
Ao fim da leitura desta história, o amigo leitor, assim como eu, pode estar frustrado. Pois de encontro nada aconteceu. Na verdade, o que se deu foi um desencontro de Paul Zimmermann com ele mesmo.
Um desencontro, sim, que foge de todas as expectativas construídas ao longo da narrativa. Embora o frio, gélido e canalha financista no fim fosse merecedor de uma punição, esperava-se a ‘vitória’ da realidade sobre a ficção. A recuperação do domínio da situação – embora punido, quando desligasse o sistema de vigilância.
A realidade virtual foi mais forte e o espectro de Paul Zimmermann se materializou no instante em que levantou o olhar para a câmera nove (também uma forma de desencontro) após a leitura do dossiê médico. O Outro já fora da realidade virtual se torna o vencedor e descobrimos, pelo triste desenlace, que é mais ‘tudo’, bem mais que o original, apenas menos formal e jovial.
A formalidade, a frieza, a segurança dos gestos e movimentos de Paul Zimmermann são um conjunto de terra arrasada do legítimo perdedor. Aquele que perdeu o domínio da realidade – do controle da realidade – e esse talvez seja o maior medo de todos nós; das pessoas – cuja marca é o rompimento do romance com Elissa e finalmente o domínio do território da casa. Não basta desligar os aparelhos. O Outro já era uma coisa palpável, real.
Digo desencontro porque nós-outros não queremos a vitória da realidade virtual. Sou contra a vitória do Outro. Quando HAL 9000 quer dominar a nave Discovery, em “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, o astronauta David Bowman entra nas suas entranhas e o desliga e nos dá a certeza que o homem não será superado pela máquina. Paul Zimmermann ao criar um reflexo tangível de si mesmo, nos tira essa certeza.
João Bosquo é escritor, poeta, cronista e jornalista.
SCARLOS
RJ 12/09/16
Caro Eduardo
Saúde!
Antes de ler o seu romance, emprestei o volume a um amigo. Ele o leu, e mo devolveu sem qualquer comentário. Semanas depois atendi seu telefonema em que se despedia para uma viagem de negócios que faria à Europa. Semana passada ele retornou e me ligou marcando um encontro, dizia que tinha urgência em falar-me. Às 20 horas de ontem, pontualmente, como o combinado, apareceu em minha casa. Depois das conversas iniciais, percebi que tinha algo mais importante para dizer-me. Na segunda taça de um bom Porca de Murcia comentou, com o semblante entre sério e relaxado:
- Pois é. Estive na Suíça.
- Que bom. Belo e civilizado país.
- Mas advinha onde estive?
- Não faço a mínima ideia. Não conheço a Suíça.
A curiosidade me mordia, continuou ele. Quis conhecer o senhor Zimmermann. Não havia qualquer indicação aonde encontrá-lo. O livro do seu amigo não dá nenhuma pista. Ficou nas generalidades geográficas. Podia ser na Alemanha, como na Suíça. Mas, enfim. Perguntei o quanto pude. Tenho alguns amigos que moram nesses países. Por fim, já sem ilusão de satisfazer essa curiosidade e muito menos de que seria por ele recebido, um velho conhecido que trabalha no consulado brasileiro em Zurich levantou alguns dados. Alguém do meio financeiro ouvira falar num certo banqueiro tresloucado. Abandonara tudo para gozar a vida. Na época, o maior escândalo. Inclusive porque os poucos da sua restrita roda de amizade temiam que pudesse ser essa uma atitude contagiante. Que seria um péssimo exemplo. Que poderia ser seguido por outros do mundo financeiro. Imagine a ameaça de debacle, em razão disso. Felizmente o tresloucamento não se repetiu. Ainda. Não nesse nível social, concluiu meu informante. Mas eu tinha ainda algum tempo e, aconselhado pelo homem do consulado, fui à busca de outras informações. Dirigi-me à rica biblioteca pública dessa bela cidade, em busca de alguns jornais de anos atrás.
Meu amigo falava com tranquilidade, embora se pudesse sentir certa ansiedade em seu semblante. Antes observara nele um estranho tremor de voz, um leve crispar na mão que me estendera tão logo entrara em minha casa. Sorveu mais uma taça. E continuou ...
Parece que não existia qualquer informação que me levasse àquele exato senhor Zimmermann. Na lista telefônica e a busca que fizemos na internet nos deparamos com centenas de Zimmermanns. Sobrenome comum na Alemanha, na Suíça. Seria como Oliveira ou Souza, em nosso país, por exemplo. Já estava desistindo quando me deparei com uma nota de rodapé. Duas linhas no Nouvelliste, um conhecido periódico em língua francesa, me chamou atenção. Fazia referencia à presença de um brasileiro que, visitando o arquivo do jornal, igualmente fizera indagações sobre o banqueiro suíço. Esse compatriota havia passado cerca de duas semanas na Suíça e certamente tinha juntado informações mais precisas. Nesse período teria se dirigido aos Alpes. E depois, dele não mais se tivera noticias. Ainda assim, estupidamente pensei que andar atrás de um brasileiro seria muito mais fácil. Logo viria que esse entendimento era um logro. Comentários na pequena comunidade brasileira na Suíça davam conta de seu retorno ao Brasil, outros, que decidira ficar por lá mesmo, morando aos pés dos Alpes, já outros que teria desaparecido após uma avalanche, depois de uma tentativa de penetrar numa mansão abandonada de um ricaço de Zurich. Muita imprecisão. Mesmo assim, resolvi seguir suas pegadas. Mas havia uma dica importante. porque antes eu lera que um importante banqueiro genebrino, que havia desaparecido, era proprietário de uma pequena mansão na bela cidade interiorana de Interlaken, aos pés dos Alpes. Para ir-se a essa pequena cidade é preciso passar antes por Berna. A partir daí, o percurso dura menos de uma hora. Logo eu estava entrando no Hotel Rossli, que fica cerca de dez minutos da estação West. A cidade é um recanto perdido nos Alpes. O nome significa “entre dois lagos”. Ela ocupa uma estreita faixa de terra entre os lagos Thun e Brienz. O ambiente bucólico atrai muitos ricaços que lá possuem residências de descanso e turistas em férias. O hotel é pequeno e agradável. Fica na mesma rua do Casino Kursall, um imponente edifício construído em 1859, com amplo jardim, um relógio de flores e uma fonte artificial. E foi caminhando pela principal via da cidadezinha, a avenida Höhewegg, que me deparei com uma breve indicação. Uma placa com os sobrenomes Nouer & Holtz. Teriam algo a ver com o antigo mordomo ou com a namorada do banqueiro? Voltando ao hotel, após a ceia, fiz discretas perguntas. Fiquei então sabendo que um jovem brasileiro havia se hospedado por lá, há uns dois anos. E, para espanto do porteiro, lhe fizera, e a outras pessoas, as mesmas perguntas que eu agora estava fazendo. Só então me senti mais confortável, pois percebi que estava no caminho certo.
Mais uma taça e era o fim da terceira garrafa agora de um encorpado chileno carmenére. Continuamos ... .
Não dormi aquela noite, prosseguiu meu amigo. Continuei a leitura de tudo o que podia sobre o estranho tema tratado no romance e o dia já raiava quando virei a ultima pagina do livro em francês que tratava de doppelgänger. Tinha tudo a ver com aquela minha escapada até os Alpes. Já no primeiro albor estava praticamente solitário no pequeno restaurante do hotel. Levei muito tempo no farto petit-déjeuner, com uma incrível variedade de queijos, pães e geleias. Continuei a leitura e com as indicações que obtive no dia anterior, por volta de dez horas sai do hotel e me dirigi a uma pequena casa nos arredores de Interlaken. Depois de cerca de meia hora de caminhada, bati à porta de um pequeno chalé, de paredes marrom. Após breve tempo aparece um senhor. Um belo e elegante porte, com cãs branquíssimas, fala firme, semblante tranquilo, um típico deutcher que me recebe com afabilidade. Identifico-me. Sou gentilmente convidado a entrar. Tenho a estranha sensação de que já era aguardado. Sento-me confortavelmente. Indago-lhe, sem maiores rodeios, sobre o senhor Paul Zimmermann. Herr Günter sorri placidamente. Olha absorto para o teto, depois mira firmemente a janela entreaberta, numa manhã excepcionalmente tépida, e finalmente começa a falar. Não sem antes perguntar-me se aceitava uma xicara de chocolate quente. Aquiesço. Pede-me licença e se dirige para os fundos, atravessando uma cortina vermelha. Sua ausência permitiu-me observar melhor a sala. Embora sem grandes luxos, diria até austero e simples, via-se que era um ambiente limpo, muito bem cuidado, contendo moveis antigos e bem conservados. Enquanto percorria com os olhos, procurando esquadrinhar e descobrir porventura alguma indicação da presença ali do ex-banqueiro, tive a estranha sensação de estar sorrateiramente sendo observado. Tive a impressão, talvez falsa, de que olhos solertes estivessem por trás daquele cortinado ou que alguém me espiasse através de não detectado buraco na parede ou ainda desconfiei da existência de um invisível olho pendurado no pendulo do velho relógio cuco na parede a minha frente. A única coisa mais viva que estava ali era um velho piano Steinway, uma das marcas mais populares e antigas, fabricada na Alemanha desde 1853. Aquele na sala certamente não era tão antigo assim, mas o tempo deixara-lhe marcas. Partira certamente dele o som que ouvira na tarde anterior, quando perambulei naquelas imediações. Imaginei que o antigo mordomo o dedilhava. Ou seria o velho banqueiro. Que perguntas seriam as mais certas a serem feitas àquele homem gentil e educado, mas que se mostrava ao mesmo tempo frio e distante? Seria Herr Nouer o melhor caminho para saber mais sobre o escorregadio e estranho Zimmermmann ou, pelo menos, a para conhecer melhor o deslinde daquela estranha estória? Entretinha-me nesses pensamentos quando o anfitrião retorna com uma bandeja e duas xicaras fumegantes. Quando olho em sua direção, senti que alguém mais além dele estava na casa. Percebi passos furtivos atrás da cortina. Embora nenhum rumor pudesse denunciar outras presenças além da minha e a do proprietário. Senti um leve calafrio. Nouer põe a bandeja sobre a mesa, gentilmente estendendo-me a bela xicara. Desvia o olhar. Depois de esperar que eu sorvesse o primeiro gole, fitou-me lentamente. Em seguida ... .
Foi como um desabafo. Um longo encadear de palavras, pausado, quase diria meditado, assim como um furúnculo que precisava ser seccionado para dele sair a matéria purulenta. O antigo mordomo falou por longo tempo, solitariamente monologou. Uma verdadeira catarse. Ao final, ele me fez uma afirmação que me deixou tonto: “o Outro Noeur está acompanhando o Outro Herr Zimermmann. Na verdade, nada sei sobre a vida dessas figuras. Estão pelo mundo. Mas, temo me acabar como findou o velho Paul que ...”. Calou-se subitamente. Tentei fazer-lhe a primeira das tantas perguntas que havia ensaiei para fazer. Mal balbuciei a primeira frase, e o ancião me fez um ligeiro mais claro e inciso sinal, que bem entendi que seria para calar-me. Olhou-me fixamente e já apertando minhas mãos, despedindo-se, e com o semblante mais tranquilo, como se toda a tensão anterior houve desaparecido, com uma voz aliviada, mas determinada fez-me uma pergunta que, embasbacado, não soube responder: “Aquele jovem brasileiro que aqui esteve a algum tempo, fazendo inconvenientes perguntas sobre Herr Paul Zimmermmann, sobre sua família, seus amigos e funcionários, demostrando uma indevida curiosidade e que nos prometera solenemente que nada publicaria a respeito do que pensa que descobrira. No entanto, soubemos, por meios que não me cabe revelar-lhe, que não cumpriu a promessa. Publicou um livro com mentiras, invencionices. Ainda bem que o intitulou como sendo de ficção, um romance. Ainda bem. Para o bem dele. Esteve muito recentemente nesta cidade. O vi rondando esta casa. Mas percebi que não era o mesmo que aqui estivera, parecia um Outro. Idêntico, mas não ele. Parecido, mas não aquele com quem conversei algumas vezes. Pergunto-te, se conheces o verdadeiro autor da breve e incompleta biografia de Herr Zimmermann? Eu digo e te asseguro que quem esteve aqui foi o Outro. Sabes onde está o original? Afinal, quem escreveu essa estória de pessoas que ainda estão vivas e não desejam nenhuma divulgação a respeito?” Gentilmente o anfitrião entregou-me o meu capote. Apertei-lhe a mão e com leve meneio de cabeça sai daquela casa.
Meu caro Eduardo, depois do relato o meu visitante se mostrava também aliviado. Abrimos mais uma garrafa de vinho. Desta vez um bom chileno tinto Shiraz.
Então, de chofre ele me pergunta, se eu sabia o que era doppelgänger, se já ouvira antes o termo e o seu significado. E antes que eu fizesse qualquer esboço de falar, confessando-lhe minha ignorância, meu amigo foi logo dizendo que doppelgänger é um termo alemão que significa “duplicata andante”. Trata-se de uma figura mítica que perpassa pela literatura, pelas lendas e mitos. Em outras palavras, o termo designa a réplica de uma pessoa que anda por aí se fazendo passar pela própria pessoa. É conhecido como o Duplo ou o Outro. Para os místicos, o doppelgänger é uma criatura sobrenatural, uma espécie de gêmeo demoníaco, que cria as maiores confusões e malefícios na vida de uma pessoa. Então ele fez referencias a algumas personalidades históricas que tiveram o seu Duplo. O grande Goethe, Catarina, a poderosa imperatriz da Rússia no século 18, o poeta Percy Bysshe Shelley, ele mesmo cuja mulher Mary escreveu a famosa estória do Frankstein, o romancista francês Maupassant, Lincoln, enfim. Por fim, já se levantando para ir embora, contou que certa noite Catarina, denominada a Grande, foi acordada por serviçais que alguns minutos antes a viram caminhando para a sala do trono. A Imperatriz, ainda atordoada, foi conferir. E entrando na imensa e pomposa sala se deparou com a sua doppelgänger sentada calmamente no trono prestes a dar ordens. Catarina, de imediato, sem pestanejar, ordenou aos guardas que atirassem na figura que se sentava no trono imperial. Pouco tempo depois desse estranho episódio, a poderosa governante viria a falecer. Já alguns outros entenderam o Duplo como uma forma de reencarnação ainda em vida. Falou-me ainda sobre a realidade de Mundos Paralelos, sobre a existência de uma civilização altamente evoluída que existiria no centro da Terra, “o Oco do Mundo”, com apenas cinco entradas possíveis, uma das quais estaria na Serra do Roncador, além, é claro, dos inefáveis ETs. Ficaríamos falando mais algum tempo, em que ele confessava interesse crescente por temas desse jaez. Enfim, a conversa já se alongava em demasia. Não sem antes me lembrar de um velho amigo que tive em Goiânia, o Alódio Tovar, que escrevera interessantes artigos e livros sobre essa temática. Mas já era madrugada e o vinho estava fazendo o seu indelével efeito ... deixaríamos para outra ocasião aquela conversa.
Meu amigo se despedia parecendo estar aliviado depois de contar essa estória. Distraidamente quis saber que musica estava tocando quando ele chegara a minha casa. Já havia me esquecido. Peguei um dos cds disposto ao lado do aparelho de som. O primeiro da pequena pilha, Mendelssohn. Compositor alemão de meados do século XIX, morto aos 38 anos, e de que gosto muito. Por acaso a musica era Sonho de uma noite de verão? - indagou-me. Passei às suas mãos o cd, e ele, meneando a cabeça, quase sussurrando: “Também gosto muito dele. Essa suíte ele a compôs quando tinha 16 anos. Um garoto prodígio”. Fica pensativo por um instante, por fim acrescenta. “Essa era a mesma musica que ouvi na tarde anterior quando passei em frente à casa de Her Günter Nouer. E que voltei a ouvir minutos depois de ter saído daquela casa”. Para um instante: “Ah! O pai de Mendelssohn, Abraham, também fora banqueiro”. Agora entendia o tremor de lábios e o crispado aperto de mão do amigo quando entrara em minha casa. Aquela tinha sido mesmo uma inusitada coincidência.
Já na porta, e com um semblante absolutamente tranquilo, o meu visitante me fez a pergunta a qual, confesso, não soube responder, e que espero que você, sinceramente, responda por mim: “Quem é o real autor do ‘fantástico encontro de Paul Zimmermmann’, o Mahon ou o seu duplo, o seu Outro”?
Caro Eduardo, eu precisava te relatar esse caso, esperando que você esclareça a dúvida de meu amigo.
Lamento não poder estar amanhã no lançamento de seu livro. [Quem sabe o Outro].
Desejo-lhe sucesso.
Abraço
SCarlos